“Quem é preto como eu, já tá ligado qual é: nota fiscal, RG, polícia no pé…”. Achei por bem iniciar este texto, com um trecho da canção “Qual mentira vou acreditar”, dos Racionais MC’s, visando dar um tom ilustrativo para o que vou discorrer na sequência. Quem é preto, quem é preta, já está ligado/a em como será a relação entre nós e a sociedade racista, classista, escrota que vivemos; e ter estes predicados nefastos, não é uma prerrogativa exclusiva do Brasil.

Há poucas semanas fomos impactados com a cena de uma mãe que bradava feito uma leoa, apontando dedos e proferindo impropérios para uma senhora branca, em um restaurante próximo ao mar, em algum lugar de Portugal. A mãe que bradava, igualmente branca como a senhora, era a brasileira Giovanna Ewbank, atriz e esposa do ator brasileiro Bruno Gagliasso. Como é de conhecimento de muitos, o casal em questão adotou duas crianças nascidas no Malawi, um país do Leste africano que fica cercado pela Zâmbia, Moçambique e Tanzânia.

E qual foi o motivo que gerou tamanha fúria em Giovanna Ewbank? Segundo a atriz (e eu não desacredito, haja vista os inúmeros episódios de racismo que acontecem em Portugal), a senhora já mencionada teria proferido ofensas de cunho racistas contra os filhos do casal, no caso em tela, dos filhos adotados por eles: Titi de 9 anos, e Bless de 6 anos. Trata-se dos filhos pretos do casal, uma vez que Giovanna e Bruno têm mais um filho, e este foi gerado por eles.

Durante dias e dias, na mídia brasileira, nas rodas de conversas, nos corredores das universidades, nas mesas dos bares e restaurantes, nas interações das redes sociais, um dos assuntos mais comentados foi o episódio supracitado. A repercussão foi de tal ordem, que até o presidente de Portugal, o senhor Marcelo Rebelo de Sousa, condenou o ato feito por sua conterrânea, e pediu desculpas ao casal de brasileiros. E é aqui que inicio nossa conversa, convidando-vos a entrarmos em uma reflexão sincera.

Dá travessia do Atlântico em tumbeiros, sequestrados de sua terra mãe, aos maus tratos do cativeiro em terras outras, o povo preto sempre reclamou das péssimas e desumanas condições em que eram submetidos. Não obstante, além dos mais de 300 anos de cativeiro, o povo preto não foi inserido na sociedade brasileira, ao contrário de outros povos que foram convidados a virem morar no Brasil, cercados de regalias e benesses concedidas pelo estado brasileiro, para ao fim e ao cabo, clarear a população, e apagar todo vestígio da presença negra, a começar pelo tom da pele.

A atitude de Giovanna ao partir para cima da mulher no restaurante, foi a atitude típica de uma mãe que enfrenta o mundo e quem quer que seja para defender os seus filhos. Eu não me coloco na posição de juiz (e nem poderia fazê-lo), e, portanto, não condeno jamais o que essa mãe fez para defender seus filhos. O que me ocorre é o seguinte: fosse a Giovanna uma mulher preta e/ou menos conhecida, que fizesse exatamente a mesma coisa que ela fez e pelos mesmos motivos, teríamos tal repercussão?! Como não conto a história que não houve, vou contar a que já ocorreu!

Uma mulher preta quando resolve falar, gritar na cara de quem a destrata, ridiculariza, a vê apenas como um objeto laboral e sexual, não raro é vista como desequilibrada, instável, colérica. Consequentemente, diversas pechas são criadas e associadas a essa mulher.

Quantas mães pretas já tiveram que enterrar os seus filhos, muitas das vezes mortos por agentes armados pelo estado, levados a cumprir operações que são vendidas para a opinião pública como de combate ao tráfico de drogas, quando na verdade estão eivadas de preconceitos e racismo institucional?!

Quem consola uma mãe preta que não sabe mais o que fazer para ajudar seus filhos que são vítimas de racismo nas escolas, trabalhos, ruas e diversos espaços dentro da sociedade? Onde estão à impressa e o presidente de Portugal para condenarem juntos, os inúmeros casos de racismo misturado com xenofobia, que os pretos de África sofrem amiúde na antiga metrópole lusitana?! Esses pretos oriundos de antigas colônias portuguesas, que sofreram décadas de extrema exploração, abusos e pilhagens.

Este texto não se destina a criticar Giovanna e nem o Bruno pelo ocorrido, ao contrário, a reflexão que proponho é para entendermos que, quando somos nós que gritamos, levantamos nossas vozes e nossas mãos contra as atitudes vis e escrotas de racistas; quando os xingamos, tomados de raiva e sede de justiça, somos constantemente silenciados e apontados como instáveis, violentos e desequilibrados.

Giovanna vai e deve continuar se levantando sempre contra aqueles que de alguma forma tentarem diminuir os seus filhos, baseados em parâmetros erguidos em pilares racistas, entretanto, ela não pode ser vista como a nova Isabel, até por que, não estamos dispostos a engolir mais um conto de fadas, em que uma branca surge como libertadora dos pretos!

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