Na década de 1980, Jacques Pierre Nora (historiador francês, 1931-) em seu artigo “Entre memória e história: a problemática dos lugares” (publicado em 1983) faz uma reflexão sobre memória e história, onde ele percebe que a sociedade tem necessidade de memória, necessidade de história.
Apresento duas reflexões sobre a mesma questão sob a ótica da Antropologia, uma de Nestor García Canclini (antropólogo argentino, 1939-) e a outra de André Leroi-Gourhan (antropólogo francês, 1911-1986).
Canclini em seu livro “Leitores, Espectadores e Internautas” (2008) faz a seguinte observação:
“É curioso: chegamos a uma época de vasta reflexão sobre a memória. Novamente se repensa o holocausto, as ditaduras do cone sul na América Latina, outros países estão redescobrindo o que fazer com o seu passado. Mas tais reflexões nacionais tornam-se globais, graças aos museus com vocação de internacionalizar-se.”
No livro “Leitura e interpretação em Biblioteconomia” (2000), a autora e bibliógrafa, Clarinda Rodrigues Lucas, citando Leroi-Gourhan (1990), destaca que:
“A memória é um elemento essencial do que costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje […] A memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder […] Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos (orais ou audiovisuais) não escaparam à vigilância dos governantes, mesmo se podem controlar esta memória tão estreitamente como os novos utensílios de produção desta memória, nomeadamente a do rádio e a da televisão.”
Segundo o professor de História, Ulpiano T. Bezerra de Meneses, no capítulo “A crise da Memória, História e Documento: reflexões para um tempo de transformações” (livro: Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas, organizado por Zélia Lopes Silva, em 1999) há uma crise da memória na sociedade ocidental e as suas marcas salientes estão presentes nas seguintes dimensões: a epistemológica, a técnica, a existencial, a política e a socieconômica. Realmente, estamos vivendo num período de profundas transformações, que pode ser comparado à revolução de Gutenberg. A imprensa revolucionou, passou a imprimir a memória coletiva, exteriorizando a memória individual e, assim, passaram a existir, nos séculos XVIII e XIX, as memórias nacionais e os arquivos públicos. Na obra “História e memória” (2006), Jacques Pierre Nora (historiador francês, 1931- ) afirma que “A memória coletiva e a sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos.” Para ele, os monumentos são herança do passado e documentos, uma escolha do historiador.
No século XIX, o volume de informação já era grande e surgem as primeiras formas de memória eletrônica: as fichas dos arquivos, das bibliotecas e dos museus e, no século XX, vem a Documentação para tentar solucionar o “caos documentário” aliado aos computadores. A memória das máquinas veio para facilitar as nossas atividades diárias e, ao mesmo tempo, ela ampliou e diminuiu a nossa memória, pois a tornou muito mais seletiva. Nos últimos anos, com a aceleração crescente da tecnologia, cada vez mais os termos memória e história vem sendo discutidos pelo meio acadêmico, pela sociedade e, até mesmo, pelos meios de comunicação.
Neste ano de 2013 foi organizado o I Seminário Nacional de Memória Social: Memórias em Disputa na Contemporaneidade, pela Universidade do Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mais precisamente pelos discentes do Programa de Pós Graduação em Memória Social (PPGMS). Nos dias 08, 09 e 10 de maio, docentes e discentes de várias universidades brasileiras discutiram a temática sob a visão das mais recentes pesquisas nos variados aspectos, desde Educação, Literatura, Patrimônio, Espaço até Movimentos Sociais das sociedades contemporâneas. O objetivo do seminário era promover o intercâmbio entre as diferentes áreas e o debate entre os pesquisadores das Ciências Humanas.
Tal evento, segundo as Professoras Dr.ª Vera Lucia Dodebei e Dr.ª Evellyn Goyannes Dill Orrico (coord. do PPGMS/UNIRIO), merece destaque por ter sido organizado pelos discentes e por abranger as quatro áreas do programa que são: memória e patrimônio; memória e espaço; memória e linguagem e; memória e subjetividade e criação. Como é sabido, o PPGMS é destaque a nível nacional pelo seu programa, formado por docentes especialistas na área de memória. Segundo as mesmas, o curso de mestrado foi criado em 1995 e de doutorado em 2005, tendo uma vocação transdisciplinar, pois a “memória também é presente e futuro”.
Segundo um dos organizadores do seminário, Marcos Barreto (pedagogo, na época discente do PPGMS e hoje mestre em Memória Social), o seminário começou a ser planejado e organizado em meados de 2012. Na programação, constavam mesas redondas, apresentação de trabalhos e lançamento/divulgação de livros. Contou com um pouco mais de 120 inscritos de diversas áreas, principalmente, de ciências humanas e de ciências sociais aplicadas. Havendo inscrição de representantes das quatro regiões brasileiras, com a participação das seguintes universidades: UNIRIO, UFRJ, UFF, UERJ, UNIGRANRIO, UFC, UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA, UFMG, UFJF, UEPA, IFRS, UFRGS, UNILASALLE, UFPEL, UNISC, UEM. O auditório Paulo Freire (CCH/UNIRIO) ficou repleto de ouvintes durante o evento. A divulgação foi realizada através da Internet (e-mails trocados, site e facebook).
O evento foi organizado em 9 grupos de trabalho (GT1 e GT2 – Memória e Educação, GT3 – Patrimônio, Memória e Novas Tecnologias, GT4 – Memória e Minorias Sociais, GT5 – Memória e Subjetividades, GT6 – Acervo e documento: usos, reusos e conservações, GT7 – Literatura e Memória, GT8 – Memória e Identidade e GT9 – Memória e Movimentos Sociais) e teve 51 trabalhos aprovados. Teóricos como Pierre Nora (historiador, 1931-), Maurice Halbwachs (sociólogo, 1877-1945), Michel Foucault (filósofo, 1926-1984), Roger Chartier (historiador, 1945-), Jacques Le Goff (historiador, 1924-), Walter Benjamin (filósofo e sociólogo, 1892-1940), Pierre Boudieu (sociólogo, 1930-2002), Paulo Freire (educador e filósofo, 1921-1997), Marilene Chauí (filósofa e historiadora, 1941-), entre outros, foram citados pelos presentes, tanto nas mesas redondas quanto nos trabalhos apresentados. Muitos destes não eram apenas pesquisas acadêmicas, mas também fruto de trabalhos de extensão realizados junto à comunidades.
O que ficou evidente durante este encontro foi a relação entre passado, presente e futuro, não podendo construir este último sem os outros, que a identidade não é um processo autônomo e espontâneo. Walter Benjamin (filósofo e sociólogo judeu alemão) aborda isto em sua obra “Magia e técnica, arte e política” (1984) em que faz uma reflexão sobre a fotografia. Para este, o ato de fotografar não é inócuo. Sob essa ótica, Pierre Nora (na obra citada acima) afirma que a formação de acervos e coleções também não é. Por isso, devemos estar atentos ao jogo do discurso, pois a mídia e a sociedade têm uma tendência à relativização que gera o senso comum, o mito e, até mesmo, ideias falsas que não condizem com a realidade. Que a definição de certos termos como Educação Patrimonial é algo complexo, pois é um processo polissêmico e abrangente.
Podemos dizer, a partir da concepção de Pierre Nora (na obra citada), que todos os participantes (inscritos ou não) estavam celebrando um evento sobre memória social, sendo portanto um lugar de memória e um acontecimento histórico no âmbito acadêmico.
Ficou como resultado deste evento o quanto é importante e enriquecedor trabalhar com diversas áreas em conjunto, que deve haver o respeito à diversidade e à pluralidade e que todos, sem exceção de cor, raça, crédulo e opção sexual, tem o direito à educação, à memória e à cidadania, onde o profissional da informação (seja ele, arquivista, bibliotecário e/ou museólogo) tem um papel fundamental, pois ele, ao mesmo tempo, exerce papéis de guardião, de organizador, de disseminador e de mediador entre a informação e o sujeito.