Não há o que seja mais irritante do que explicar cosas óbvias; é como ter que explicar piada, não tem a menor graça! O Brasil do atual governo está bem assim, sem graça, forçando-nos a explicar o que qualquer pessoa que cursou o antigo ginásio (e eu cursei o ginásio) sabe sem maiores dificuldade; é matéria obrigatória!

Parece piada de mau gosto, mas infelizmente é a mais pura e triste realidade. O atual governo federal tem lançado mão de instrumentos totalitários visando intimidar quem ele (governo) entende ser opositor como, por exemplo, o entulho que nos foi imposto como herança da ditadura, também chamado de Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170/1983).

A famigerada lei (que nem é de toda dispensável, mas já peguei ranço) tem sido acionada amiúde por membros do governo federal, bem como por alguns mais entusiasmados simpatizantes. Sem sombra de dúvida, o ex-ministro da justiça, o senhor André Mendonça, já fez uso de diversos dispositivos desta lei, ordenando à Polícia Federal que abrisse inquéritos contra cidadãos brasileiros que foram de encontro a atitudes do presidente.

A última patuscada por parte do senhor André Mendonça foi a seguinte: Guilherme Boulous, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), foi intimado pela Polícia Federal a comparecer no dia 29 de abril de 2021, às 16h, na sede da corporação na cidade de São Paulo. Motivo da intimação: suspeita de ameaçar o presidente da república por uma mensagem no twitter em 20 de abril de 2020; eis a íntegra da mensagem: “Um lembrete para Bolsonaro: a dinastia de Luiz XIV terminou na guilhotina…”

A fim de contextualizar a mensagem de Boulos, vamos voltar um dia na contagem destes fatos, para entender de onde surgiu a moção para a frase. No dia 19 de abril de 2020, o senhor presidente da República, utilizando do aparato estatal que visa dar condições de segurança ao chefe do executivo nacional, foi ao encontro de manifestantes travestidos de torcedores da seleção brasileira de futebol em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília (era dia do Exército).

A turma que se aglomerava em frente ao “Forte Apache”, ignorando as recomendações das autoridades sanitárias, ostentava faixas e cartazes nada republicanos, pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso Nacional, a volta do Ato Institucional número 5, e um golpe militar com Bolsonaro na presidência.

Bom, o presidente em pessoa estava nesse ato, e não apenas isso: em uma espécie de desfile a carro aberto, ele passou no meio da multidão e fez o seu discurso beligerante e inteligível de sempre, para delírio dos que dispunham de tempo para estarem ali ouvindo toda a sorte de falas golpistas e antirrepublicanas. O que deu para entender do discurso do presidente, foi o gatilho que fez Guilherme Boulos escreve a mensagem no twitter. Bolsonaro disse: “eu sou a constituição!”

Acredito que até aqui já deu para compreendermos no que se fiou a mensagem de Boulos, porém, usando dos meus prematuros conhecimentos de didática, me disponho a fazer pontes com fatos históricos para melhor compreensão dos caros leitores, e quem sabe de membros da Polícia Federal ou até mesmo do reverendo pastor André Mendonça. Vamos aos fatos históricos.

Ao dizer: “a constituição sou eu”, Bolsonaro, que não é burro como muitos acreditam, evocou uma personagem histórica muito influente no século XVII na Europa, qual seja, o rei Luiz XIV. Ilustre membro da casa dos Bourbon, Luiz XIV foi gerado depois que seus pais, Luiz XIII e a rainha consorte Ana (da Espanha), já tinham mais de vinte anos de casamento, quando todos pensavam que o rei não teria herdeiros diretos. Seu nascimento foi recebido pela Corte como um presente de Deus, algo que não foi oculto do jovem monarca.

Assumindo o papel de “presente divino”, Luiz XIV, uma vez coroado rei da França, fez uma série de atos administrativos (juntamente com seu primeiro ministro) que deram mais força econômica para à França. Com o sucesso das suas medidas, o rei atraiu para si toda a administração do reino, cunhando frases do tipo: “o estado sou eu”. Com a fama e os avanços de França, não sessaram de aparecer alcunhas que se referiam ao rei, tais como: “o grande rei” e “rei sol”.

Por mais que as medidas de Luiz XIV tenham gerado alguns indícios de crescimento econômico no país, ao passo de expandir o Exército e a Marinha, muitas foram as frentes de batalhas que à França encapou, no que resultou gastos formidáveis, seguidos de fome e miséria para a população do chamado “Terceiro Estado”. Luiz XIV, que era a personificação do absolutismo francês, foi sucedido por Luiz XV e Luiz XVI, esse último guilhotinado pela população que derrubara à Bastilha e inaugurava uma outra forma de organização do Estado Francês.

Como se vê, o absolutismo inaugurado por Luiz XIV, terminou na guilhotina com Luiz XVI. Qualquer pessoa com poucos conhecimentos em português saberá interpretar a mensagem de Guilherme Boulos como um alerta, não como uma ameaça. Todavia, tentando entrar no pensamento deste povo que ocupa cargos no governo federal, fico imaginando como que Boulos, presidenciável em 2018, conseguiria uma guilhotina, a instalaria em praça pública, levaria o presidente refém, mesmo com todo corpo de seguranças que o chefe do executivo nacional dispõe, e o decapitaria a olhos vistos. É muita ficção que este povo assiste.

O curioso é não ver a mesma disposição do reverendo André Mendonça em acionar o entulho autoritário travestido de lei, para o ataque (literalmente) de mascarados que estavam “acampados” na esplanada dos ministérios, e que lançaram fogos de artifícios na sede do Supremo Tribunal Federal em junho passado. Não se ouviu nenhuma mensagem do ex-ministro da Justiça quando pessoas em canais da internet ameaçaram, em alto e bom som, agredir e matar membros do STF, o presidente da Câmara a época (Rodrigo Maia) e opositores do governo.

Pasmem-se! A mesma lei que agora é acionada a cada espirro que opositores do governo dão, foi ignorada quando os patriotas que hoje poluem as redes sociais, chamavam a ex-presidenta da República de inúmeros impropérios que eu me reservo no direito de não os reproduzir. Essa mesma mulher que fora muitas vezes retratada em figuras em posições ginecológicas em carros em todo Brasil, não teve sua honra defendida pela tal lei de segurança nacional.

Sendo assim, como que um governo majoritariamente masculino (e evidentemente misógino), com um bando de marmanjos que ficam excitados ao verem armas, frequentadores assíduos de clube de tiros; um governo com mais militares com cargos do que os governos do regime militar, com ideários de supremacistas, com falas absolutista, se ofende com uma metáfora feita há um ano? Acionam um organismo de estado para tomar depoimento por conta de uma frase metafórica?

É muito mimimi num mar de testosterona. “Até quando vão ficar chorando”, “é preciso deixar de ser um país de maricas”. Não era este o país chato, em que tudo o que se falava era politicamente correto? Onde estão os defensores da zueira, das piadas que se podiam fazer antes; cadê os arautos do sem mimimi, os liberais? O presidente vive dizendo para enfrentarmos o vírus (que já matou mais de 380 mil pessoas no Brasil), mas não conseguem enfrentar uma guilhotina metafórica sem apelar para a intimação; que exemplo de macho alfa militar!

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