Entro no carro. Mala, computador, livros, mantimentos e toda a parafernália para um carnaval nas montanhas. “Pensando así, diciendo así, cantando así por el camino…”. Tati me olha sorrindo, sem precisar dizer muito. É Fina Estampa Ao Vivo, um carinho da minha amiga irmã à sua companheira de viagem. Não é a primeira rota que fazemos juntas com a mesma trilha sonora.

Damos a partida com Caetano ecoando, tomando o compartimento fechado em ar condicionado, entrando-nos pelos poros, penetrando nossos corações. “Nossa, esse cabra só com esse violãzinho e voz cantando atirei o pau no gato deve ficar lindo, nem ficamos com pena do gato.” “E que coisa, mais de setenta anos, assim, produtivo, criativo, cheio de tesão.” “E tesudo.” Rimos. “É, e tesudo.” “Eu estranhei um pouco o Abraçaço no começo, agora gosto. Gosto mesmo.” “Ah, eu gostei do Abraçaço logo de cara.” “Não foi à toa que acabei lhe dando o meu Transa.”

“Dicen que la distancia es el olvido, pero yo no concibo esta razón…” Silêncio. Mulheres que falam. Mulheres que calam. Seguro a mão de minha amiga, buscando a certeza de que poderei emergir, encher-me de ar, estar no asfalto que percorremos enquanto sou tragada pela fluidez aquosa das emoções que me levam para um emaranhado de outras estradas, mais internas, tantas quantas meu coração é capaz de desenhar.

E, Meu Deus, são muitas. São infinitas. Bocas quietas, em repouso. “Supiste esclarecer mis pensamientos, me diste lá verdad que yo soñé, ahuyentaste de mí los sufrimientos, en la primera noche que te amé…”. Surgem-me as primeiras letras, mas como? Como cantar Caetano? O que acrescentar a tudo que dele já foi proclamado?

Meu painho João tinha uma interessante semelhança física com Caetano. A última enfermeira que o assistiu, em seu derradeiro leito de hospital, chamava-o carinhosamente pelo nome do artista, precedido por um curioso pronome possessivo. Contudo, no auge de sua beleza e juventude a exibir uma farta cabeleira tropicalista cacheada, um olhar mais desavisado poderia tomar meu bom baiano pai pelo bom baiano compositor.

Em minhas mais tenras memórias de infância há meu pai João me cantando Caetano. O vinil da Tropicália na vitrola, painho, irreverente e espaçoso, interpretando Coração Materno, dramático ante a criança de quatro ou cinco anos que eu era, impávida, empenhada em bem disfarçar o susto e a indignação com um filho que se transformava em demônio a fim de matar a própria mãe.

João Caldas e Caetano Veloso. Foto: montagem

E que namorada era aquela, a fazer tal pedido? Músicas de amor, meu painho cantava-me músicas de amor. Conquistador, impetuoso, apaixonado, dizendo que usava óculos escuros para suas lágrimas esconder, e ensaiava uma mordida em meu pescoço, como um vampiro absolutamente sem paz. Eu ria. Ria e ensaiava uma recusa, como a musa que escuta impassível a canção de seu apaixonado a morrer.

“Saudade, torrente de paixão, emoção diferente…”. Fina Estampa é a instintiva escolha para a entrada na cozinha no sábado pós carnaval. Saudade. Saudade de João. Sopa de legumes. Creme de inhame. Salada crua. Arroz integral com quinua. Há pouco regressei de uma bela casa nas montanhas, gozando de um ativo forno à lenha e uma boa adega. Detox. “As suas mãos, onde estão? Onde está o seu carinho? Onde está você?”

João não está, e sua ausência salta-me aos olhos quase como um algo físico, material, que posso tomar nos braços e embalar como que na esperança de acalmar-lhe os ímpetos que, vez ou outra, sempre acabam por voltar. Berinjela, abobrinha, cenoura, couve, vagem… Descasco, pico, tempero e misturo, e afundo, mergulhando no mais profundo de minha emoção, rendendo-me, comovendo-me. Umas águas descem, rolam. Não é a cebola. As letras voltam a surgir. Mas como? Como cantar a voz calada? O ombro ao além? Como discernir o que pode ser o etérico toque do amor vivo e distante do que pode ser loucura? É certo que não é a cebola.

“Amor, yo sé que quieres llevarte mi ilusión, amor yo sé que puedes también llevarte mi alma. Pero…”. Emerjo, sorrio, inflo meu peito que se oxigena, o carro segue seu bom curso. “Olha Tati, agora como ele vem de repente com um agudo, delicado, afinando a voz:” No átimo de segundo que, atentas, esperamos, cabe todo o sentimento do mundo. “… ay, amor! Si te llevas mi alma, llévate de mi también el dolor. Lleva en ti todo mi desconsuelo…” Viramos os olhos. “Ai, Caetano, assim você mata as meninas!”. Tati solta uma gostosa gargalhada. Avançamos às montanhas que nos esperam. Painho era um tanto despudorado e me dizia gostar das coxas de Tati. Definitivamente, Coração Materno não é uma música que se cante a uma criança.

Pico a cebola, o alho, o gengibre, os pimentões coloridos. Faço uma breve meditação e escolho a pimenta e o curry às ervas aromáticas. Refogo todos os temperos à parte, no azeite, e os adiciono à sopa já com o fogo desligado, porém ainda bem quente. Abafo a panela sentindo falta de uma boa porção de coentro fresco que não tenho à mão. Painho adorava meu feijão com coentro, quiabo e abóbora.

“El mundo parece distinto, cuando no estás junto a mí. No hay bella melodía, en que no surjas tu…”. Saudade. Amor. As letras voltam insistentes. E como cantar tudo isso que tenho dentro de mim? A cozinha recende a especiarias. Não é porque é detox que precisa ser sem gosto. E que quantidade de sobremesas foi aquela no carnaval? Talvez eu cante as desventuras do pobre Campônio aos meus filhos, iniciando uma tradição familiar, dando a eles a mesma bizarra e cômica lembrança para compartilhar com meus netos, e deles passar às próximas gerações. O CD da Tropicália está na estante, e o Caetano parece já estar no DNA.

Cedo às letras. Não haver mais como cantar Caetano é como não haver mais como cantar o amor. E, João é assim. Ainda segue me matando de saudade, ainda segue me fazendo amar. “…canção de amor, saudade, saudade.”

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