5 horas e 35 minutos. Amanhecer carioca. Quem mora próximo à avenidas ou ruas movimentadas sabe o que isso significa: escapamento de carros velhos como as pirâmides do Egito começam a roncar, a linha de ônibus interestadual – que possui o veículo mais barulhento de todos os tempos – já está operando a todo o vapor e as vozes em volume 100 de motoqueiros e transeuntes podem ser ouvidas dos quartos e salas. Só escapa o banheiro – felizmente.

Com uma xícara de café com leite na mão, olho pela janela relembrando uma cena que está impregnada em minha cabeça há pelo menos uma semana: chovia torrencialmente. O tempo estava pesado e com uma ventarola opressora – daquele tipo que bate no nariz e na garganta, disparando alergias e resfriados que duram semanas. Na movimentada rua tijucana Barão de Mesquita, nos arredores de uma igreja centenária, um supermercado popular e uma famigerada rede de fast-food, um grupo de garotos se reunia para pedir ou furtar – ninguém sabe ao certo qual é a ordem do dia.

Eu percorria esse trajeto quando vi, de longe, um garoto miúdo, de cabeleira surfista – um certo tipo de alourado com castanho –, de camisa surrada e pés descalços, que pedia dinheiro para os passantes. As águas da chuva trovejavam no meu guarda-chuva e as singelas poças que se acumulavam no chão encharcavam meu tênis e calça jeans. Passei pelo garoto às pressas, movida pela impaciência, pela lama e por certa dose de mau humor. Escutei sua voz rouca quase sumindo e desviei o olhar. Quando estava entrando em outro acessso da calçada, ouço o garoto murmurrar:

– Você nem olhou para mim… Nem olhou…

Pelos próximos vinte minutos, esqueci completamente do fato. Mas quando estava degustando um chocolate quente saboroso em um café confortável, percebi, com muito assombro, o que eu tinha feito. Eu tinha, propositalmente, desviado o olhar daquela criança. Uma criança. Se a intenção dele era pedir ou me enganar, não tinha a menor importância. Tratava-se de uma criança que possuía, no máximo, dez anos.

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Aquele episódio ficou martelando na minha cabeça durante o resto do dia. E na manhã seguinte, tomando café, eu consigo ver a imagem do menino refletida no meio da rua. Por isso, ao sair de casa, às 7 horas em ponto, eu tomo por missão reparar se a prática pavorosa de desviar o olhar, não se envolver ou se importar é comum entre as pessoas. Depois, eu tentaria localizar a criança e me desculpar.

Consigo encontrar o primeiro exemplo dessa experiência poucos metros de casa, do lado de uma farmácia. Uma mulher, aparentemente moradora de rua, está com objetos usados espalhados em um pano na calçada, em uma tentativa desesperada de “bazar de rua”. Após avistarem a situação, todos os transeuntes, sem exceção, viram a cabeça e fingem não ver a cena.

No Largo da Carioca, centro do Rio de Janeiro, aproximadamente vinte camelôs gritam e expõem seus produtos. Seguindo o trecho que leva até a Uruguaiana, encontramos muito mais. Há também um número considerável de peruanos e bolivianos. Há meninos engraxates e pedintes de toda ordem. Uma mulher com uma criança de colo segura uma caixinha de doces e pede ajuda. Muitas pessoas apenas acenam negativamente com a mão. Outros sinalizam um não com a cabeça e há muitos que nem dirigem a palavra, que dirá um gesto. Pouquíssimos são os que decidem olhar. Muitos atravessam o trecho dos camelôs ignorando completamente as mercadorias no chão. Presencio até mesmo pisadas e chutes (in)voluntários (?).

Meninas pequenas, de corpo franzino e roupas provocantes, despropositadas para a pouca idade, esfregam as pernas sujas umas nas outras, enquanto gritam “Tia, tio, me dá uma ajuda? Compra uma balinha?”. Elas passam despercebidas. Dois ou cinco homens olham para aquelas crianças e pré-adolescentes com uma análise carnívora, como se estivessem vendo um produto na loja. Toda vez que me deparo com uma cena assim, tenho profunda ânsia de vômito e, sempre que posso, tiro do meu bolso o que tenho e ofereço para as garotas. Por um segundo, obstruo a visão desses predadores sem lei, até que eles desaparecem de cena (até quando?).

Os entregadores de panfletos sofrem constantes desvios e bloqueios. Com as mãos estendidas ao vento, homens e mulheres são sumariamente ignorados por outros homens e mulheres que consideram um estorvo serem atormentados por folhinhas de papel. Uma vez, estando em companhia de um colega enquanto caminhava em direção a um órgão público, sinto o meu braço sendo puxado para o lado com rapidez. Ouço a justificativa:

– Venha, vamos fugir desses malditos!

Assustada e sem fazer qualquer ligação com o assunto, ousei indagar “Que malditos?”, ao que meu colega retrucou:

– Os caras que ficam entregando esses panfletos, ué. Quem mais?

Fiquei me perguntando o que essas pessoas, que fazem da rua seu ambiente de trabalho, foram capazes de fazer para que sejam taxados de forma tão odiosa. Nem precisei perguntar pois, ao notar que meu colega também desviava o passo e a atenção de pedintes e vendedores ambulantes, entendi tudo.

Depois de um dia inteiro observando pessoas evitarem o contato visual umas com as outras – seja na rua, em lojas, em atendimentos ou em qualquer outro lugar -, tomo outra importante decisão: jamais irei desviar o olhar novamente.

Quanto ao garoto que foi tragado pela minha falta de humanidade, continuei minha busca por dias seguidos. Algumas semanas depois, o encontrei parado no mesmo ponto, fazendo o mesmo pedido. Dessa vez, com o sol inclemente, parei e olhei dentro dos olhos dele antes de perguntar:

– Do que você precisa?

Arregalando bem as duas pupilas, ele disse:

– Quero um saco de balas para vender.

Fui em uma loja, comprei o que ele estava precisando e mais algumas coisas e, entregando, consegui dizer:

– Vá para a escola. Estude. Não deixe as pessoas continuarem desviando o olhar de você. E se desviarem, acredite que um dia, elas não precisarão mais agir assim.

Ele me encarou e saiu pela calçada em direção a porta da igreja. Disse apenas:

– Obrigado, tia!

E olhou para mim novamente. Sem desviar o olhar.

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