Com o objetivo de encorajar as pessoas, especialmente os jovens, a descobrirem os prazeres da leitura e conhecerem a enorme contribuição dos autores de livros através dos séculos, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) criou o “Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor”, comemorados nesta sexta-feira, 23.

Segundo consta, uma tradição catalã ligada aos livros já existia no dia 23 de abril, e parece ter influenciado a escolha da Unesco, o que ocorreu em Paris, em 1995, durante o seu XXVIII Congresso Geral. Na tradição catalã, no dia de São Jorge (23 de abril), é costume dar uma rosa para quem comprar um livro. Trocar flores por livros já se tornou tradição em outros países também.

Mas o dia foi escolhida mesmo por ser a data da morte de três grandes escritores da história: William Shakespeare, Miguel de Cervantes, e Inca Garcilaso de la Vega. 23 de abril é também a data de nascimento ou morte de outros autores famosos, como Maurice Druon, Haldor K.Laxness, Vladimir Nabokov, Josep Pla e Manuel Mejía Vallejo.

Fora estes aspectos históricos/pitorescos, não há praticamente nada a se comemorar no setor aqui no Brasil. Isso porque o governo federal tem ameaçado a área de diversas formas, indo da proposta de taxação das publicações, por meio de proposta de “reforma tributária”, à interferência ideológica no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2023), o mais importante programa de distribuição de livros do país.

A propósito, a polêmica sobre a proposta de taxação das publicações, o que pode encarecer livros e revistas em até 12%, voltou ao centro do debate nos últimos dias quando a Receita Federal publicou um documento em que diz que os livros podem ser taxados na “reforma tributária”, pois, segundo a instituição, “não são consumidos pelos brasileiros mais pobres”.

Inclusive essa afirmação ensejou o requerimento, já aprovado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, de audiência pública com o tema “taxação de livros e o direito à educação e à cultura”, a ser realizada no dia 26 de abril, das 9h às 12h, ocasião na qual serão convidados a dar explicações o secretário especial da Receita Federal do Brasil, José Barroso Tostes Neto; o ministro da Educação, Milton Ribeiro e o ministro da Cidadania, João Roma.

Numa audiência pública na Câmara dos Deputados, realizada ano passado, o pai da proposta de “reforma tributária”, o ultraliberal ministro da Economia, Paulo Guedes, ao defender o retorno da oneração dos livros, disse que isso poderia ser compensado com a distribuição de livros aos que não poderiam por estes pagar, sem apresentar proposta específica para isso.

Para que se possa entender esse debate, é importe discutir qual foi a finalidade do legislador originário quando da elaboração da proposta que resultou nesta regulamentação, algo já previsto na Constituição Federal de 1946, e que se aprimoraria nas Constituições seguintes, mesmo na de 1969, auge do regime civil-militar, com toda a sua sana repressora.

A Constituição Federal de 1946, a partir de uma Emenda apresentada pelo então deputado federal Jorge Amado, um já consagrado escritor, estabeleceu ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “lançar impostos sobre” papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros.

A ideia era impedir que o preço destas mercadorias, o que poderia ser agravado por eventuais aumentos, pudesse ser um entrave para a circulação das informações, que se dava em grande medida por veículos impressos, e o acesso ao conhecimento, que chegava às escolas e universidades por meio dos livros.

Outra preocupação do legislador originário quando desonerou o livro, os periódicos e o papel destinados à sua impressão era garantir, de alguma forma, que governos autoritários não pudessem se utilizar do aumento dos impostos sobre estes, e consequente encarecimento, para que as pessoas não pudessem se informar e se instruir.

É bem verdade que hoje em dia uma parte considerável das informações circula na internet, o que, teoricamente, colocaria essa discussão por terra. No entanto, quando estamos falando de desoneração de livros e periódicos impressos, também estamos falando dos seus similares virtuais. Isso porque estes foram equiparados em decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) no que se refere à isenção de impostos.

Assim, quando lemos na Constituição Federal de 1988 que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não podem instituir impostos sobre os livros, os jornais, e os periódicos, estamos lendo que estes impostos também são proibidos aos livros e aos periódicos eletrônicos, bem como seus equipamentos de leitura, exatamente para garantir a finalidade do legislador originário, que era a de permitir a circulação de ideias sem perigo da ingerência de governos.

PNLD em risco

Nesta quinta-feira, 22, O Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA) e a Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB) divulgaram um manifesto no qual expressam preocupação com a publicação, ocorrida no dia 12 de fevereiro deste ano, do Edital Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2023).

Para as entidades, o referido edital significa a negação e a destruição dos critérios de instrução, avaliação e divulgação dos livros didáticos construídos e conquistados a partir de longo debate acadêmico e de um denso diálogo democrático entre as áreas envolvidas.

As entidades afirmam que neste edital percebe-se uma perda significativa dos aspectos formais e progressistas dos livros didáticos, “resultando na fragilização de princípios imprescindíveis para a construção da cidadania e da democracia nos ambientes escolares”. Como exemplo, citam que em 114 páginas do documento, a palavra/conceito “democracia” aparece apenas uma vez.

Ainda de acordo com as entidades, as influências políticas da atual gestão federal parecem determinar a destruição das bases dos livros didáticos a partir da imposição de censura, como se vê, por exemplo, no posicionamento da Frente Parlamentar da Agropecuária (Bancada Ruralista) ao pressionar, em reunião, o Ministro da Educação para a retirada de livros didáticos que associem o agronegócio à devastação da natureza.

Projeto autoritário em curso

No ano passado várias entidades do setor editorial criticaram o programa “Conta pra mim”, lançado pelo Ministério da Educação (MEC) no final de 2019. Um manifesto, assinado por diversos profissionais e entidades, dizia que o programa “expõe mais uma face do projeto autoritário em curso no país” ao “privilegiar narrativas que estabelecem verdades prontas e fechadas ao invés de proporcionar um repertório que contemple os conflitos, os desejos, os medos, as alegrias e os sonhos humanos, com convites para caminhos plurais”.

De acordo com a portaria que instituiu o programa, o “Conta pra mim” integra a Política Nacional de Alfabetização e tem como objeto a efetivação da “promoção de práticas de literacia familiar”, bem como das disposições contidas no chamado “Marco Legal da Primeira Infância”, instituído pela Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016.

A portaria que institui o programa conceitua como “literacia familiar” o “conjunto de práticas e experiências relacionadas com a linguagem, a leitura e a escrita, as quais a criança vivencia com seus pais ou cuidadores”, estabelecendo como público-alvo “todas as famílias brasileiras, tendo prioridade aquelas em condição de vulnerabilidade socioeconômica”.

Sociedade civil alijada

Também em 2019 um decreto (Decreto nº 9.930, de 23/07/2019) extinguiu o Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) provocando preocupação entre as profissionais e demais envolvidos com a área, porque a medida limitou a participação da sociedade civil nas decisões do governo.

Pelas mudanças, o PNLL passou a ser gerido apenas pelo Conselho Diretivo e pela Coordenação-Executiva, cujos representantes passaram a ser designados em ato conjunto dos Ministros da Cidadania e da Educação para exercerem o mandato pelo período de dois anos, admitida uma recondução por igual período. Ou seja, o que se deu na prática foi a limitação da participação da sociedade civil, tornando as políticas públicas para o setor menos democráticas.

Nessa linha, a Política Nacional de Leitura e Escrita – PNLE (Lei nº 13.696/2018) acaba por virar letra morta quando o governo sequer se empenha na elaboração do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), uma das previsões da referida Lei. Como prevê o § 1º do artigo 4º da Lei, o PNLL será elaborado nos seis primeiros meses de mandato do chefe do Poder Executivo, com vigência para o decênio seguinte, ou seja, o PNLL deveria ser elaborado nos seis primeiros meses do governo Bolsonaro, o que nunca aconteceu.

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