Em sua longa trajetória de vida, Edson Nery da Fonseca recebeu um sem número de predicados, alguns elogiosos, outros nem tanto. Embora me pareça mais justo defini-lo como “o bibliotecário perfeito” – palavras de ninguém menos que Gilberto Freyre –, a alcunha de “Diabo Louro” sempre me soou como louvação. Afinal, além de loiríssimo, Nery era tinhoso! E não o confundamos com o diabo bíblico. O bibliotecário nascido no Recife se assemelhava mais a diaba da Diadorim, de Guimarães Rosa, que no meio do claro e do escuro da vida encanta, perturba e desvia. Afinal, Deus fez a comida, mas é o diabo quem a tempera.

Foi denunciando com uma limpidez de diamante a condição deplorável das bibliotecas brasileiras, que Nery molestou gente grande e tacanha, convertendo-se, assim, no diabo da biblioteconomia brasileira. É, sem dúvida, Diadorim, “o diabo na rua, no meio do redemunho.” E que diabo, hein? Aquele par de olhos celestes nunca o impediram de usar voluptuosamente sua língua em defesa do que acreditava. Afinal, qual era a crença do Diabo Louro?

Tendo como matéria-prima a palavra e a polêmica como ferramenta persuasiva, Nery militava em favor de bibliotecas de qualidade, o que implicava, naturalmente, em delatar o malfeito. Parte do ódio a ele dirigida envolvia quatro grupos de gente: os burocratas, os preguiçosos, os conformistas, e os medíocres.

Nery mirou, particularmente, nos bibliotecários ufanistas, intitulados por ele de figuras basbaques, “para as quais tudo vai bem”. São palavras dele, sem cortes e modéstias: “Eu fiz inimigos pelo fato de estar fazendo aqui um trabalho ligado à universidade que queria ser melhor que as outras, como era de fato, de modo que o diretor da Biblioteca Nacional chegou a fazer dois processos contra mim, o Adonias Filho, Deus o tenha em bom lugar. Fascista.” Nery era assim: culto, curto e grosso, gerando redemoinhos onde alcançasse sua voz. Suspeito que se descontarmos os seus querentes dos malquerentes, a conta dá algo bem próximo a zero. Porque diabo que se preze não é positivo, tampouco negativo.

Mesmo vivendo numa deliciosa faceirice de transitar por entre políticos e plebeus, isso não representou aplaudir asneiras e malfeitos, seja de generais ou de camaradas. Certo dia, por exemplo, peitou Lúcio Costa que, ao projetar Brasília, lembrou-se de tudo, até o “ambiente de meia-luz, nas superquadras, para favorecer os namoros”, menos as bibliotecas públicas. Desde então, passou a chamá-lo de “genial Lúcio Costa”.

E para quem ainda duvide de que este recifense nascido na Rua do Progresso tenha sido o diabo em forma de gente, vale relembrar ter sido ele o perpetrador da única CPI da história do Brasil que tinha por objeto uma biblioteca, a Biblioteca Nacional, a quem ele “carinhosamente” chamava de Biblioteca da Vergonha Nacional. Para Nery, o bem das bibliotecas era o único propósito, doesse a quem doesse. Diante das investidas corajosas contra as bibliotecas que se jactavam de não terem problemas, sofreu em muitas ocasiões com os impropérios, fofocas e processos administrativos.

Além do passado buliçoso, as diabruras de Nery têm um potencial enorme de ainda reverberar nos dias atuais, provocando um redemoinho danado. É só atentar para o fato de que muitas de suas pautas levadas a cabo na década de 1970 e 1980 permanecem frescas. Por exemplo, em seu desejo de garantir bibliotecas de excelência para os brasileiros – desejo esse que não se concretizou até o presente momento –, Nery insistia em três pontos que permanecem sendo de grande relevância a quem deseje levar com seriedade a tarefa de trabalhar com bibliotecas.

O primeiro se refere ao respeito pelo propósito de criação do equipamento cultural. Nery investe grande dose de energia em convencer os bibliotecários a não se afastarem da missão da instituição a que servem. Nesse sentido, ele sugere que a biblioteca, independentemente de sua tipologia, passe a ser definida como uma “assembleia de usuários da informação.” Gosto da palavra “assembleia” porque ela evoca, em seu sentido etimológico, um grupo de pessoas pronto a deliberar a respeito de algo relevante. Portanto, diante de quem deseja decidir, resta ao bibliotecário atuar em função do crivo da utilidade, não apenas em termos de tratamento ou de disseminação de suas coleções, mas também da própria existência da instituição a qual se dedica.

Isso pode nos parecer óbvio, mas os fatos comprovam que há uma enorme dificuldade de muitas bibliotecas compreenderem seu “negócio” e agirem como tal. Ainda em 1993, Nery denunciou o fato de a Biblioteca Nacional não publicar a Bibliografia Nacional. É dele a frase: “A Biblioteca Nacional há anos que não publica a Bibliografia Brasileira – que é uma obrigação legal que ela tem – e passou a publicar uma revista de poesia. Aliás, fraca como revista. Então tem dinheiro para publicar poesia, mas não para a Bibliografia Brasileira.”

Nery se sentia profundamente incomodado com o abandono da Bibliografia Nacional, produto basilar daquela Biblioteca. Vale observar que tal situação permanece a mesma. É que o instituto do depósito legal jamais foi regulamentado. O mais grave é que esse estado flagrante de anomalia impossibilita que a Fundação Biblioteca Nacional cumpra com suas atribuições estabelecidas em Lei, a saber, “assegurar o registro e a guarda da produção intelectual nacional, além de possibilitar o controle, a elaboração e a divulgação da bibliografia brasileira corrente.” Para Nery, a Biblioteca citada vivia numa espécie de limbo ao não cumprir os objetivos para qual foi criada, ameaçando, desse modo, a memória bibliográfica nacional e, de rebote, seu pleno funcionamento.

O caso acima pode ser tomado de empréstimo para tornar presente a urgência de se apreender as razões pelas quais uma biblioteca foi instituída. Afinal, todas elas devem oferecer produtos e serviços de informação a um público específico, devotando seus recursos para tal fim, o que lhe garantiria, em tese, uma trajetória de reconhecimento. A crise ontológica sofrida pela Biblioteca Nacional não é, de fato, um caso isolado. Ela se materializa numa série de práticas que, ainda parecendo benéficas, precarizam enormemente as bibliotecas. O que há de biblioteca especializada em Brasília se portando como se biblioteca pública fosse! Na sanha de ganhar curtidas nas redes sociais e parecer socialmente sensível, tais bibliotecas acabam cortando de vez o fio da vida com aqueles que, por força de lei ou de regimento, deveriam ser efetivamente servidos por elas.

É a história de coar o mosquito e engolir o camelo. Para estes bibliotecários, Nery sugere respeitar a “técnica dentro da técnica”, e aplicar no domínio em que atuam “um humanismo em doses cavalares.” Em outros termos, ele apregoa conhecer o propósito de criação da biblioteca, gerando, a partir daí, acervos, produtos e serviços para o seu público-fim, o que se desdobraria em benefícios a toda a sociedade. Fora dessa perspectiva, o que sobra é um populismo barato tão combatido por Nery e que, no frigir dos ovos, poderia culminar na morte da própria biblioteca.

Outro ponto de preocupação de Nery era a respeito da situação de penúria orçamentária que se encontrava boa parte de nossas bibliotecas. Diante da evidente pauperização, ele chegou a propor como solução a privatização das mesmas: “Eu só vejo uma solução para o problema das bibliotecas brasileiras: desburocratizar, ou melhor, desestatizar as bibliotecas. Eu sou um partidário radical das privatizações – tirar o Estado dos serviços públicos onde ele já demonstrou que não tem capacidade. Só sabe criar uma burocracia envolvendo gastos enormes e inoperância. Se não de todo privatizá-las, pelo menos, dar-lhes uma estrutura administrativa liberta das injunções governamentais.”

Se em 1993 a ideia de privatizar bibliotecas poderia soar plausível ao bibliotecário pernambucano, esta empreitada é inconcebível nos dias atuais. Afinal, que empresa se interessaria em adquirir um lote de bibliotecas públicas brasileiras, em sua grande maioria funcionando em instalações precárias, desprovidas de mobiliários e equipamentos básicos, e constituídas por livros doados? Entretanto, a luta contra certas amarras que o governo impõe a estes equipamentos culturais, em especial os últimos lugares na fila de prioridade, torna a preocupação de Nery muito atual.

As duas primeiras questões propostas por Edson Nery da Fonseca – Para quem esta biblioteca foi criada?; Como garantir recursos para a sua manutenção? – deveriam desaguar em soluções. Para isso, a primeira das medidas seria um diálogo franco e sincero entre os bibliotecários, o que, diga-se de passagem, é um enorme desafio. Afinal, isso implicaria, necessariamente, num mea culpa de que parcela da tormenta compartilhada por boa parte das bibliotecas está associada a uma dificuldade de reconhecermos os próprios problemas, ou ainda, a dificuldade de lidarmos adequadamente com o Estado, abandonando de vez a velha tática da acusação e decidindo pela propositura de pautas.

Já septuagenário, Nery confessou, desconsolado: “Os bibliotecários não se solidarizam comigo.” A declaração de um bibliotecário idoso, aposentado, usando em seu discurso o tempo presente, revela, primeiramente, que sua paixão pelas bibliotecas jamais se arrefeceu, permanecendo no campo de batalha. Seu desejo sempre foi um só: “Que as bibliotecas melhorem, passem a servir melhor aos usuários, ao povo.”  Contudo, se deparou com a solidão, sentimento tão comum entre os vanguardistas. Ao denunciar, por exemplo, a nomeação de um escritor não bibliotecário para a direção da Biblioteca Nacional, se deparou com o silêncio dos colegas.

Confrontando os desafios gritantes das bibliotecas e o silêncio resignado de tantos bibliotecários, Nery conclui: “Eles aceitam as coisas como o governo as quer. Falta nível na classe para se impor e reivindicar coisas.” Nery blasé? Nada. Foi a sua derradeira tentativa de incomodar quem insistia em pintar em tons rosiclair a situação dramática das bibliotecas do país, ou dos que se conformavam em transferir para o Estado a condição de abandono.

As palavras proferidas pelo Diabo Louro tinham por único propósito gerar uma assembleia de bibliotecários capaz de atuar com desenvoltura no cenário político. Elas nos alcançaram. Porque apesar das diferenças de opinião, suspeito de que compartilhamos, em maior número, da percepção de que as bibliotecas brasileiras vão de mal a pior. Se antes o problema se reduzia aos frequentes cortes de receita promovidos por gestores públicos – a maioria de nossas bibliotecas são estatais –, agora até censura deu o ar da graça.

De todo modo, há esperança. Cito duas notícias boas e recentes. Primeira, a celebração dos primeiros acordos de cooperação entre o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas e os Sistemas Estaduais e Distrital de Bibliotecas Públicas brasileiros, o que pode fortalecer a articulação de políticas públicas voltadas para as bibliotecas públicas do Brasil. Segunda, a aprovação do substitutivo da Lei nº 6.959/2013, que altera significativamente a legislação do segmento livro, leitura, literatura e biblioteca, merecendo destacar a obrigatoriedade de rubrica no orçamento dos entes federados para a manutenção e aquisição de acervo bibliográfico.

Estas ações, embora já deflagradas, somente se efetivarão após um caminho longo e espinhoso. Frente a este redemoinho, o melhor é metermos o Diabo Louro, que diante das agruras das bibliotecas, nos aponta para uma única via de salvação: sentarmos à mesa e decidirmos por uma pauta política comum, o que exige de todos muita honestidade e doses cavalares de respeito.

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