Certamente não me viu mesmo. Uma pessoa negra com capuz, atravessando a rua ameaçando a sua segurança no seu carro avaliado em mais de 90 mil reais, mais do que a casa que habito. Eu era somente uma pessoa que ameaçava seu patrimônio, mesmo passando na faixa, lugar devido ao pedestre e resguardado por lei, me tornei invisível. Qualquer um pode argumentar que com as roupas que visto, ninguém poderia me ver mesmo; que é “normal” se sentir insegura naquela região. E também lembrariam que um sujeito negro, um pouco mais à frente, havia acabado de furtar um celular e se iniciava o processo de linchamento; o que justifica seu medo diante de algo tão perigoso como uma mulher negra.

Desci a mão no seu carro e quando ela me perguntou por que, respondi: “você quase me atropelou!”. Ela olhou pelo retrovisor e viu que eu não estava passando a ermo na rua, mas na faixa, o que retirou seu direito de ser agressiva comigo. Ao ver que não tinha escolhas, se desculpou. Saí nervosa e fui escrever, no ônibus mesmo, com o bloco de papel sobre o colo. Preferi não postar essa história no Facebook, mas utilizar desse canal aberto pela Revista Biblioo para problematizar a invisibilidade dos meus pares raciais na Biblioteconomia. É difícil falar das questões raciais para uma área que se diz progressista e social. Se fosse para outras áreas do conhecimento que já reconheceram que há racismo e que para um negro estar ali é difícil, seria mais fácil. Mas a Biblioteconomia é a ciência arco-íris que imagina que o reino mágico da informação é um lugar cheio de acesso, paz e convivência pacífica. É nessa ciência na qual exerço minhas atividades laborais como bibliotecária.

Essa ciência ao retirar todas as suas bases do colonizador reproduz todos os seus modos e valores, inclusive o racismo. É a ciência que diz que escravizados não liam porque não tinham acesso ao livro e ao ensino regular, invisibilizando toda a forma de leitura de mundo e saber que os meus ancestrais utilizaram para formação de valores e transmissão de cultura e conhecimento. É mais uma das ciências que desconhece que meus antepassados foram responsáveis por todo o desenvolvimento científico que permitiu o povoamento do Brasil e o desenvolvimento da agricultura e mineração. Não foram os livros europeus que permitiu a prospecção mineral no Brasil, mas o conhecimento negro.

Foram os meus ancestrais que edificaram o prédio que abriga a Biblioteca Nacional (BN), que carregaram os livros para a formação do acervo. Mas foram eles os impedidos de nela adentrarem e dos quais não há registros. Teria a BN participado da queima de livros demandada por Rui Barbosa? Será que os registros que contam nossa história ainda persistem ou foram queimados apenas seguindo ordens? É preciso publicidade de todos os registros que contam a nossa história. Devido às ordens de Rui Barbosa, boa parte de nossa história foi perdida e é papel da BN apresentar os dados que lá persistem ou demonstrar sua participação na queima de arquivos.

A Biblioteconomia que temos é branca, eurocêntrica, racista, heteronormativa, homofóbica e cisnormativa e ela não me representa. A Classificação Decimal Universal (CDU) é uma “casa grande” da organização da informação e toda a técnica de catalogação também é. São formas do colonizador nos dizer o que é ciência e o que não é; o que ele considera religião e o que é místico (no sentido perjorativo da palavra). A CDU não consegue comportar as religiões brasileiras. Assim, o Candomblé, o Daime, a Umbanda e o Xamanismo são geralmente alocadas em partes diferentes das bibliotecas, em ocultismo. Isso acontece porque a CDU não foi feita para nós e nem por nós, foi feita para outro saber, outro povo.

É importante situar a necessidade de descolonizar as ciências da informação, porque sem esse processo as ações antirracistas não passam de um verniz humanista. Sem descolonizar o pensamento, o discurso não passa de mera concatenação de palavras sem qualquer vontade de efetivação. Não basta a criação de um Observatório Social em que não há participação de negros e negras. Um Observatório Social que em sua divulgação se omite diante de um ataque notório de racismo e misoginia. A Associação Brasileira de Educação em Ciência da Informação (ABECIN) deu um passo com relação às demandas sociais. Mas manteve o perfil de proteção do criminoso ao apagar a página para encobrir as provas. Essa mesma associação divulgou que sua página iria deletar mensagens de cunho homofóbico, racista e misógino, o que é contrário à legislação. Isso demonstra que não basta a criação de um organismo se as pessoas não tiverem um efetivo desejo de descolonização. Antes da publicidade desse organismo, teria sido interessante um seminário para os membros sobre as violências que sofremos. Talvez com essa preparação esse caso não passasse despercebido.

Uma ciência tão antiga quanto a Biblioteconomia foi incapaz de gerar um bibliotecário negro de expressão? Quantos negros estão na universidade? Quantos são professores efetivos? E na pós? Qual é a distribuição de negros? Quantos autores de livros são negros? Algumas editoras se dizem progressistas, mas o progressismo passa longe da questão racial, pois são poucos autores negros que têm a oportunidade de ter seus livros publicados. Certa editora tem a prática de traduzir livros, alguns até antigos, mas nenhum autor negro foi traduzido por ela. Contra esses apontamentos poderia se argumentar que se o livro fosse bom ele seria publicado. Contra argumento dizendo que existem muitos livros ruins na Biblioteconomia e eles foram publicados e ainda são utilizados na bibliografia básica dos cursos e concursos. Tem um grupo de autores brancos, principalmente do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) que tem produção anual. Esses são compiladores ou organizadores de textos que pouco ou nada inovam na Biblioteconomia. Eles se utilizam do mercado editorial e do apoio governamental para publicar. Não seria mais vantajoso para a área que o recurso dispendido para inflar o ego desses sujeitos fosse melhor distribuído para dar oportunidade a outros diálogos na ciência, oxigenando-a para que ela não morra?

É difícil tocar nos deuses, porque a Biblioteconomia ninguém contesta ninguém, é um eterno chá das cinco em que “todos” podem dizer o que bem entendem, já que não serão lidos. Todos entre aspas, porque os todos não são todos de fato, mas aqueles que se encaixam no perfil aceito. Aqueles que resolvem as coisas chamando para jantar em suas casas situadas em áreas nobres, os que têm salas para conversar na boca miúda e resolver tudo como cavalheiros. Essa postura de gentleman não passa de uma reprodução da postura esperada do colonizador, que aguarda que sejamos educados e passivos.

Mas no mês da consciência negra não dá mais para fazer discursos bonitos. É preciso meter o pé na porta. O opressor não nos dará a representatividade que queremos. Eles não nos darão espaço nas bibliografias básicas, eles não nos darão lugar na pós. Vide a pós-graduação da Universidade de Brasília (UnB) em que o último edital retirou as ações afirmativas raciais e fez linhas de pesquisa voltadas para a diversidade sexual, mas ignorou a diversidade racial.

O discurso do meu texto, além de longa, é um tanto radical, mas não tanto quanto precisa ser. Nós negros sofremos racismo continuamente na atuação como profissionais da informação. Somos preteridos nas seleções de emprego porque não temos a “boa aparência” para assumirmos  um cargo de chefia, mesmo quando o currículo e a experiência o apontam. Quando eu buscava emprego na iniciativa privada fui à uma seleção numa faculdade que estava desesperada por conta da proximidade da avaliação do Ministério da Educação (MEC). Uma outra bibliotecária com a mesma formação que eu me recomendou. Quando cheguei para a entrevista levei um chá de cadeira e quando a entrevista aconteceu, o desespero sumiu. Uma coisa sei: que nos processos seletivos sempre fui a que traz calma, reflexão, a vontade do gestor de pensar mais um pouco.

Em outra seleção para um órgão público eu tinha alguns anos de experiência, experiência específica no software de repositórios que era objeto da contratação, mas preferiram uma bibliotecária recém-formada. Nos meus empregos, nunca me permiti ter uma baixa produção. Inconscientemente queria me tornar importante para aquele espaço. Sem perceber produzia por mim e por outro bibliotecário que no “plural de modéstia” colocava aquilo tudo que eu fazia como “nosso trabalho”. Recordo uma vez que pediram que eu abaixasse a produção do que eu fazia porque estava muito acima das outras pessoas e quando outras pessoas superaram as minhas métricas não fui instada a superar minha produção.

Eu percebia que esse “plural” na verdade era uma forma da pessoa se eximir de fazer o que devia. Eu me colocava como a que devia servir, ser importante no local de trabalho, sem perceber que não importa o que eu faça, serei sempre uma mulher negra e essa é a primeira coisa que percebem quando olham para mim e para o meu trabalho, o que determina como minhas atividades serão analisadas.

O racismo faz com que desejamos o reconhecimento que as pessoas brancas recebem. Podemos colocar uma melancia na cabeça, mas somente seremos vistos quando nosso valor for excepcional e o branco será reconhecido pela trivialidade. O que exemplifica isso é a participação em eventos e palestras. Existe uma diferença abissal entre o que uma branca precisa apresentar para estar naquele espaço e a pessoa negra. Compare o perfil de certa professora negra que desenvolve trabalho excepcional com obras raras e um bibliotecário branco que idealizou um projeto de biblioteca. O segundo é convidado para eventos em todo o país para falar sobre qualquer assunto. A primeira não recebe a atenção devida à sua produção acadêmica e laboral.

O racismo também repercute nas áreas que ocupamos nas bibliotecas. Os setores de atendimento e referência não são ocupados por negros. Existem exceções, mas na maioria nós estamos nos processos internos, nas coxias das bibliotecas, escondidos. Também observe a distribuição de chefias de setores de bibliotecas. Somos maioria da população e a ocupação desses postos deveria refletir isso e não sermos a exceção. Os que lá estão tiveram que depender de muitos esforços e muitas vezes ser objeto da benesse branca de tolerar um troféu negro, a cota de equidade racial.

Outro viés do racismo está nas políticas de seleção que não privilegiam autores negros, mesmo quando o assunto do material bibliográfico envolve a temática negra. Somos preteridos nas listas de aquisição. O bibliotecário deve escolher obras que nos tratem com dignidade. Obras que não sejam racistas. Os recursos são escassos e deve-se privilegiar os autores que nos humanizam e não os Monteiros Lobatos e Gilbertos Freyres que nos animalizam.

Os estudos de comunidade e usuário precisam passar a contemplar o recorte racial. Esse impacta sobremaneira a forma de acesso à informação. Somos nós os que temos menos acesso à informação, que geralmente não podem adquirir material bibliográfico. Os estudos de usuário/comunidade direcionam as atividades da biblioteca e precisam contemplar nossas especificidades. Bibliotecas comunitárias precisam contemplar o genocídio negro como um fator para dar baixa nas carteirinhas de usuários assassinados. E também considerar os encarceramentos seletivos de jovens negros. Considerar que somos nós as pessoas que estão em maior situação de vulnerabilidade. As bibliotecas escolares precisam contemplar o público do EJA (educação de jovens e adultos), pessoas que não puderam estudar na idade escolar. Contemplar as pessoas LGBTs, principalmente as negras, que não puderam terminar os estudos por causa da homofobia. O acervo precisa contemplar mais a comunidade, enxergar que o público-alvo não é somente quem mora naquela região. Mas a doméstica, a diarista, as babás, o motorista, o porteiro, o zelador etc. Esses trabalhadores estão continuamente naquela comunidade e têm necessidades de informações próprias. O bibliotecário não pode se furtar do dever de repassar informações trabalhistas, pois esses trabalhadores dificilmente terão acesso a um advogado, mas por meio dos livros poderão conhecer quais são seus direitos. E na contratação, o bibliotecário também não pode omitir o direito trabalhista de seus empregados.

As bibliotecas não podem se eximir do dever de acesso a direitos, principalmente das populações com mais vulnerabilidades, como os LGBTs, ciganos, indígenas, quilombolas, negros e todas as comunidades tradicionais. A biblioteca é um organismo de acesso à direitos e todo leitor tem direito a acessar a informação de acordo com suas especificidades, para a subsunção da necessidade ao atendimento, satisfazendo a demanda de informação. No mês da consciência negra só posso dizer que pouco tenho a celebrar como bibliotecária negra. Meu diploma e meu ingresso no serviço público não impediram que eu sofresse racismo. O racismo faz parte da estrutura da sociedade brasileira e quando me posiciono como mulher negra, ele sai de meus pares profissionais para me colocar no devido lugar.

É de responsabilidade do sistema CFB/CRBs também fomentar o diálogo sobre a influência do racismo na profissão. Também é o dever dele fiscalizar para que haja bibliotecas nos presídios e nos quilombos. Os quilombos não são unidades longínquas do meio urbano, muito deles estão no meio da cidade, mas invisíveis. Eu luto para que o sistema CFB/CRBs deixe de existir, pois a forma como ele está estruturado é impossível resguardar a sociedade do mal profissional, o que faz com que seu objetivo seja descumprido. Mas como ele existe, deve funcionar de tal forma com que essas demandas sejam discutidas, pois está na legislação que é seu dever.

Por fim, estamos em um processo de reformulação dos cursos da área de informação. As ocupações e os perfis novos de ingressantes me dá grande esperança sobre o que seremos nos próximos anos. Vejo uma abertura singular de diálogo que nunca vislumbrei há dez anos quando iniciei meu curso. Minhas opiniões expressas nesse texto não representam todos os bibliotecários negros do universo, não sou porta-voz de toda a negritude. Em vários pontos, meus pares irão discordar de mim. Mas esse texto pretende iniciar essas discussões. Podemos continua-las no grupo do Facebook “Biblioteconomia afrocentrada”, em que convido a todos para entrar para discutirmos as necessidades de uma Biblioteconomia nova, descolonizada. Não sou a Dandara de Palmares, mas meu nome indica a missão de revolução. Não falei de Zumbi e Dandara nesse texto porque sei que nesse mês vários textos maravilhosos serão escritos e deixo para vocês algumas recomendações.

Livro:

Título: Cem anos e mais de bibliografia sobre o negro no Brasil

Organizador: Kabengele Munanga.

Editora: Universidade de São Paulo e Fundação Palmares, 2002.

Documentários enegrecedores:

1) Olhos azuis
2) Chacinas nas periferias
3) The Colour of Money – A História do Racismo e do Escravismo
4) Raça Humana
5) O negro no Brasil
6) Ninguém nasce assim
7) Racismo Camuflado no Brasil
8) Negro lá, negro cá
9) Vidas de Carolina 
10) Negros dizeres
11) Mulher negra
12) Negro Eu, Negro Você
13) A realidade de trabalhadoras domésticas negras e indígenas
14) Espelho, Espelho Meu!
15) Open Arms, Closed Doors
16) The Brazilian carnival queen deemed ‘too black’- A Globeleza que era negra demais
17) Boa Esperança – minidoc 
18) Você faz a diferença
19) Memórias do cativeiro
20) Quilombo São José da Serra
21) 7%
22) Menino 23
23) Pele Negra, Máscara Branca
24) Introdução ao pensamento de Frantz Fanon
25) Invernada dos Negros
26) A negação do Brasil 
27) Sua cor bate na minha
28) História da Resistência Negra no Brasil

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