O inverno de 1974 foi rigoroso em São Paulo. A ditadura civil-militar completava 10 anos, havia um surto de meningite abafado pelos militares. Morriam pessoas e a causa não era divulgada. Ernesto Geisel era o presidente.

Lembro do frio intenso, de uma dor de cabeça estranha que me infernizou o ano e nunca se descobriu a razão, da casa da Rua Ipiranga, no Campo Belo, Zona Sul da cidade, para onde mudamos em 1973. Eu tinha sete anos e nutria duas paixões: futebol e música.

Tenho lembranças esparsas da Copa de 70. A gloria dos brasileiros, a comemoração, as pessoas felizes. Pelé, Tostão, Rivelino, Gerson, Piazza, Clodoaldo, Carlos Alberto, a Jules Rimet…

Todo esse êxtase gerou uma enorme expectativa sobre a Copa de 1974 e marcou minha primeira infância. O país cinza de meningites e fardas com óculos rayban se projetava no futebol como saída, como descarrego.

A Copa de 74 toda foi um anticlimax. Ainda criança pude entender (sem entender) que há sempre um subtexto nas dores do mundo. A seleção que foi mágica em 70, em quatro anos se resumiu numa série de equívocos técnicos, organizacionais e políticos que fizeram da nossa participação um fiasco na Copa de 1974.

Porém, toda derrocada tem uma réstia de triunfo. Não foi gol, não foi drible, mas um não gol, uma defesa, quem salvou foi o goleiro, artilheiro negativo, rei de onde a grama não se sustenta, o guarda valas, como bem cantou Jorge Ben:

“Com a autoridade baleada,

O peso do destino

Na mira da lei, na marca do penalty

O fim de um charm,

Discreto e nublado

Trivial

Alguém esqueceu a bola de cristal”

O brilho da Copa da Alemanha era o Carrossel Holandês. O time dos dois Johan, Neeskens e Cruyff e do técnico Rinus Michels. A Laranja Mecânica já havia detonado os nossos diletos rivais, Uruguai e Argentina, em rodadas anteriores, e naquele 03 de julho de 1974, o Brasil de camisas azuis entrava em campo para enfrenta-los.

Logo de início, a correria e a marcação sobre pressão dos holandeses surpreenderam o Brasil. Quando digo o Brasil, falo do país, não apenas da seleção. Silêncio e perplexidade. O jogo terminou 2 x 0 para a Holanda. Brasil eliminado. A Holanda chegou à final contra os anfitriões, a Alemanha, e perdeu. Encantaram o mundo, mas não levaram o título.

Fiz o breve resumo da Copa de 74 para poder voltar no primeiro tempo do confronto Brasil x Holanda. Não sei direito qual era o tempo de jogo, aliás, jogo pegado, o Brasil batendo bastante, a Holanda girando a bola com um certo respeito.

Então, veio o não gol triunfante, o grande brilho da minha Copa 1974 deve ter sido de muitos brasileiros naquele momento histórico de alegrias parcas e silenciadas…

Veio um cruzamento da direita na área do Brasil, Zé Maria titubeia, rebate mal e a bola sobra macia para o distinto Johan Cruyff. Ele domina e bate na diagonal, forte, quase gol… Leão, Emerson Leão, o goleiro do Brasil, saltou antes, anteviu, arriscou, coisa de craque.

O goleiro brasileiro num totozinho de mão, caprichosamente, jogou a bola pra escanteio. Cruyff ficou pilhado, sem acreditar. Aquilo foi pintura, no melhor estilo, no nível da defesa de Gordon Banks, goleiro inglês, no jogo Brasil x Inglaterra em 1970, quando defendeu uma cabeçada mortal de Pelé.

Aliás, tanto Banks, quanto Leão explicam suas respectivas defesas como fruto de uma antecipação ante à precisão do rival, um desafio heroico quando se tem gênios tais como Cruyff e Pele do outro lado. O goleiro, um ser complexo, é o negativo da epifania mais cristalina do futebol. O homem que tá lá pra evitar o êxtase, o promotor do anticlimax.

Foi uma beleza da infância aquele não gol de Cruyff frente ao Emerson Leão. Foi o jeito da gente comemorar aquele inverno frio de 1974, auge da ditadura. Visto aqui do alto dos meus 54 anos, parece lírico e emocionante, mas o frio nos nossos ossos ainda é sentido. Tudo isso, o jogo, a defesa, o não gol, o triunfo do goleiro Leão aconteceu dois dias depois de eu completar oito anos.

Dedico essas lembranças da infância a dois amigos virtuais que vivo trollando por causa do time de coração de ambos. A Sociedade Esportiva Palmeiras era um dos times que jogava mais bonito naquele 1974, inclusive foram os campeões paulistas com o Emerson Leão no gol. Viu, Marcelo Masselli e Humberto Capellari, não faço apenas trollagem do querido time de vocês.

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