É do bibliófilo que vem a salvação; ela provém, sobretudo, da encadernação. Na Igreja bibliófila, a encadernação é a manifestação suprema do culto, sacrifício expiatório e ritual. O que haveria de mais doloroso do que a deterioração de uma brochura! Uma verdadeira desgraça!

Um livro bom, um livro realmente muito bom, contendo coisas da alma e para a alma, um desses livros de cabeceira, um desses livros queridos que nunca saem da mente, você o imagina manchado, amassado e deformado pelo próprio uso e assiduidade do devoto? Precisamos vestí-lo.

A encadernação, mais do que decente, deve ser rica e bonita. Os amantes de antigamente não admitiriam, em suas prateleiras, sequer um único livro em brochura. O livro precioso era trajado com muitas e esplêndidas vestimentas de couro marroquino ou de bezerro, que o abraçava e o custodiava como em uma caixa ou em um santuário. Sucedendo às tábuas cobertas de pergaminho, o couro mais manejável, mais flexível manualmente, mais adequado para ornamentação, chegou até nós por meio dos árabes. As encadernações italianas reinaram por certo tempo. Havia, também, boas e robustas encadernações em velino estampado e pele de porco, de origem alemã, suíça ou holandesa. Mas a arte da encadernação logo se estabeleceu na França e lá permaneceu.

Vimos recentemente, nas Artes Decorativas, as obras de grandes artistas; as encadernações feitas para Grolier,[1] para Henrique III,[2] para Ana da Áustria,[3] para Luís XIV,[4] para Colbert,[5] para o conde de Hoym,[6] para o barão Pichon[7], e assinadas por Clovis Ève,[8] por Ruette,[9] por Boyet,[10] por Pasdeloup,[11] por Derome,[12] por Simier,[13] por Bozerian,[14] por Thouvenin,[15] por Trautz-Bauzonnet, [16] e por Chambolle-Duru.[17]

Não há nenhuma dessas obras rematadas que não merecesse essas manifestações de afeição, essas cotoveladas de surpresa, essas exclamações mudas e circulares que viralizam nos grupos de bibliófilos, sentados ao redor do belo exemplar. Os preços recentes alcançados nas vendas indicam que o sabor não se perdeu. Pelo contrário, ele está se apurando. A França tem, atualmente, uma escola incomparável de encadernação. Não citarei nenhum nome, mas os exemplares escolhidos, decorados pelos nossos mestres, são disputados em todo o mundo e sê-lo-ão no futuro, como verdadeiras obras-primas da arte, da ciência, do gosto e do trabalho. Porque é o trabalho que tem precedência sobre tudo.

A mão que amealhou, abalizou e costurou, a que dourou, a que executou o ornamento, do mais simples ao mais opulento, do mais tradicional ao mais original – porque as duas escolas podem ser defendidas –, em uma palavra, a arte que agrega ao preço do livro a maestria que o embeleza e ainda o exalta, esse conjunto incomparável não se encontra em nenhum outro lugar senão na França. É uma glória nacional, uma glória somada à glória das letras!

[1] Jean Grolier de Servières (1479-1565), tesoureiro da França, possuía uma rica biblioteca estimada em três mil exemplares, a maioria dos quais com valiosas encadernações. Grolier encomendava as capas luxuosas principalmente para a oficina de Jean Picard, com as seguintes características: encadernação em couro marroquino, cuja cor variava de acordo com o assunto do livro, decoração dos pratos chamados “entrelaçamento geométrico”, redes refinadas feitas de um retângulo e um losango entrelaçado, fatias douradas e não cinzeladas, guardas de pergaminho. Essas características constituem o que passou a ser conhecido como “encadernação Grolier”.

[2] Henrique III (1551-1589) foi o Rei da Polônia e Grão-Duque da Lituânia, e também Rei da França de 1574 até seu assassinato. Ele era o favorito de sua mãe, Catarina de Médici, que o chamava de “olhos preciosos”, tinha pouco interesse nos passatempos tradicionais de caça e exercício físico dos Valois, preferindo satisfazer seu gosto pelas artes e pela leitura.

[3] Ana da Áustria ou Ana da Espanha (1601-1666) foi a esposa do rei Luís XIII e rainha Consorte da França e Navarra de 1615 até 1643. Quando foi nomeada regente do reino da França pela morte de seu marido, Luís XIII, em 1643, Ana da Áustria viu-se confrontada com grandes crises a nível internacional (França e Espanha, seu país de origem, estiveram em guerra desde 1635) além de conflitos internos, com nobres e parlamentares questionando a autoridade real. (HERBILLON, 1939).

[4] A Era do Absolutismo, em que a figura individual do monarca se confunde com a instituição máxima de governo, foi marcada por uma figura central e icônica: Luís XIV da França e Navarra (1638-1715). Idealizador de Versalhes e o maior nome da concentração do poder do Estado Moderno na Europa, Luís XIV enriqueceu a biblioteca real com a ajuda de seu ministro Jean-Baptiste Colbert e seu bibliotecário Jean-Paul Bignon (DENOËL, 2022?).

[5] Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), ministro de Luís XIV, protegeu as ciências, as letras e as artes. Fundou a Academia das Inscrições e Belas Letras, e apoiou a pesquisa com a criação da Academia das Ciências (1666) e o Observatório de Paris (1667). Semelhante a seu antigo protetor, o cardeal Mazarin, Colbert montou uma das melhores bibliotecas da França e dedicou muito tempo a enriquecê-la. A partir de 1663, três anos após ter sido criada, seu acervo de impressos e manuscritos foi significativamente ampliado, graças a atuação de dois bibliotecários: Pierre de Carcavy e Étienne Baluze. Ambos auxiliaram Colbert a montar uma rede de correspondentes nas províncias e em toda a Europa, responsáveis pela descoberta dos livros raros e preciosos que aportaram em grande número, sejam a título de aquisição ou para serem copiados. Assim, a biblioteca passa a ser a terceira mais importante da Europa em número de exemplares. Com a morte de Colbert, o inventário de livros da biblioteca contava mais de vinte mil volumes impressos e mais de oito mil manuscritos antigos (BALUZE, [1700?]).

[6] Charles-Henry (1694-1736), conde de Hoym e embaixador da Saxônia-Polônia, possuía uma biblioteca considerável abarcando todas as áreas do conhecimento à época e ricamente encadernada, mas particularmente devotada à literatura latina (PICHON, 1880).

[7] O barão Jérome-Frédéric Pichon (1812-1896), um dos mais importantes colecionadores franceses do século XIX, iniciou sua biblioteca aos 19 anos, chegando a se individar a ponto de ficar devendo seis mil francos aos livreiros, quantia que acabou sendo paga por seu pai. Sua rica biblioteca foi objeto de dois leilões públicos, um durante sua vida em 19 de abril de 1869 e outro após sua morte em 1897.

[8] Encadernador francês que atuou entre fevereiro de 1583 e maio de 1633. Era filho dos encadernadores Nicolas Ève e Noëlle Heuqueville. Em 1583, tornou-se o quinto titular do cargo de “encadernador do rei” após seu pai. Especializou-se na produção de encadernações decoradas com pequenos ferros chamados “à la fanfare”. Além de Henrique III, trabalhou para o Henrique IV e Luís XIII. Clovis Eve está na origem das encadernações com emblemas macabros (esqueletos, caixões, caveiras) encomendadas por Henrique III.

[9] Em 1650, Antoine Ruette, com 41 anos de idade, sucedeu seu pai no posto de encadernador do rei Luís XIV, tendo inclusive prestado serviços para a rainha Ana da Áustria. Foi ele quem, provavelmente, executou as magníficas encadernações do Chanceler Seguier Seu filho, Étienne Boyet, também foi um renomado encadernador na Áustria, tendo trabalhado para o príncipe Eugênio. (HORNE, 1894; HUTTNER, 1990).

[10] Luc-Antoine Boyet ocupou o cargo de encadernador do rei de 1698 a 1733, desfrutando de uma enorme reputação muito alta durante sua vida. Também prestou seus serviços ao bispo de Nîmes, Esprit Fléchier (1632-1710) e a outros bibliófilos, como Charles-Jérôme de Cisternay Du Fay (1662-1723), o Conde de Hoym (1694-1736) e abbé Charles-Orléans de Rothelin (1691-1744) (MÉTIVIER, 2002).

[11] Antoine-Michel Padeloup (1685-1758), conhecido como Padeloup, o Jovem, foi um encadernador francês ativo desde 1712 até à sua morte, tornando-se, em 1733, encadernador do Rei de França e, mais tarde, encadernador do Rei de Portugal. Ele foi um dos primeiros encadernadores a usar etiquetas impressas para assinar suas obras. Suas obras são conhecidas pelo elevado nível artístico, em especial pelas encadernações “rendadas” e encadernações “mosaicos” (incrustações de peças de couro coloridas).

[12] Nicolas-Denis Derome (1731-1790) é o representante mais famoso de uma verdadeira dinastia familiar de encadernadores, estabelecida em Paris desde o final do século XVII. Renomado, especialmente pela qualidade de execução de suas decorações em renda, Derome propôs a partir de 1773, ornamento típicos do reinado de Luís XVI, como lombadas com elementos neoclássicos.

[13] René Simier (1772-1843) foi um dos principais encadernadores franceses do século XIX. Não deve ser confundido com seu filho Alphonse, encadernador, que dirigiu a oficina desde 1823 e perpetuou o nome até 1848. Ele adquiriu grande notoriedade pois se tornou encadernador da imperatriz Maria Luísa e, na Restauração, encadernador do rei, bem como de Luís Filipe. Desenvolveu técnica e esteticamente a encadernação, garantindo a transição entre o neoclássico e o romântico.

[14] Jean-Claude Bozerian (1762-1840) foi estagiário de Jean-Marc Arnaud, grande mestre de papel e criador de imagens. Mudou-se para Paris pouco antes de 1790 e no verão de 1790 casou-se com Marie Anne Suzanne Breton, viúva do encadernador parisiense Pierre Bourlier, residente no Quai des Augustins, que se tornou então o local de residência e atividade do novo casal. Encadernador de grande reputação durante sua vida, conhecido principalmente por suas encadernações decoradas com bordas no estilo neoclássico característico do Primeiro Império, era procurado por todos os bibliófilos da época.

[15] Joseph Thouvenin (1791- 1834), aluno de François Bozerian, foi um dos três encadernadores mais prolíficos e importantes do século XIX e da Restauração em particular, juntamente com René Simier e Jean-Georges Purgold. Thouvenin renovou a encadernação, criando as encadernações de “fanfarra”, com Charles Nodier, e atualizando as chamadas encadernações “catedrais”. Além disso, além das encadernações mais refinadas, para bibliófilos, sua oficina recebia três mil encomendas por ano, que eram essencialmente executadas em meias encadernações típicas de Joseph Thouvenin. Estas encadernações também contribuíram para a sua reputação por sua qualidade.

[16] Georges Jacob Trautz (1808-1879) era um encadernador alemão. Genro de Jean-Georges Purgold, sócio então sucessor de Antoine Bauzonnet (este último tendo sido o dourador de Purgold), instalou-se em Paris em 1830. A partir de então as encadernações foram assinadas “Bauzonnet-Trautz”, até a aposentadoria do primeiro. As encadernações são então assinadas “Trautz-Bauzonnet”. Trautz assume a oficina de Bauzonnet após sua morte.

[17] René Victor Chambolle (1834-1898) e Hippolyte Duru (1803-1884) são encadernadores franceses que trabalharam juntos, sendo a sua assinatura desde então constituída pela associação dos seus dois nomes, “Chambolle-Duru”. Adquiriram notoriedade sentre os bibliófilos, em particular com o duque de Aumale Henri d’Orléans, que lhes ofereceu o direito de figurar em 1862 entre os cento e oitenta livros de arte expostos em seu gabinete no Château de Chantilly, para membros do Fine Arts Twickenham Club. O duque quis dar a conhecer entre os seus contemporâneos aqueles que considerava “os três grandes encadernadores vivos, Trautz, Capé, Duru”, em particular Duru a quem apreciava particularmente: “Este Duru é um homem hábil e tenho magníficas encadernações que saiu de suas mãos.” A associação Chambolle-Duru foi, no entanto, de curta duração, pois, a partir de 1863, René Chambolle permaneceu o único responsável pela oficina de encadernação, mantendo o nome de Chambolle-Duru para assinar as obras produzidas posteriormente.

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