Cá estou, riscando com uma caneta Bic vermelha os últimos dias do calendário de mesa. Por quatro anos aspirei este desfecho. Diante do caos diário implantado por Bolsonaro, só me restava esperar a chegada de dezembro de 2022, com a possibilidade de um novo titular para presidente da república. A eleição era a última aposta em dias melhores, sem lágrimas, sem mais visitas ao psiquiatra.

É claro que temia a vitória de Bolsonaro. Havia muita gente de perto o apoiando, tirando de mim um silêncio de susto e o pensamento incrédulo: “E as feridas?” Porque para onde me virava, só via gente doída, machucada pelas palavras, atos e omissões do Presidente. Sim, ele carrega uma culpa tremenda, seja pelo tardar das vacinas, seja pela corrupção no MEC. Entretanto, talvez a pior das culpas tenha sido ser incoerente com o que apregoava. Por conhecê-lo de velhos carnavais – compartilhamos, muitas vezes, a mesma mesa de café da manhã em um dos restaurantes da Câmara dos Deputados –, não esperava que Bolsonaro pudesse defender negros, indígenas ou travestis. É do seu sangue o sectarismo. Foi a divisão que o elegeu por 28 longos anos no Parlamento. Contudo, imaginava que pudesse implantar políticas públicas alinhadas com a interpretação cristã fundamentalista que ele apregoava para o seu eleitorado no chiqueirinho do Alvorada.

Esperei que Bolsonaro criasse creches, justificando, assim, seu discurso contrário ao aborto. Nada foi feito para as meninas estupradas, exceto o constrangimento.

Esperei que Bolsonaro investisse em escolas militares com qualidade de primeira. Ele se restringiu a militarizar escolas em bairros periféricos, criminalizando, assim, o corpo pobre e negro de meninos e meninas, sem aplicar um real a mais em tais estabelecimentos. Ah! E também, claro, garantiu uma vaga para a Laurinha no chiquérrimo Colégio Militar de Brasília, sem que ela se submetesse a processo seletivo.

Ouvindo, hoje, seu discurso na Biblioteca do Alvorada, concluí o óbvio: Bolsonaro é um tartufo, seja como cristão, deputado ou presidente. Oxalá seja por nós esquecido nos próximos dias de festa, e, após o retorno do Judiciário, responda com o rigor da lei. É o que esperam os mortos pela Covid, as jornalistas agredidas, os gays ridicularizados, os negros vilipendiados e os indígenas escorraçados de sua terra. Espero, festivo, o triunfo da Justiça, como um dos dançarinos da tapeçaria de Di Cavalcanti que decora a resiliente Biblioteca do Palácio da Alvorada.

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