Conforme noticiado pela Biblioo em primeira mão essa semana, após sucessivas tentativas, a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados finalmente aprovou o projeto de lei (PL nº 7.752/17) que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE). E embora o PL esteja agora seguindo para sanção presidencial, ele enfrentou um longo caminho até chegar a esse ponto, conforme lembra José Castilho Marques Neto, ex- secretário-executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) e um dos idealizadores da proposta. Nesta entrevista à Biblioo, Castilho destaca o processo de encaminhamento do projeto à senadora Fátima Bezerra às vésperas do impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, as inovações trazidas pela Polícia e as expectativas em relação à sua implementação. “Se há um temor de minha parte é o de que não cumpramos nosso dever de cidadãos para que a PNLE se estabeleça”, diz.

Como um dos mentores intelectuais da proposta, como você recebeu a notícia da aprovação da PNLE?

Há exatos dois anos eu apresentei ao Colegiado Setorial do LLLB [Livro, leitura, literatura e bibliotecas], do MinC, uma proposta de encaminhamento que já havia apresentado alguns dias antes ao Conselho Diretivo do PNLL recebendo deste carta branca para agir: tratava-se de deixar de contar apenas com o Executivo para a apresentação ao Congresso Nacional do projeto de lei para a sonhada Política Nacional de Leitura e Escrita – PNLE.

Eu estava convicto de que o segundo governo Dilma agonizava às voltas com o golpe parlamentar e jurídico que se armou e que é conhecido de todos. Eu estava profundamente convencido de que a Presidenta seria afastada e que nós todos, que lutávamos desde 2006 para ver aprovado um marco legal que instituísse uma Política de Estado para o livro, a leitura, a literatura e as bibliotecas, estávamos prestes a novamente “morrer na praia”, como se diz no bom ditado popular! Já esperávamos, desde setembro de 2015, que a Casa Civil enviasse o PL ao Congresso, mas apesar do consenso dos ministérios, nada avançava e o PNLL e a DLLLB [Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, órgão do MinC] estavam de mãos amarradas para dar um passo que só poderia ser dado pela Presidência da República em se tratando de proposta de lei do executivo.

Com o risco de rompermos uma convivência harmoniosa com o poder executivo federal, inclusive com o MInC e o MEC, propus firmemente que passássemos a responsabilidade do PL-PNLE para a líder da Frente Parlamentar em Defesa da Leitura e das Bibliotecas, Senadora Fátima Bezerra [PT/CE]. Em discussão tensa e responsável, ouvindo prós e contras, o Colegiado Setorial endossou minha proposta e ao aval dado pelo Conselho Diretivo. Nos dirigimos ao final da tarde para o Senado, onde sequer pudemos entrar. A Senadora Fátima Bezerra, sempre solidária, veio até nós na portaria e lá entreguei a ela junto com os companheiros o PL que agora foi aprovado após ter passado pelo Senado e pela Câmara praticamente sem vetos ou alterações.

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Se contarmos o tempo decorrido, foram 12 anos de intensa articulação, elaboração de pelo menos trinta versões do PL, busca de consensos com todos os elos da cadeia da leitura, com o executivo, ouvindo sempre as assessorias jurídicas do MinC, MEC e da Casa Civil. O PL-PNLE simboliza o extrato de nossa luta pelo PNLL e o pacto social em torno da leitura que todos nós e em todo o Brasil aspirávamos ver realizado em Lei Federal. Dito isso, receber a notícia de sua aprovação é um misto de emoção e de dever cumprido em um momento decisivo que culmina treze anos ininterruptos de luta pelo livro, pela leitura, pelas bibliotecas e pela literatura como direito de todo cidadão brasileiro.

Integrantes do Colegiado Setorial de Literatura, Livro e Leitura – CSLLL do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) fazendo a entrega do projeto do PNLE à senadora Fátima Bezerra em 2016. Foto: divulgação

Que inovações a Política traz para o segmento de livro, leitura e bibliotecas?

A inovação central é que pela primeira vez não temos uma lei que atenda a um programa específico de formação de leitores ou de incentivo a algum setor da cadeia, mas uma lei que impõe valores, diretrizes, objetivos, metas, e dá um norte seguro, fruto do profundo debate democrático com todos os segmentos – escritores, bibliotecários, professores, editores, livreiros, distribuidores, agentes culturais, gestores públicos, terceiro setor etc., para a construção de Planos Nacionais de Livro e Leitura a cada dez anos e que deverá formular programas e ações adequadas para cada período histórico na longa caminhada que o Brasil tem pela frente para se tornar um país de leitores plenos.

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Em resumo, a grande inovação é que com a PNLE haverá uma política pública de Estado permanente e objetiva que obriga os governos brasileiros a não relegarem ao esquecimento os programas de formação leitora, ou, tão ruim quanto o esquecimento, fazerem da implantação desses programas uma atividade menor e marginal, apenas executada para dizer que se fez alguma coisa pela área. Todos sabermos dos avanços e recuos dos programas de formação leitora que tivemos desde sempre no Brasil. A Lei, se executada corretamente, poderá reverter essa situação crônica de sempre darmos um passo à frente e dois para trás.

Como a PNLE deve ser implementada na prática?

O PL-PNLE prevê no seu texto que o Executivo Federal é obrigado a formular, por intermédio do MinC e MEC e com a participação da sociedade civil, um Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) a cada dez anos. E obedecendo os princípios e diretrizes da lei que são os mesmos que dão corpo e alma ao PNLL atual iniciado em 2006. Portanto, o primeiro passo de ordem prática após a sanção é determinar aos dois ministérios a realização da tarefa de construir um PNLL para os próximos dez anos. Realizada essa etapa, tratar-se-a de executar o Plano aprovado, inseri-lo nos Plano Nacional de Educação, no Plano Nacional de Cultura e no Plano Plurianual da União (PPA), garantindo-lhe orçamento e administração adequada aos programas.

Como se vê, a etapa pós sanção da PNLE é tão ou mais trabalhosa quanto o percurso que se teve que fazer nos dois anos para a aprovação no Congresso Nacional.

Senadora Fátima Bezerra, autora do projeto, comemora com a deputada Maria do Rosário, relatora na Câmara, a aprovação do PL. Foto: Vinícius Borba

Os segmentos da área de livro, leitura e bibliotecas tiveram um papel importante na formulação da proposta. Como esses mesmos segmentos podem contribuir com sua implementação?

Sem a militância pela leitura de todos os setores da cadeia e sua contribuição teórica, prática e persistente, não teríamos nem conseguido sair à contento do Ano Ibero-americano da Leitura, o Vivaleitura, de 2005. Esse ponto deve ficar claro e é definitivo para a história. E assim será também para o futuro e a implantação da PNLE e do PNLL decenal que surgir dessa política. A implantação da PNLE vai requerer a atenção, a participação, e o envolvimento de todos os militantes do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas.

E essa participação tem que ser ativa, propositiva, exigente, militante, porque todos sabemos que lutamos por um direito que nunca vem de graça. As contribuições certamente serão de ordem variada, desde pareceres críticos e técnicos sobre pontos específicos, quanto de articulação política e de fomento à mobilização social para que na prática o que está na Lei se materialize.

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Mas é sempre bom lembrar algo que faz parte de uma espécie de “mantra” que repito desde que assumi pela primeira vez a Secretaria Executiva do PNLL em 2006: precisamos estar unidos, juntos, focados nas questões centrais que precisam ser solucionadas para fazer avançar. Sem a participação da cidadania ativa tudo poderá acontecer, inclusive o vazio, o nada

De sua parte, existe algum receio de que a Política fique apenas no papel?

A PNLE será letra oficial da República quando sancionada, mas quem imprime vida, vigor e fortaleza às letras somos nós, os homens e mulheres que as fazem um universo sem fim no texto literário e poético e as tornam equações, problemas e soluções no texto científico. Realizar essas palavras oficiais como cidadania democrática a partir do texto da lei e tirá-las do papel para o mundo real dependerá não apenas da vontade dos governos, mas da permanente mobilização do setor e da sociedade brasileira que precisará estar atento para que o direito à leitura não seja letra morta.

Se há um temor de minha parte é o de que não cumpramos nosso dever de cidadãos para que a PNLE se estabeleça. É sempre bom lembrar que em nenhum momento da nossa história os avanços na formação de leitores, no desenvolvimento das bibliotecas de acesso público e demais reivindicações dos elos da cadeia do setor aconteceram gratuitamente ou como dádiva.

Todos os bons resultados da nossa luta pela democratização do acesso, da formação de mediadores, pelos valores simbólicos do livro e da leitura e o incentivo à economia do livro sempre vieram após árdua, inteligente e persistente luta!

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