“Não trago nenhuma notícia das margens.

Trago notícias da travessia que não é o reino de deus

nem a cloaca, muito pelo contrário.”

(Paul B. Preciado)

A rodovia federal BR-230, mais conhecida como Transamazônica, é uma fake news de dimensões monumentais, no tempo e no espaço. Era começo dos anos 1970 quando o governo militar deu início às obras de construção da rodovia, obras que rasgariam a floresta amazônica em corte inconsequente. A incensada construção da rodovia era parte do Plano de Integração Nacional (PIN), criado em decreto-lei assinado por Médici. Como outras obras propostas pelo PIN, a rodovia Transamazônica restaria inacabada. Era o discurso falacioso do “Brasil Grande”, que estampava sua falsidade nas páginas de revistas de circulação nacional: “Para unir os brasileiros, nós rasgamos o inferno verde”.

Há quase 50 anos, o general que ocupava a presidência da República inaugurava uma placa, cravada em árvore centenária às margens do rio Xingu, placa que pretendia ser marco festejado do início das obras. A inscrição da placa anunciava uma “arrancada histórica para conquista e colonização deste gigantesco mundo verde”, e a dimensão desta “arrancada” se evidenciava na imagem da árvore mutilada que recebera a placa insidiosa. Dimensão evidenciada também na propaganda oficial do governo, que em 1972 estampava em páginas berrantes: “Chega de lendas, vamos faturar!”. Para a mentalidade dos que então governavam o Brasil, tratava-se “encontrar o caminho da verdadeira vocação econômica da Amazônia”.

Quase cinquenta anos depois, o capitão que ocupa a presidência daria continuidade à atuação falaciosa de seus predecessores diletos. O atual (des)governo, violador de direitos fundamentais em tantas frentes, se distingue agressivamente pelo “heteroterrorismo”, pela destruição do meio ambiente e pelo desrespeito aos povos indígenas — e pela cotidiana disseminação de fake news. A mal disfarçada truculência da “magia do desenvolvimento”, terrivelmente decantada em filmes oficiais de propaganda do governo militar nos anos 1970, voltou a ser mote de propagandas igualmente falaciosas (e terríveis!). Como há cinquenta anos atrás, um governo militarizado e intolerante pretende decretar: “O inferno verde já era…”.[1]

 “O espaço humano revela o tempo”. É o que reitera a voz (off) de Renata Taylor logo no início de Transamazônia, documentário lançado em 2020. Reitera o que se evidencia nas próprias imagens iniciais: as primeiras são trechos da campanha publicitária do governo militar em 1970, festejando a derrota do “Inferno verde”; a que se seguem imagens daquele mesmo espaço de floresta devassada, mais uma vez sob as ameaças de um governo declaradamente inimigo do meio ambiente. Entre um momento e outro, figurados pelas imagens, a presença comum de militares e de máquinas, de arrogância destrutiva e de ufanismo falseador. As “narrativas oficiais” dos dois momentos se sobrepõem, evidenciando as lacunas da norma imposta.

Renata Taylor é uma das diretoras de Transamazônia, em parceria com Bea Morbach e Débora McDowell. As narrativas tramadas, à maneira de crônicas do cotidiano de existências em travessia, se passam em duas cidades tocadas pela  rodovia Transamazônica — Marabá, no Pará, e Lábrea, no Amazonas (no extremo oeste da BR-230). As imagens do filme foram rodadas entre 2017 e 2018, momento marcado pelo início do (des)governo que neste chega ao seu último ano. As crônicas retratam o cotidiano de Melissa Gabriela e de Marcelly Robert, travestis que têm suas existências atravessadas pelo corte e pelo fluxo da rodovia cinquentona, entretanto jamais concluída.

As existências de Melissa e de Marcelly nesses dois pontos da famigerada rodovia vão sugerindo uma série de questionamentos em torno da “magia do desenvolvimento”, tão desastrosamente colocada em marcha pelo capitão que hoje ocupa a presidência da República — assim como pelo general que há cinquenta anos ocupava o mesmo posto, em plena ditadura. Renata Taylor também comparece nas imagens que compõem as crônicas, dela ficamos sabendo que é ativista dos direitos humanos, e é ela quem que fala sobre o grande número de assassinatos na região amazônica: “Na região norte, os indicadores da violência transfóbica nunca existiram”. É esse o espaço que constitui também uma Amazônia trans, a Transamazônia evocada pelo título do documentário.

É ainda a voz de Renata, no início do filme, que anuncia o “espaço humano” em que aquelas crônicas serão tramadas. “Imensidões que escapam da norma. Nessas lacunas talvez estejam nossas histórias. Fora dos mapas.”. O que sensivelmente nos remete às crônicas da travessia de Paul B. Preciado em Um apartamento em Urano. “E vou ficar um pouco. Na encruzilhada. Porque ela é o único lugar que existe. Não existem margens opostas. Estamos todos na encruzilhada. E é dessa encruzilhada que lhes falo, como o monstro que aprendeu a linguagem dos homens. […] Tenho um apartamento em Urano, o que certamente me coloca longe da maioria dos terráqueos, mas não tão longe que eles não possam viajar para cá. Ao menos em sonho.”.

Urano constituiria esse lugar que não tem espaço nas narrativas oficiais de governos militarizados e intolerantes, que pretendem criminosamente “faturar” por sobre as cinzas das “lendas”. Para Paul Preciado, Urano seria o espaço capaz de comportar “um dissidente do sistema sexo-gênero”. “Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês”. Para Renata, Melissa e Marcelly, dissidentes do sistema sexo-gênero, a Transamazônia será esse espaço que escapa das normas, e que resta ainda fora do mapa. E é desse espaço, vagamente localizado entre o “inferno verde” e Urano, que as personagens do documentário poderiam nos dizer: “não trago notícias das margens, mas um pedaço de horizonte.”[2]

NOTAS

[1] Assim como a expressão que finaliza o parágrafo anterior, esta foi retirada da propaganda oficial do governo. O canal do Arquivo Nacional no YouTube traz parte desse material.

[2] Esta resenha sobre Transamazônia (2020) é também nota parcial de leitura de Um apartamento em Urano: crônicas da travessia (Zahar, 2020), de Paul B. Preciado (tradução de Eliana Aguiar). Transamazônia está disponível na plataforma de streaming Mubi.

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