A concepção de uma biblioteca particular nasce a partir da tríade formada pela intimidade entre leitor e livro, o intelecto dispensado sobre as obras no processo de produção científica e a cultura absorvida ou criada em torno delas. Seja uma coleção composta por 200 itens, seja um acervo de 2.000 documentos, esses elementos estarão presentes total ou parcialmente.

Com o avanço da indústria tipográfica, grandes tiragens e o acesso às publicações pelas camadas populares, o espaço biblioteca migrou para residências e deixou de ser (somente) monástico, imperial, nacional, castelar, assumindo o caráter de intimidade a quem ele pertence; ganhou nomes próprios, pois eram (e ainda são), exclusivamente, próprios. Os donos apoderaram-se de suas coleções e vice versa: deram seus arranjos e disposição aos exemplares e passaram a encontrar a informação que desejavam (embora muitas vezes e dependendo da extensão do acervo, o auxílio de um bibliotecário fosse necessário).

Biblioteca particular “moderna” (Foto: Reprodução) 

A ligação intelectual pode ser destacada pela transformação da biblioteca não apenas em local de leitura, mas em espaço para longos estudos, produção e análise individuais sobre os mais variados temas e campos de conhecimento. É a Biblioteca-escritório. Não são raras as histórias sobre homens e mulheres que passavam horas sem fim em seus “espaços sagrados”.

O vínculo cultural nasce a partir daquilo que um acervo pode representar. Seus significados, contextos sociais de formação e desenvolvimento, influências e o consequente atributo adquirido como fonte de pesquisa.

Recentemente a ISTOÉ publicou, em seu site, a seguinte manchete: “O incrível resgate das bibliotecas do Mali”. A reportagem apresentava os esforços de bibliotecários e livreiros na preservação de livros e outros documentos de grande relevância cultural em países africanos em guerra:

O livreiro e bibliotecário da cidade de Timbuktu Abdel Kader Haidara é um herói. No final de 2012, ao testemunhar o recrudescimento do conflito entre radicais islâmicos e o governo de seu país, o Mali, no noroeste da África, ele não esperou para ver qual destino teriam os raríssimos manuscritos que ele e outros livreiros guardavam caso uma guerra de fato eclodisse. Homem de ação, Haidara reuniu os colegas de profissão e, com apoio internacional, deu início a uma incrível operação de retirada preventiva da coleção, que conta com mais de 250 mil exemplares. Foram muitas viagens entre Timbuktu e Bamako, capital do país africano para onde as obras foram levadas, até que 80% do acervo estivessem a salvo. O trajeto de 700 quilômetros foi feito repetidamente em carros civis disfarçados de transportadores de frutas e verduras abastecidos com gasolina custeada pelo Ministério de Relações Exteriores da Alemanha. No caso do resgate da biblioteca do Instituto Ahmed Baba, o trabalho foi tão profissional que nem o prefeito da cidade, Hallé Ousmani Cissé, soube da operação. Questionado em janeiro pelo jornal inglês “The Guardian” sobre o que ocorrera no Ahmed Baba, foi enfático. “Os manuscritos foram queimados”

A matéria destaca ainda:

Não foram. Pelo menos não integralmente. Quando o prefeito dava essa declaração, boa parte dos tomos e pergaminhos de mais de meio milênio que versam sobre astronomia e medicina e guardam registros de música e poesia africanas já estava guardada em Bamako. O trabalho hercúleo e os riscos assumidos por Haidara e seus colegas se justificam. Nas obras salvas estão os registros dos últimos 800 anos de história da cidade de Timbuktu, entreposto comercial e cultural africano há quase um milênio e patrimônio mundial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 1988 (LOPES, João, 2013).

No caso dos bibliotecários africanos, o significado cultural de seus documentos motivou o “trabalho louvável”, que “mostra a relação com os livros”.

 

Abdel Kader Haidara, que liderou a retirada dos livros históricos (Foto: Reprodução)

Embora o exemplo citado refira-se às obras de patrimônio de uma sociedade, portanto um sentimento geral, a acepção de significações culturais pode ser aplicada à individualidade do possuidor do acervo. O livro torna-se, portanto, uma necessidade social e a biblioteca, um espaço para todas as pessoas, em todos os lugares.

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