O Ministério da Defesa publicou no dia 30 de março de 2022 a ordem do dia alusiva ao dia 31 de março. A ordem do dia começa com “Movimento de 31 de março de 1964”, que segundo o Ministério refletiu os anseios e as aspirações da população brasileira da época. Informa ainda que a história não pode ser reescrita, em mero ato de revisionismo, sem a devida contextualização. Segundo o Ministério o tal movimento levou à afirmação da soberania nacional, consolidou a nacionalidade brasileira, conduziu a um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político, que teria resultado no restabelecimento da paz e fortalecimento da democracia.

A ordem do dia foi analisada por diversas fontes de informação que refutaram cada ponto do pronunciamento falacioso do Ministério e por isso vou me deter neste texto à importância da memória e da verdade que ainda não integra nossos esforços como classe profissional. Esforços que terão que ser reiniciados em breve.

A Universidade de Brasília publicou em 2015 o relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade no qual não são citados os nomes dos trabalhadores e professores de biblioteconomia na época da repressão na instituição. Em 9 de abril de 1964 os militares interditaram espaços da universidade por quinze dias incluindo a biblioteca que funcionava na SG-12, e os livros da Biblioteca foram totalmente revistados. Foram considerados subversivas as obras: Le Rouge et le Noir, de Stendhal; O Círculo Vermelho, de Conan Doyle; A Revolução Francesa, de Carlyle, e um álbum do arquiteto Le Corbusier, confundido com Roland Corbisier.

Um outro fato narrado no relatório relativo à biblioteca se deu em 20 de abril de 1967. Neste dia o então diretor da Biblioteca, Edson Nery da Fonseca admirador incondicional dos Estados Unidos realizou evento para entrega de livros para UnB, doados pela Fundação Ford e entregues pelo embaixador John Tuthill. Os estudantes protestaram contra a guerra do Vietnã e o apoio dos Estados Unidos ao regime militar. A repressão aos protestos, e o fato do professor Román Blanco ter fechado a porta da biblioteca, resultou no espancamento e prisão de 76 estudantes.

Antônio de Pádua Gurgel, em seu livro “A rebelião dos estudantes”, relata que depois do protesto contra a presença do embaixador na Biblioteca da UnB, o prédio da Biblioteca foi fechado e ali mesmo estudantes foram espancados e de lá saíram presos.

Na memória de algumas pessoas, esse dia foi, mesmo assim, um marco destacado. Em seu depoimento, Betty Almeida nomeou o espancamento de estudantes dentro da Biblioteca como uma espécie de “batismo de sangue”. Eustáquio Ferreira se lembra do momento como de uma “primeira reação mais forte”, diante do que viria em 1968. A violência policial não pode ser considerada propriamente simbólica, mas o fato de ela ter acontecido dentro de uma Biblioteca universitária, sim. p. 102

Em depoimento prestado à Comissão Anísio Teixeira, a 26 de setembro de 2014, Aylê Salassiê Filgueiras, apresentou um quadro vivo do dia do cerco policial à Biblioteca. Em seu ponto de vista, como o de outros citados, esse foi mesmo um dia de virada na postura da FEUB, uma mudança de atitude no sentido da intensificação dos protestos contra a ditadura. Segundo Aylê, ele chegou à Biblioteca, com Mauro Motta Burlamarqui, quando essa já tinha sido cercada pela polícia. Como representantes da FEUB, conseguiram entrar no prédio e viram, de um lado, reitor e autoridades, de outro, estudantes com faixas, entoando coros de protesto. Até aquele momento, os estudantes que estavam dentro da Biblioteca não sabiam do cerco. Houve um coquetel, que deflagrou uma espécie de “guerra de salgadinhos”. A partir desse momento, policiais civis disfarçados passaram a proteger a saída das autoridades. Presos dentro da biblioteca, estudantes foram espancados e detidos. As negociações para a soltura dos presos foram demoradas, madrugada adentro, contando os estudantes com o apoio de parlamentares como Mario Covas.  p. 102

É preciso saber quais professores e bibliotecários foram exilados pelo regime, quais simpatizaram e apoiaram e quais se demitiram em protesto ao regime na Universidade de Brasília (UnB). Importa destacar que, entre as lacunas da documentação disponível sobre o período ditatorial na Universidade de Brasília, uma das mais evidentes se refere a demissões e perseguições políticas a servidores. A ausência sistemática de documentação nesse sentido leva a crer que tenha havido algum ato proposital de ocultação ou destruição dessa parte do acervo. Além de obscurecer aspectos relevantes da história da universidade, essa situação atinge diretamente o direito à anistia e reparação das vítimas, dificultando ou mesmo impedindo as devidas ações judiciais. 100

Em pesquisa sobre a censura na Biblioteca Central da Universidade de Brasília no período do regime militar, Marcella Ludmila de Oliveira Rodrigues verificou a passividade dos bibliotecários durante o regime. A seguir são reproduzidos depoimentos de funcionários da biblioteca que apresentam um bom panorama de como foi a atuação da biblioteca durante a ditadura:

[…] “a censura se deu explicita e implícita. Ela era explicita porque o governo mandava, era uma censura oficial. De início quando não havia a censura prévia, havia a censura de fato depois que se publicavam. E as pessoas sabiam que determinados livros seriam objeto de proibição. Era difícil entrar livros naquela época. Era tolice querer comprar esse tipo de livro, e se comprasse estaria incorrendo contra uma lei do Estado que você poderia ser punido. Já a censura implícita houve e há, ninguém vai dizer que não há, mas há.” […]: “Dentro da biblioteca não houve nada oficial, só teve bom senso entre os bibliotecários. Tudo era censurado.” p. 39

“A biblioteca funcionava no SG-12 (Serviços Gerais). O episódio que eu me lembro e participei que foi muito importante. Já tarde da noite, coisa de meia noite, e Honestino, grande amigo meu, não morava na Oca , os pais dele moravam na L2, mas vivia na Oca, com a gente. E Honestino então, ele aparece lá meia-noite e chama a mim e mais uns três ou quatro que estavam acordados. Ele estava com uma lanterna, e dizia ‘vem comigo, vem comigo que vou fazer uma pesquisa.’ E então fomos à biblioteca, ela tinha um vão em baixo. Chegando lá ele disse ‘vocês me seguram pela mão que eu vou entrar lá dentro.’ Eu pensei: o que esse maluco vai fazer? Eu não tinha a menor idéia. Ele desce na escuridão com a lanterna. Tínhamos que ficar de olho porque os vigilantes na Universidade podiam ver, mas de qualquer maneira tínhamos que ter cuidado. Depois de uns dez ou quinze minutos, ou um pouco a mais, volta Honestino, e antes de subir ele entrega um bocado de livros, ‘segura, segura, segura’. E todos os livros eram sobre a esquerda, relativos à política ‘o que é o comunismo’, ‘movimento da união soviética’, tudo nesse sentido. A Universidade de Brasília tinha esses livros, ao invés de estarem abertos para consulta, pois o lógico era ser aberto para consulta nas estantes da biblioteca, mas estavam lá escondidos. Provavelmente por ordem do Reitor, que era o Caio Benjamim Dias, que era um homem extremamente conservador.”  p. 40

“Não houve restrição na aquisição de obras, nem de periódicos, nem de livros. Quem vai parar de estudar comunismo e marxismo na área de economia e política?” Entretanto F2 relata em sua entrevista: “A aquisição de materiais continuou normalmente, mas acontece que você não adquiria aquilo que você não achava que deveria adquirir. Se um professor mandasse uma lista pedindo seria uma encrenca. Quem vai assinar em baixo? Você tinha emprego, família, ia ser suicídio. A biblioteca nem chegava, no meu entendimento a ser solicitada a comprar aquilo. A coisa era muito séria.O confisco era tirar e guardar. Eles retiravam os livros dos catálogos, mas não tenho como provar.” p. 41

Na BCE existia um cofre no qual se preservaram algumas obras que não podiam circular na biblioteca.

“O cofre funcionava para preservação. Nele foram colocados livros pelo professor Volpini e funcionava para preservação (sic). Se ficassem nas estantes, certamente seriam retirados, receberíamos denúncias, então livros que eram perigosos também iam, nem todos, alguns livros foram levados para o cofre. Por exemplo, o livro de pensamentos de MaoTsé-Tung chegou em vários exemplares que vieram pelo correio, a bibliotecária abriu e quando viu era do MaoTsé-Tung, tinham vários broches e tudo foi pro cofre. O bibliotecário fazia esse tipo de censura, mas não era a mesma motivação que o Estado, da polícia.”p. 42

Durante o regime todos os dias um grupo de espiões visitava a biblioteca para verificar a existência de obras subversivas. E também havia espiões entre os funcionários, o que também influenciou na passividade dos bibliotecários que precisavam salvaguardar a própria vida e buscaram formas diferentes como o cofre para enfrentar de forma silenciosa o regime.

Victorino e Crespo em artigo publicado na Revista Informação & Universidade  informam que na gestão  de Miguel   Reale  da Universidade de São Paulo – USP, foi criada a   Assessoria   Especial   de   Segurança   e Informação (AESI), que tinha como objetivo vigiar docentes, alunos e funcionários. Essa assessoria impactou o funcionamento das bibliotecas da USP, pois, através  das  informações fornecidas pelos relatórios era possível mapear os títulos doados à biblioteca, restringindo informação   e   censurando   a   disponibilização   de   livros,   que,   se   classificados   como subversivos, seriam apreendidos.

A censura a obras e temáticas continua vigente nas bibliotecas de formas dissimuladas e perniciosas como a chamada “ideologia de gênero”. Segundo essa falaciosa abordagem da identidade de gênero, as pessoas LGBTQIAP+ querem destruir a família, reprimir a heterossexualidade e impor padrões de pensamento. Essas censuras podem ser úteis para a continuidade do poder hegemônico e cada vez mais elas se voltam a obras que discutem as questões de pessoas fora do círculo de poder. Como exemplo, em novembro de 2021, a obra “Olhos D’água’ [prêmio Jabuti, 2015], da escritora Conceição Evaristo, foi proibida de ser utilizada em atividade no Colégio Vitória Régia.

As histórias narradas aqui nesta data (31 de março) em que alguns celebram e outros recordam para que não se repita, objetiva trazer à discussão da comunidade bibliotecária a importância da memória e da verdade. A importância de adotarmos outras posturas que não seja de passividade e silêncio da violência. No futuro poderemos ter nossa memória aplaudida e nossas falhas esquecidas como Edson Nery da Fonseca, mas as pessoas que foram vítimas da nossa omissão ou ação continuam a existir. É importante que a biblioteconomia reconheça que apesar do seu papel social se aliou de forma confortável ao regime militar e que no momento em que experienciamos retrocessos sociais é preciso romper o silêncio e a passividade.

No artigo de Victtória Victorino e Maria Crespo ainda é informado que em 1965 o Ministério da Educação estabeleceu acordo com o United States Agency for International Development (USAID) para análise da situação do ensino superior e a determinação de um modelo. Neste modelo também foi estabelecido diretrizes para atuação das bibliotecas universitárias com o objetivo de orientar como gerenciar bibliotecas de acordo com as ideias impostas pelo regime militar. Os bibliotecários passaram a ser reprodutores sem liberdade para desenvolver coleções e disseminar informações no acervo. É importante que possamos conhecer profundamente esse modelo criado e verificarmos se ele ainda persiste na nossa formação e na visão que construímos para a gestão de bibliotecas. Para expurgar esse demônio é preciso conhecê-lo.

Na Universidade do Paraná, Flávio Suplicy Lacerda, segundo a pesquisa realizada por Victorino e Crespo, mandou arrancar várias páginas das obras de Zola, Pérez Galdós e Eça de Queirós na biblioteca da universidade e baniu obras de Sartre, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Guerra Junqueira. E quando assumiu o cargo de Ministro da Educação determinou a apreensão de livros que na sua avaliação abordavam o comunismo, ou eram traduzidos em russo ou tinham a capa vermelha. O que nos faz associar com sentimentos nocivos despertados por cores na sociedade atual, tanto o vermelho como o verde e amarelo.

Luane Neves de Souza Porto e Icléia Thiesen  realizaram pesquisa documental-exploratória de caráter descritivo e qualitativo no qual identificaram estudantes de biblioteconomia entre os presos no 30º Congresso da União Nacional do Estudantes (UNE). Entre os estudantes presos estava Maria Liège Rocha, militante da Ação Popular (AP) e do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Liège sofreu represálias, teve sua matrícula na Universidade Federal da Bahia (UFBA) cassada, foi presa na ocasião da visita de Nelson Rockefeller em 1969, foi presa por assistir peça subversiva e foi para a clandestinidade ao lado de seu marido Arthur de Paula.

Liège integrou a comissão fundadora do Movimento Feminino pela Anistia na Bahia e o Comitê Brasileiro pela Anistia. Foi presa durante lançamento de livro sobre a Guerrilha do Araguaia e em 1984 seu apartamento em Salvador foi invadido e revistado e a polícia levou mais de 50 livros. Em 2011 Liège foi premiada pelo Diploma Bertha Lutz.

Outro nome recordado por Luane Neves de Souza Porto e Icléia Thiesen é de Nair Kobashi que ingressou na Universidade de São Paulo (USP) em 1965, e segundo documentos integrava grupo de “agitadores esquerdistas”, promotora de “badernas” e demais atos reprováveis pelo regime. Os policiais fizeram diversas buscas no seu apartamento no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP) e com o AI-5 foi para a clandestinidade até 1972. Quando foi presa passou quarenta dias sofrendo torturas físicas e psicológicas.

Tânia Mendes que antes de entrar na Escola de Comunicações Culturais da USP em 1968 já era jornalista, integrou o diretório central dos estudantes, fez trabalho de contrainformação em estágio no setor de marketing de uma grande empresa, no qual observava o impacto das manifestações dos estudantes e sindicalistas. Atuou na frente de informações em que ela levantava informações para criar entidades, sindicatos, e grupos de teatro, sendo que ela participava da União de Teatro Olho Vivo. Em maio de  1973 Tânia foi presa e torturada. Foi encaminhada ao DOPS e depois para o presídio do Hipódromo do qual saiu em fevereiro de 1974.

A memória da luta dessas mulheres tem força para inspirar os estudantes e profissionais de biblioteconomia. Tem força para nos fazer engajar na luta pelas políticas do livro, literatura, bibliotecas, informação, direitos humanos, civis e sociais. Que possamos lembrar e nos inspirar mais dessas mulheres que enfrentaram a repressão em favor da coletividade.

A educação pública superior está sendo sucateada e tudo começou com campanhas de difamação que deram a base para que a opinião pública aceitasse o retrocesso do financiamento da educação superior. O desfinanciamento da educação é um fato e um projeto político e de poder que precisa ser enfrentado também pela via da informação, pela transparência, da informação contextualizada enfrentando as mentiras, as notícias falsas e falsas associações. Não se pode simplesmente tratar como falaciosas e exageradas as declarações de balbúrdia na universidade. É preciso enfrentar isso com a demonstração do ensino, pesquisa e extensão realizados na universidade e as bibliotecas têm a estrutura e a missão para apresentar os resultados do investimento dos recursos públicos na educação O direito à memória e à verdade precisa ser um exercício diário das unidades de informação para enfrentar as desinformações que justificam o sucateamento do futuro do Brasil.

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