O título deste artigo* guarda em si uma metáfora, pois são os elementos componentes da biblioteca que normalmente se consideram como forma e expressão do conhecimento. E não apenas os elementos da biblioteca, mas também os que compõem todas as demais instituições que, com a biblioteca, entretêm relações de parentesco, como arquivos, museus, centros de documentação ou informação, reais ou virtuais. Mas, como as metáforas existem para serem usadas, podemos ir em frente, na certeza de que estas nossas cogitações, por despretensiosas, não haverão de suscitar contestações de ordem lógica ou epistemológica.

Todos sabemos que uma das principais consequências sociais da invenção da escrita e de suportes portáteis dos registros escritos foi a formação de coleções desses registros. Essas coleções são as bibliotecas, cuja origem, portanto, é muito antiga. A sobrevivência da biblioteca como instituição social, adaptando-se a todo tipo de mudanças, por si só bastaria para deixar evidente que sempre lhe coube, e ainda lhe cabe, desempenhar importante função, embora essa função nem sempre alcance pleno reconhecimento em todas as sociedades.

Basicamente tidas como repositórios de materiais impressos, tem-se uma visão mais adequada de sua função quando a encaramos da perspectiva cultural, como memória coletiva do grupo social e, por extensão, da própria humanidade, e da perspectiva de serviço público voltado para o fornecimento de informações/conhecimentos necessários ao processo educacional, ao exercício de atividades profissionais, e de meios que ensejem a fruição do saber e o prazer da leitura.

Para tornar mais clara nossa compreensão do papel da biblioteca, talvez valha a pena apelar, como já fizeram inúmeros outros autores, para uma analogia com o ser humano. Este, em sua memória, é capaz de armazenar conhecimentos, informações, experiências de sua vida pessoal, enfim, o arquivo de sua existência. Ao morrer, porém, por mais rica e avantajada que seja sua memória, tudo isso, todas essas informações desaparecem, apagam-se, sem chance de recuperação. Ou, nas palavras do androide de Blade runner, nas cenas finais do filme, quando se esgota o prazo fixado para sua duração, que lamenta que todos aqueles momentos repletos de aventuras, de toda uma vida, “estarão perdidos como lágrimas na chuva”.

Por exemplo, em sociedades ágrafas, cada indivíduo, por meio da transmissão oral da cultura, toma-se depositário da história do grupo. A morte do último indivíduo do grupo leva consigo toda a memória do grupo. Em que paragens se esconderam as histórias de nossos antepassados brasileiros: jaicós, garanhuns, goitacases, goiases, guaianás, tamoios, tubinambás, xacriabás e tantos outros que desapareceram no vórtice triturador da expansão europeia? Que resta de sua memória?

Foi a escrita que permitiu a fixação de forma mais ou menos perene, a depender de seu suporte, de tudo aquilo que antes se confiava à memória individual, ‘endossomática’. E, dos diferentes suportes que se utilizaram e se utilizam para a escrita, foi o papel, principalmente quando empregado na forma de códice ou livro, que permitiu que se criasse uma memória social duradoura. Uma memória dita ‘exossomática’, isto é, externa ao corpo do indivíduo.

A leitura dos primeiros livros publicados sobre esta terra do Brasil, como os de Hans Staden ou Jean de Léry, ou, melhor ainda, a excelente compilação baseada em vários desses autores que escreveram sobre nossos primeiros tempos redigida no século XIX por Robert Southey, e que relatam os encontros e desencontros do europeu dito civilizado com os brasileiros selvagens, nos leva a presenciar o choque entre a cultura ágrafa dos indígenas e a cultura letrada dos europeus. Os brasileiros falam de um passado que se confunde com sua própria mitologia e desse passado talvez não tivessem noção de quão passado ele era. Já os europeus possuíam sua história, história escrita, e faziam história. Pero Vaz de Caminha que o diga.

Mircea Eliade sintetizou esse drama muito bem ao dizer que “a mais importante diferença entre o homem das sociedades arcaicas e tradicionais, e o homem das sociedades modernas, com sua forte marca de judeu-cristianismo, encontra-se no fato de o primeiro sentir-se indissoluvelmente vinculado com o Cosmo e os ritmos cósmicos, enquanto o segundo insiste em vincular-se apenas com a história”.

Isso, com outras palavras, o padre Antônio Vieira teria sugerido quase três séculos antes, em seu magnífico Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real, em 1665, ao nos lembrar que, mesmo analfabetos, os camponeses e os marinheiros acham “documentos nas estrelas” para sua lavoura e sua navegação, respectivamente. E os leem, pois entendem as estrelas. Podemos dizer que Vieira se antecipou, em mais de 200 anos, ao poeta Bilac que alardeava, ser possível, sem perder o senso, ouvir as estrelas, entendê-las e até com elas conversar.

Impôs-se a mim essa comparação entre Eliade e Vieira porque me pareceu que ambos estão a lidar, direta ou indiretamente, com a questão de que não podemos depreciar ou menoscabar o conhecimento que não foi registrado de forma gráfica, de que fora das bibliotecas não há salvação. Se se pudesse falar de opção, diríamos que seria uma escolha entre vincular-se ao cosmo ou à história. Parece-me oportuno lembrar que a compreensão e a valoração das bibliotecas devem ser feitas no contexto histórico e social onde elas surgiram e que as justificam.

Não deixa de ser razoável supor que carregamos o jugo, a canga, da palavra escrita que, se pode ser instrumento de libertação da consciência, também aprisiona essa consciência a um determinado e único passado ou pode ainda agrilhoar-nos a um presente de intolerância, de ódios, de lutas e fanatismos.

Desde a mais antiga coleção de tábulas de argila dos assírios e babilônios até as mais avançadas concepções de bibliotecas virtuais ou digitais, todas giram em tomo da mesma ideia de memória exossomática: o local onde se reúnem dados, informações, conhecimentos, em suma, mentefactos (obras criadas pela mente), de modo organizado e dinâmico, tendo em vista sua eventual recuperação e utilização.

É lógico que a visão que hoje temos da biblioteca resulta de um longo processo histórico, que se iniciou há provavelmente mais de cinco mil anos. Talvez tenha surgido num templo. Talvez, portanto, sua origem esteja associada às necessidades litúrgicas de antigas religiões, à transmissão de princípios e preceitos, à preservação do conhecimento religioso. E talvez também às necessidades do Estado, embora muitas das antigas bibliotecas identificadas como tais se coadunem mais com a ideia que hoje temos de um arquivo de documentos.

Desde que as práticas educacionais passaram a ter caráter permanente, sistemático, institucional, em geral vinculadas à formação de profissionais, o que remonta ao primeiro século deste milênio, quando começaram a surgir as universidades europeias, constata-se que as bibliotecas logo se inseriram nesse processo como instituições facilitadoras do acesso aos registros gráficos.

Durante quase meio milênio esses registros, manuscritos, eram praticamente os únicos recursos didáticos de que dispunham professores e alunos. A biblioteca era muitas vezes não só responsável pela coleta e organização dos textos, mas também pela produção desses textos. Há quem defenda que a biblioteca deveria voltar a desempenhar agora essa mesma função de antes, principalmente no que se refere à informação científica.

O argumento é de que, com a possibilidade de tomar disponíveis textos completos na Internet, que, como mecanismo de difusão seria mais eficiente do qualquer sistema de distribuição de textos impressos, os autores poderiam desviar-se do obstáculo representado pelo processo de publicação formal em papel e deixar os textos hospedados em algum sítio da rede. A preparação dos textos e sua hospedagem passariam a ser responsabilidade da biblioteca.

Coloquemo-nos agora em outro ângulo de observação. Desse ângulo a biblioteca nos mostra uma face em que ela, como instituição maior do que a soma de suas partes, se configura como uma forma de conhecimento, ou melhor, como um dos processos sociais que propiciam determinada modalidade de obtenção de conhecimento, seja científico, técnico, artístico ou religioso. Assinalo que estou, no caso, referindo-me não só ao conhecimento das ciências, das técnicas, das artes ou das religiões, mas também às formas como as ciências, as técnicas, as artes ou as religiões percebem o mundo objetivo e subjetivo.

O que se pretende sugerir é que a modalidade de obtenção de conhecimento que a biblioteca propicia resulta da exposição de seu usuário a um universo de informações multiformes, polifacéticas, inter e multidisciplinares. Mas isso não quer dizer que ela esteja em condições de suprir todos os conhecimentos e todas as informações necessárias à construção do indivíduo, do cidadão.

Tomando emprestada a diferenciação feita por Wittgenstein, diríamos que a biblioteca é mais pertinente à busca e obtenção do conhecimento que se preocupa com “o quê” do que à busca e obtenção do conhecimento que se preocupa com “o como”. Este resulta mais do processo de interação entre as pessoas, como em quase todas as situações de aprendizagem de técnicas, de habilidades, enquanto o primeiro, que é o conhecimento que lida com proposições, forma-se e subsiste pelo diálogo tácito entre autores e leitores.

Talvez a biblioteca particular, a biblioteca de trabalho que o estudioso mantém em sua casa, seja um reflexo, se o for, do processo de sua formação intelectual, de sua filosofia, de sua ideologia, de seus gostos e preferências. Talvez ali prevaleça uma espécie de antilei de Gresham, aquela que diz que na economia a má moeda afasta a boa moeda.

Sem o julgamento de mérito de boa ou má leitura, poder-se-ia dizer que, na biblioteca particular, tende a predominar o livro com que seu autor concorda ou com o qual se identifica, e que este, portanto, expulsa todos os demais. De qualquer modo, ela, a biblioteca particular, por certo oferece a seu dono as possibilidades de conhecimento que ele almeja dela obter, ou já obteve.

Já a biblioteca destinada ao uso do público, seja ele geral ou especializado, não deve ser o lugar onde somente se permite a presença do mesmo tipo de discurso, da mesma e única visão de mundo. Essa talvez seja uma aspiração utópica, pois a história está repleta de casos em que instâncias de poder, seja ele temporal ou espiritual, se arvoraram, ou se arvoram, juízes da verdade e partem para a exclusão de livros das bibliotecas. Essa exclusão pode assumir a forma direta da queima de livros ou bibliotecas, sua inclusão em listas de livros proibidos ou seu banimento para os infernos, como se denominam os lugares das bibliotecas onde ficam depositados os livros ditos licenciosos.

Seria o contacto com a multiplicidade e variedade infinita dos conhecimentos, isto é, de todas as percepções e entendimentos possíveis da realidade, o melhor meio de vivificar o próprio processo de produção de conhecimentos, impedindo seu entorpecimento, seu enrijecimento em fórmulas e esquemas ortodoxos e dogmáticos que podem levar à intolerância e ao sufocamento do direito de expressão do outro.

Assim, a biblioteca outorga-nos a oportunidade de entrar num processo de conhecimento em que as avenidas são múltiplas, às vezes até labirínticas, mas onde nosso percurso no terreno das ideias e informações pode dar-se tanto em sentido sincrônico, quanto diacrônico, singular, quanto plural, afirmativo, quanto negativo, antitético ou não, indisciplinado ou subserviente, ousado ou conformista.

Além disso, a biblioteca nos permite o feliz ensejo de encontrarmos algo que não esperávamos ali encontrar e que surge diante de nossos olhos com a força de uma revelação. Referimo-nos ao fenômeno da serendipidade, àquele acaso maravilhoso que nos coloca diante de uma ideia, de uma visão de mundo, de uma perspectiva diferente, com que antes não atinávamos e que agora descerra para nossos olhos uma nova forma de encarar a realidade ou apresentar nossas ideias.

Um bom exemplo de serendipidade seria aquele em que o guerreiro, ferido dos embates no campo de batalha, cansado do ócio a que o força a longa convalescença, em seu castelo de Loyola, pede, para passar o tempo, que lhe deem romances de cavalaria para ler. Se ali houvesse sido encontrado algum Amadis, algum Lancelote ou Os doze pares de França, talvez seu destino houvesse sido similar ao de Dom Quixote. Mas, como só foi encontrada uma vida de Cristo e urna hagiografia, o caminho que se lhe abriu foi o da conversão.

Serendipidade, acaso, coincidência ou desígnio da Providência, o fato é que, embora isso nem sempre leve à conversão dos gentios, o feliz encontro com um livro inesperado é ainda um bom motivo para o suave exercício de browsing entre as estantes de uma biblioteca, a manusear aleatoriamente os títulos que surgem à nossa frente, guiados apenas pelo sutil liame da classificação bibliográfica, que, no mundo da serendipidade ideal, seria muito menos específica do que a forma praticada por alguns bibliotecários.

Desse mesmo ângulo, da biblioteca como instituição social, podemos vê-la como expressão do conhecimento. Inicialmente como expressão dos esforços, engendrados na prática social, em busca de garantir a perenidade, transmissão e reprodutibilidade do próprio saber em suas manifestações individuais e sociais. Ela é o resultado da busca intelectual de um mecanismo que pudesse garantir, como já dissemos, de forma externa à memória individual, a conservação e transmissão das criações do espírito humano.

Ela é, portanto, expressão concreta desse tipo de conhecimento que, em inúmeros setores, está voltado precipuamente para a ordenação do universo caótico da vida social. Mais do que no campo dos fenômenos que se passam no seio da matéria, estudados pela física e a química, é no campo do social e cultural que mais estamos sujeitos à inexorabilidade dos processos entrópicos, à tendência incontrolável rumo aos estados de desordem, aos estados que tendem ao retomo ao caos.

Esses mecanismos vão desde as técnicas de organização espacial do interior das bibliotecas, de disposição de seus acervos, da pluralidade de propostas de classificações bibliográficas, de linguagens de indexação, de diferentes tipos de publicações e serviços que facilitem e estimulem a utilização da informação. Quando os catálogos de bibliotecas começaram a ser elaborados, ainda na Grécia antiga, era dado o primeiro passo para permitir o conhecimento, em condições menos trabalhosas, do conteúdo das bibliotecas por seus usuários, que a elas se dirigiam pessoalmente e, também, para que interessados que estivessem distantes tomassem conhecimento dos acervos, consultando seu catálogo manuscrito.

O catálogo, composto de representações bibliográficas, funcionava como um simulacro da biblioteca, era, por assim dizer, a virtualidade da biblioteca, embora sem reproduzir o conteúdo dos documentos. Os catálogos impressos de bibliotecas foram um passo adiante, que levou aos atuais catálogos em linha de acesso público.

Assim, como geradora de conhecimentos e tecnologia para a sobrevivência de si mesma, a biblioteca foi a matriz, a semente de onde se originou um componente importantíssimo daquilo que hoje se chama indústria da informação ou indústria do conhecimento.

Como se não bastasse, a biblioteca torna-se geradora de uma mitologia própria, de um catálogo de formas fantásticas e inquietantes. Bibliotecas infinitas, bibliotecas universais, bibliotecas labirínticas, bibliotecas fantásticas, que funcionam como arquétipos da necessidade que o homem teria de apropriar-se do conhecimento de todas as coisas.

De Alexandria a Etienne Louis-Boullée, de Leibniz a H.G. Wells, de Jorge Luis Borges a Umberto Eco, sem esquecer Vannevar Bush e todos os que idealizaram e estão implementando redes globais de comunicação e transmissão de dados e informações, a digitalização das informações, assistimos a um processo em que o mítico alimenta o real levando à recriação da realidade e esta realidade recriada forjando o surgimento de novos mitos.

A inserção da biblioteca no imaginário da maioria das sociedades hodiernas comprova-se até na sua presença num dicionário de símbolos e mitos compilado por especialistas franceses. Ali está: “Biblioteca. A biblioteca é nossa reserva de saber, como um tesouro disponível. Nos sonhos, geralmente, a biblioteca faz alusão aos conhecimentos intelectuais, ao saber livresco. Entretanto, neles depara-se, às vezes, com um vetusto livro de magia, em geral a banhar-se na luz, que simboliza o conhecimento, no sentido pleno do termo, i.e., a experiência vivida e registrada.”

Voltemos a situações concretas. A partir do século XIX tornou-se ainda mais forte o vínculo entre ensino e biblioteca. A afirmação imperativa de Anísio Teixeira, em 1952, de que “não podemos fazer escolas sem livros” era simplesmente um eco tardio de algo que já fora constatado muito tempo antes em outros países.

Temos exemplo disso na própria prática educadora dos jesuítas no Brasil. Desde que aqui chegaram, em 1549, fizeram notar que sem o livro não poderiam exercer sua missão catequética e educativa. Inácio de Loyola, já em 1548, menos de uma década depois da fundação da Sociedade, havia aberto escolas para formação de seus jovens recrutas, na Itália, Portugal, Países Baixos, Espanha, Alemanha e Índia. Assim, era uma ordem experiente com as práticas educacionais e que conhecia a necessidade do livro e das bibliotecas no ensino. Aliás, conta-se que o primeiro investimento feito pela Sociedade de Jesus, logo depois de ter sua criação aprovada pelo papa Paulo III, em 27 de setembro de 1540, teria sido a compra de um prelo tipográfico.

Mas Anchieta não dispunha de livros para seus alunos de Piratininga, e copiava para cada um sua lição numa folha separada. E Nóbrega cobrava o envio de livros e aos poucos, com os livros recebidos da Europa, foram sendo formadas bibliotecas nos diversos colégios da Companhia, as primeiras surgidas em terras deste Brasil. Pelo que se sabe acerca dessas bibliotecas, elas estavam apetrechadas para dar suporte às atividades de ensino. Rubens Borba de Moraes, nosso melhor historiador do livro e das bibliotecas, afirmou:

“Os jesuítas sempre enriqueceram suas livrarias não somente por causa de suas necessidades pessoais, mas, principalmente, pelas responsabilidades que tinham nos seus seminários e colégios, onde recebiam alunos para o aprendizado desde as primeiras letras até os cursos de filosofia, que se equiparavam a verdadeiras faculdades. Consagravam à compra de livros (conforme o lugar) as rendas que lhes provinham dos produtos de suas fazendas (cacau, cravo) e da venda de remédios de suas famosas boticas.”

E é quase certo que essas bibliotecas atendiam à demanda de estudiosos que a elas recorriam sem que tivessem vínculos com qualquer das ordens religiosas. A produção intelectual do Brasil colônia certamente tem muito a dever às bibliotecas dos jesuítas e, naturalmente, das de outras ordens religiosas que aqui atuavam.

Lamentavelmente, com a expulsão dos jesuítas de Portugal, a que se seguiu a supressão da Companhia pelo papa Clemente XIV, em 1773, triste foi o destino das bibliotecas reunidas pelos jesuítas durante mais de 200 anos, período em que foram a única presença no campo educacional na colônia portuguesa. Resumiu bem a situação o professor Rubens Borba de Moraes:

“Livros retirados dos colégios ficariam amontoados em lugares impróprios, durante anos, enquanto se procedia ao inventário dos bens dos inacianos. Se uma ou outra obra foi incorporada aos bispados, algumas remetidas para Lisboa, a quase totalidade foi dilapidada, roubada ou vendida como papel velho a boticários para embrulhar unguentos. O clima úmido e os insetos deram cabo do restante.”

Hoje, neste local, mais uma vez, estão os jesuítas às voltas com bibliotecas e com o ensino. Pelo que vemos e ouvimos, tem-se aqui um projeto e uma realidade de educação e pesquisa onde a biblioteca constitui uma peça indispensável. Neste empreendimento percebem-se as preocupações com a interdisciplinaridade e o que podemos chamar de ecumenismo intelectual. Sua abertura para Brasília está explicitada na própria denominação do Centro, e, como em outras épocas e ainda hoje em outros lugares, a biblioteca daqui será um forte elemento de estímulo às atividades de pesquisa, ao estudo e à vida intelectual, em geral.

A feliz inclusão desta solenidade no programa de celebração do Dia do Bibliotecário justifica-se não apenas pela importância em si deste evento, mas por todas as ligações que existem entre a Companhia de Jesus e o desenvolvimento da cultura e das bibliotecas no Brasil. Foram os jesuítas que nos proporcionaram, como já disse, nossas primeiras bibliotecas, e também o primeiro bibliotecário que aqui praticou.

Dele falou Rubens Borba de Moraes: “O irmão Antônio da Costa (professou em Salvador já em 1677, aos 33 anos, falecerá em 1722) é o mais notável [dos jesuítas bibliotecários], pois catalogou todos os livros por autor e matéria. É esse o primeiro catálogo verdadeiro de biblioteca brasileira e seu organizador, nascido, por sinal, em Lião, na França, o primeiro bibliotecário e não simples guardião de livros — que houve entre nós.”

Que a Biblioteca Belarmino, do Centro Cultural de Brasília, alcance na vida desta cidade a mesma importância que alcançaram as bibliotecas jesuíticas de tempos idos, são os meus votos mais sinceros.

Quanto ao Dia do Bibliotecário, não há muito a dizer, pois afinal todo mundo tem seu dia nos dias de hoje e não seriam os bibliotecários os que ficariam órfãos ou pagãos sem um dia para celebrar sua existência. Talvez a única polêmica que se possa suscitar, numa profissão tão pouco avessa a polêmicas, seja a escolha do dia 12 de março.

Quem sabe por que se escolheu essa data? Terá sido esse o dia em que Dom João VI inaugurou a Biblioteca Real nas catacumbas do Hospital da Ordem Terceira do Carmo, no Rio de Janeiro? Não, porque esse dia foi o 13 de maio de 1811. Terá sido então 12 de março o dia em que se fundou a primeira biblioteca pública deste país, a Biblioteca Pública da Bahia. Não, porque essa biblioteca foi inaugurada em 4 de agosto de 1811. Alguém lembrará que o que se comemora é o dia do bibliotecário e não da biblioteca, portanto a data deve homenagear algum bibliotecário importante.

E, com efeito, depois de respostas negativas encontradas ao examinar a cronologia de alguns bibliotecários ilustres ou importantes, como Antônio Ferrão Muniz de Aragão, que dirigiu a Biblioteca Pública da Bahia, Ramiz Galvão, que dirigiu a Biblioteca Nacional, onde organizou o primeiro concurso público para o cargo de bibliotecário, Manuel Cícero Peregrino da Silva, sob cuja gestão foi construído o prédio atual da Biblioteca Nacional e foi criado o primeiro curso de biblioteconomia da América Latina e o terceiro do mundo, ou, mais recente, Rubens Borba de Moraes, douto bibliógrafo, bibliotecário incansável que dotou São Paulo com a biblioteca hoje chamada Mário de Andrade, que fundou o primeiro curso de biblioteconomia daquela cidade (segundo do país), que dirigiu a Biblioteca Nacional e a Biblioteca das Nações Unidas. Não, nosso dia não tem nada a ver com nenhum desses eméritos brasileiros.

O Dia do Bibliotecário homenageia a figura de Bastos Tigre, que é citado mais como “grande jornalista e fino poeta”‘, sendo considerado um dos bons poetas humoristas e satíricos do país. Uma de suas poesias satíricas foi a que redigiu para se manifestar contra o direito de voto reivindicado pelas mulheres em 1922. Para Bastos Tigre

“o tal voto feminino,

confesso, não me seduz;

A Mulher anjo divino

Não merece um tal destino

Ó país dos Jecas-tatus!”

Com a mulher emancipada

“Fica o lar à revelia,

As crianças levando tombos?

Duro o beef, a sopa fria? E as meias, por ironia, a rirem por vinte rombos?”

Não é bem o que se poderia considerar hoje uma posição politicamente correta do patrono de uma profissão majoritariamente feminina…

*Este texto foi lido originariamente como uma palestra no Centro Cultural de Brasília (Jesuítas) em 25 de março de 1999, em celebração do Dia do Bibliotecário. Aqui ele foi reproduzido com alterações.

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