Nossa geração conheceu os últimos dos grandes bibliófilos, aqueles que ainda podiam encontrar livros inacessíveis e coleções impressionantes por sua qualidade e variedade. Guyot de Villeneuve[1] – que possuiu as Horas do Maréchal de Boucicaut – encontrou o Discurso sobre a História Universal,[2] de Bossuet, em uma livraria de Roma, uma cópia em homenagem ao Papa Inocêncio XI, encadernado com as armas pontifícias, mas que este mesmo papa negligenciou depositar na biblioteca do Vaticano, provando, assim, como observado pelo editor do catálogo, que os papas “receberam sem favor a homenagem do grande bispo.”

Acompanhamos as vendas de Mosbourg,[3] de Lignerolles[4] e do barão Pichon.[5] O barão Pichon comprava, concomitantemente, belas casas, belos móveis, belos faqueiros, quadros, gravuras: era um colecionador completo e realizado: os livros ocupavam apenas um momento de sua curiosidade universal. No entanto, que tesouros ele acumulou! O Breviarium fratrum minorum,[6] precioso manuscrito do século XIV em fólio sobre velino, decorado com miniaturas, duas das quais contêm um retrato de São Luís, livro que pertenceu à rainha Bonne de Luxemburgo,[7] esposa do rei João.[8] Este era o proprietário do Hore in laudem beatissime virginis Marie, impresso em 1527 por Simon du Bois[9] para Geofroy Tory,[10] uma cópia do rei Francisco I, certamente um dos mais belos livros que foram encadernados pela mão de um encadernador. Ele possuía o manuscrito das Orações e Meditações Cristãs compostas pela Marquesa de Rambouillet,[11] escritas em velino por Jarry,[12] encadernadas e douradas com pequenos ferros por Le Gascon;[13] esta é a cópia de que fala Talleman des Réaux.[14]

Essas enumerações tendem a ser enfadonhas, visto que somente há belos livros que são propriedade ou, pelo menos, aqueles que se tem em mãos. Mas como, depois de relembrar o registro de serviço desses grandes curadores do patrimônio intelectual da humanidade, deixar de indicar a última fase de seu esforço, o efeito mais recente de seu ardor?

Svicore Georges Vicaire,[15] amigo e colaborador dos Pichons e dos Lovenjouls, não tivesse publicado a tempo o seu Répertoire des Livres du XIX siècle,[16] todas as publicações da escola romântica teriam certamente perecido. Já os Balzac,[17] os Mérimée,[18] os Victor Hugo,[19] os Gautier,[20] os George Sand[21] e os Alexandre Dumas,[22] geralmente impressos em pequenos números e devorados pela sujeira dos armários de leitura, teriam sido dispersos ou destruídos. Apenas foram salvos alguns belos exemplares. Somente um exemplar completo do romance inaugural de Alexandre Dumas, filho,[23] foi citado (Aventuras de quatro mulheres e um papagaio, 6 volumes, 1845-1847). As primeiras edições de Baudelaire,[24] recentemente publicadas, já são raríssimas. Ninguém sabe para onde vão esses livros, ameaçados ainda por sua própria fragilidade e pela qualidade medíocre do papel. Contudo, sem a pronta vigilância de Georges Vicaire, sua ruína teria sido irremediável.

[1] François Gustave Adolphe Guyot de Villeneuve (1825-1898) foi um dos maiores bibliófilos franceses da segunda metade do século XIX. Ele construiu uma notável coleção de livros e manuscritos, cuja joia era o Livro de Horas do Marechal de Boucicault, um dos mais belos manuscritos franceses do século XIV, que havia encontrado na Inglaterra.

[2] Em 1681, Bossuet escreveu seu Discours sur l’histoire universelle em que busca explicar os propósitos de Deus para sua Igreja, evocando referências a fontes bíblicas, bem como textos dos doutores da Igreja e autores greco-latinos, como Heródoto (BOSSUET, 1681).

[3] Jean-Antoine-Michel Agar (1771-1844), o conde de Mosbourg, era um apaixonado em comprar livros, travando embates acalorados e pagando valores acima do mercado para realizar seus desejos de posse de certos exemplares (BERALDI, 1896).

[4] No curso de cinquenta anos o conde de Lignerolles conseguiu desenvolver uma das bibliotecas mais notáveis de Paris da segunda metade do século XIX. Embora com recursos limitados, era paciente e consumia sua vida de solteiro frequentando leilões em busca de livros. O catálogo de obras da primeira venda do falecido conde de Lignerolles ocorreu de 29 de janeiro a 3 de fevereiro de 1894, e continha 35 manuscritos, com alguns livros de horas particularmente preciosos.

[5] O barão Jérome-Frédéric Pichon (1812-1896), um dos mais importantes colecionadores franceses do século XIX, iniciou sua biblioteca aos 19 anos, chegando a dever seis mil francos aos livreiros, quantia que acabou sendo paga por seu pai. Sua rica biblioteca foi objeto de dois leilões públicos, um durante sua vida, em 19 de abril de 1869, e outro após sua morte, em 1897.

[6] Este manuscrito foi assim designado – em português, Breviário dos Frades Menores – por ter pertencido ao convento franciscano dos Cordeliers de Aix, França.

[7] Bonne de Luxemburgo (1315-1349) – que jamais foi rainha da França, já que morreu menos de um ano antes da ascensão do marido ao trono, em 22 de agosto de 1350 – recebeu uma educação esmerada. O saltério que leva seu nome, composto por Jean le Noir, ajuda a entender o refinamento de sua corte, bem como os desafios da época. Elaborado numa época em que a peste bubônica matou quase dois terços da população, é visível no saltério o tema da morte e do memento mori. A própria Bonne de Luxembourg será vítima desta epidemia (HAND, 2013; ROBERTSON, 2002).

[8] João II (1319-1364), rei da França (1350-1364) conhecido como “o Bom”, legou aos seus filhos o gosto pelos livros. Isso explica o porquê de seus descendentes serem proprietários, entre o final do século XIV e o início do século XV, das mais ricas bibliotecas da Europa (FLEURY, 2016).

[9] O protestante Simon Du Bois imprimiu em Paris, entre 1525 e 1529, sessenta e dois itens de teor religioso que provocavam a ira da Igreja Católica, levando-o a se refugiar na cidade de Alençon, onde continuou o seu trabalho. No ano seguinte é declarado herege por suas impressões (RENOUARD; MOREAU, 1985; SHAW, 1992).

[10] Geoffroy Tory (1480-1533) foi um impressor, tipógrafo, livreiro e humanista francês a serviço do rei Francisco I. Ao longo de sua vida, ele dominou muitas das técnicas da arte da impressão, em especial o aperfeiçoamento das técnicas de gravura (para ilustrar livros), o uso de caracteres romanos (a partir de um estudo de textos clássicos) e a encadernação de volumes em couro (BERNARD, 1857).

[11] Catherine de Rambouillet, Catherine de Vivonne, marquesa de Rambouillet ou simplesmente Madame de Rambouillet (1588-1665), foi uma influente anfitriã, pioneira dos salões e figura central das preciosas na França, movimento de mulheres que se reuniam em salões para comentar a respeito de literatura e escrever seus próprios textos, particularmente romances e poemas de temática amorosa (ADELMAN, 1926).

[12] Nicolas Jarry (c.1615-1674), considerado “o mais famoso expoente da escola de caligrafia da corte”, copiou, entre 1633 e 1663, numerosos volumes de orações, livros de horas e outros textos religiosos, principalmente como encomendas para membros da família real e altos escalões da nobreza (WHALLEY; KADEN, 1980).

[13] Nascido no século XVI e falecido por volta de 1653, Le Gascon, somente conhecido por esse apelido, foi um encadernador francês que trabalhou para muitos colecionadores, incluindo os irmãos Pierre e Jacques Dupuy, Peiresc e Jacques-Auguste de Thou (THOINAN, 1893).

[14] Gédéon Tallemant des Réaux (1619-1692) foi um escritor e poeta francês conhecido por Historiettes, uma coleção de biografias curtas (TALLEMANT DES RÉAUX; MONGRÉDIEN, 1934).

[15] Georges Vicaire (1853-1921) foi um bibliófilo e bibliógrafo francês. Foi encarregado da preparação do catálogo de impressos da Biblioteca do Arsenal, e em 1909 foi nomeado curador da Biblioteca Lovenjoul, localizada junto ao Museu Condé, em Chantilly. Escreveu as bibliografias de Honoré de Balzac, José-Maria de Heredia, George Sand, Stendhal, Victor Hugo e do Le Manuel de l’amateur de livres du XIXe siècle, importante obra em oito tomos sobre a literatura dos oitocentos. Sua obra Bibliographie gastronomique, de 1890, é ainda considerada a mais relevante e erudita contribuição bibliográfica neste campo (VICAIRE, 1923).

[16] Trata-se, na verdade, da obra intitulada Manuel de l’amateur de livres du XIXe siècle (1801–1893), publicada entre 1894 e 1920 e em 8 volumes (VICAIRE, 1894-1920).

[17] Honoré de Balzac (1799-1850) foi um prolífico escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. Considerado o fundador do Realismo na literatura moderna, sua obra-prima foi A Comédia Humana, um conjunto de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar a sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815. Todos os seus livros foram incluídos no Índice de Livros Proibidos da Igreja Católica (BARDÈCHE, 1980; MARTÍNEZ DE BUJANDA; RICHTER, 2002).

[18] Prosper Mérimée (1803-1870) foi um historiador, arqueólogo, senador e escritor romântico francês, célebre pelo conto Carmen escrito e publicado em 1845, que foi adaptado várias vezes, incluindo a famosa ópera homônima de 1875 de Georges Bizet. Mérimée atuou na reorganização da Biblioteca Nacional da França e elaborou o relatório da Comissão responsável por regulamentar o intercâmbio bibliográfico entre as bibliotecas francesas. Sua biblioteca privada foi destruída pela Comuna de Paris (TOURNEUX, 1875; 1879).

[19] Victor-Marie Hugo (1802- 1885) foi um romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor, dentre outros, de Os miseráveis e de Notre-Dame de Paris, ambos censurados pela Igreja Católica. No poema A qui la faute (De quem é a culpa), o escritor proclama seu amor pelas bibliotecas as quais, por meio dos livros, permitem aos seres humanos se expressarem e se libertarem (MARTÍNEZ DE BUJANDA; RICHTER, 2002; ROBB, 1998).

[20] Théophile Gautier (1811-1872) iniciou-se na literatura pelo romantismo, mas ficou consagrado como poeta parnasiano. Na prosa, seu trabalho mais conhecido é Le Capitaine Fracasse (1863), uma trama cheia de aventuras que ganhou diversas versões cinematográficas. Ainda na prosa publicou os livros Mademoiselle de Maupin (1835) e La Morte amoureuse (1836). Como poeta, sua produção mais importante foi Émaux et camées (1852), e como crítico publicou, entre outros, Histoire de l’art dramatique depuis vingt-cinq ans (1858-1859).

[21] George Sand foi o pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant (1804-1876), aclamada romancista e memorialista francesa. Por seu estilo lírico e suas primeiras convicções feministas, George Sand serviu de modelo para muitas outras escritoras, de Virginia Woolf a Simone de Beauvoir, passando por Colette (MALLET, 1995).

[22] Alexandre Dumas (1802-1870) foi um romancista e dramaturgo francês, autor de “Os Três Mosqueteiros” e “O Conde de Monte Cristo”, clássicos do romance de capa e espada de grande aceitação popular. Suas histórias foram traduzidas em quase 100 idiomas e inspiraram mais de 200 filmes.

[23] Alexandre Dumas, filho (1824-1895) é filho de Alexandre Dumas, pai (1802-1870) – autor de Os Três Mosqueteiros – e da costureira Marie-Catherine Labay. Foi hostilizado na infância por ser filho ilegítimo e negro, neto de uma negra haitiana, questão essa que marcou sua obra. Tornou-se um conceituado escritor de livros e peças de teatro, como o seu pai, merecendo destaque o romance A Dama das Camélias, publicado em 1848, e de cunho autobiográfico (MAUROIS, 1959).

[24] Charles Pierre Baudelaire (1821-1867) foi um poeta e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman. Em julho de 1857 Charles Baudelaire publicou uma coleção de poema intitulada Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal), que foi condenada “por insultar a moral pública e os bons costumes”, levando Baudelaire e seu editor a pagarem uma pesada multa pesada. Uma nova edição foi produzida em 1861, da qual seis poemas foram excluídos de acordo com o julgamento. Um pedido de reabilitação das Flores do Mal perante o Judiciário francês terá sucesso em 30 de maio de 1949, muito depois de sua morte, e anulará a condenação anterior.

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Uma nova edição foi produzida em 1861, da qual seis poemas foram excluídos de acordo com o julgamento. Um pedido de reabilitação das Flores do Mal perante o Judiciário francês terá sucesso em 30 de maio de 1949, muito depois de sua morte, e anulará a condenação anterior.

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