Eu sou um bibliotecário de biblioteca pública. Já faz vinte e oito anos.

Eu trabalho numa biblioteca pública bonita e aconchegante.

Porém, não são os detalhamentos estéticos e técnicos por si só que me atraem na biblioteca bonita em que eu trabalho. Eles me interessam na medida que percebo, nas experiências do dia a dia, que eles são atraentes para um grande número de pessoas que frequentam a biblioteca. A fruição é coletiva e comum, não exclusivista, especializada e individual. É assim que a tal beleza se expande e cabe em vários sentimentos.

A biblioteca pública em que eu trabalho é uma bela sexagenária que conheceu diversas gerações, que olhou em vários ângulos para a cidade que ela habita, que dialogou com muitas vidas, com muitas fabulações, com sonhos, com duras realidades, com os corpos bem nutridos e também com os excluídos de uma São Bernardo do Campo, ora simpática e prosaica, ora fria e cruel.

A biblioteca pública em eu que trabalho está num prédio que foi conóstruído na década de 1950 do século passado. Originalmente ele seria a sede dos Correios e Telégrafos da cidade, tornou-se a Prefeitura Municipal, para anos depois receber a biblioteca municipal que ganharia o nome de Monteiro Lobato. Campanha de doação, mobilização da sociedade civil, lei da vereança, decreto e o encontro com o público.

A biblioteca pública em que eu trabalho recebeu a minha primeira visita há mais de quarenta anos. Era uma tarde perdida no tempo, na segunda metade da década de 1970. O moleque Ricardo se perdeu nas estantes e caiu no labirinto que nunca mais conseguiu sair. Como eu disse uma vez: a biblioteca pode ser o princípio de nossas incertezas. Anos depois cheguei nela, a mesma de anos atrás, como profissional bibliotecário, e atesto: vivo ainda, décadas depois, em gloriosa incerteza.

A biblioteca pública em que eu trabalho me deu presentes, experiências, amigos, emoções, mas também tristezas, angústias, dúvidas, dissabores. Na mistura entres esses dois blocos de sentimento distintos, reside a soma profissional e existencial da alegria de não ter escolhido uma profissão amorfa e neutra. São muitos amigos que ainda estão e que se foram, é um privilégio.

A biblioteca pública em que eu trabalho exige que eu me posicione o tempo todo, política e existencialmente. O único vazio que cabe é o espaço exíguo entre os livros das estantes. No restante, é fundamental para a biblioteca, e para as pessoas que interagem na e com a biblioteca, que posições sejam assumidas. É assim que ela me alimenta.
A biblioteca pública em que eu trabalho não tem acervo neutro, tem acervo cuidado, até porque grande parte do acervo que lá está é doado pela população (o que não é uma virtude, pois o poder público é que deveria dar conta disso), mas sendo assim, o compromisso e o cuidado com o seu tratamento, circulação e preservação, deve ser o maior.

A biblioteca pública em que eu trabalho teve gerações de servidores públicos que construíram e escreveram a história e as histórias das salas, setores e seções de suas dependências, cada uma delas envolvendo muitas pessoas da sociedade, que gerou a polifonia de vozes e corpos que compõem a rica e complexa história de um lugar em que cultura e educação se afetam mutuamente.

A biblioteca pública em que eu trabalho teve sua beleza renovada entre os anos de 2015 e 2017. De início, dentro de uma articulação entre a sociedade civil e os funcionários, que gerou um projeto acalentado por um debate dentro de um orçamento com a participação da cidade. O segundo passo foi a parceria entre a prefeitura municipal e a multinacional Toyota, com recursos públicos e privados, que criou um novo visual e uma nova forma da biblioteca se relacionar com a cidade. O resumo: foi uma ação coletiva que gerou uma política pública que precisa ser fomentada com mais ações, com mais participação coletiva, para se manter viva e democrática.

O que me interessa na beleza e no aconchego da biblioteca em que eu trabalho é que eles se construiram e se traduzem nessas seis décadas de existência como um lugar público e com as todas as potências e possibilidades de ser democrático. O que me resta é lutar e tentar transformar esse desejo e essa necessidade em algo real.

Como bem disse Manuel Bandeira: “Não é a tua beleza. A beleza é em nós que existe. A beleza é um conceito. E a beleza é triste.”

É mais que bela a biblioteca em que eu trabalho. É a virtude que pode resultar em danação, frustração e mudanças, ela é diversa.

É o que tenho para dizer sobre o dia do livro, comemorado no último dia 29 de outubro, e que deveria ser o dia da leitura, para fugir do objeto e se fixar na ação.

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