Eu comecei a pensar neste artigo com uma fala que ouvi da Nilma Lacerda, escritora, pesquisadora, professora, intelectual e amiga, durante uma live que não lembro qual e com a qual me encantei e cheguei a esticar o pescoço:

“Concordo com Saramago quando ele afirma que os livros para crianças de 5 anos deveriam ser livros para crianças de 7 anos; para que tivessem que se levantar um pouco para acessar os sentidos que não estão tão à mão, tão evidentes. É assim que a gente cresce como leitor(a)”.

Muitos dias depois assisti outra live com a Nilma chamada “A arte da palavra, a Literatura”, porque procuro sempre estar onde a Nilma está a semear palavras-semente que dispersa no mundo, semeando força e gentileza. Ela disse que escrever é “rasgar uma janela no mundo e que deve-se escrever como se fosse a primeira vez”, para assim proporcionar o arrebatamento, o deslocamento que experenciamos nas primeiras vezes do que quer que seja.

Escrever é reunir as ambiguidades e ambivalências, sem o quê Dom Casmurro seria apenas mais uma história de triângulo amoroso. Deve-se escrever para atribuir outros sentidos ao mundo. E Ler para colocar o Eu na roda gigante do mundo.

A linguagem poética, ao diferir do uso comum e causar perturbação, provoca o deslocamento do sujeito, implicado então em necessária avaliação de si e do mundo. Dádiva do tempo, a elaboração do sentido advém de uma tessitura mental lenta, que requer com frequência silêncio e isolamento. No tumulto, o grão da palavra não germina, impedindo que o leitor aceite a representação proposta pelo autor, tanto quanto essa pele temporária a abrigá-lo no tempo da leitura. Madame Bovary sou eu, diz Flaubert. Madame Bovary sou eu, leitora, pode dizer cada uma de nós. Alice sou eu, em viagem ao interior de mim mesma, e o eu de mim pode perdurar por cento e cinquenta anos. Ou não. A liberdade é dada” – Nilma Lacerda em “Por que a literatura nos põe em movimento”

Ela recordou que numa live recente o Daniel Munduruku disse que escolheu escrever literatura para crianças e jovens porque é nesta fase da vida que é possível  desenraizar preconceitos e semear apreciação pela cultura indígena. Certíssimo. É desde a concepção e na primeira infância que se instauram as raízes para sermos humanos no pleno exercício do que melhor há em nossa humanidade, sendo cultivados com cuidados básicos e essenciais, afeto e palavras que povoam de sensibilidade nosso olhar no mundo.

Pois bem, eu estava realmente convencida de que escreveria sobre literatura para crianças, como alimento e inventário nutricional de afetos.

Lemos para imaginar um mundo em que crueldades não possam acontecer. E se acontecem uma vez, para que nunca mais voltem a acontecer. Ou melhor dizendo, para que ao menos nunca mais voltarão a acontecer” – Eduardo Jordá.

A palavra afeto vem de afetar, ou seja, fala do que toca na gente, no nosso corpo. E eu ia seguir assim, falando da importância em olhar para o entrelaçamento entre a nossa biologia e a nossa biografia. Porque eu entendi observando as florestas e estudando neurociência que o nosso corpo que toca o chão e ambiciona os céus é lugar onde enraizamos todas as nossas experiências de vida, toda a nossa vida. Assim como a terra enraiza as plantas, das micros às máximas, nós que somos desgrudados da terra, estamos sempre intensamente em conexão com ela pelos nossos sentidos. Talvez não seja à toa que chama-se planta a parte do pé que toca o solo e nos põe de pé. A planta do nosso pé nos põe de pé no mundo, literal e literariamente.

Eu não evoco a neurociência para reduzir o que é ser humano à bioquímica, vísceras e neurônios, mas pela constatação de que nosso corpo é como o solo sobre o qual se ergue e se espraia a vida de todo ser humano. Somos razão e emoção numa biologia intrincada e interconectada como tão bem diz o neurocientista António Damásio: “…o amor, o ódio e a angústia, as qualidades de bondade e crueldade, a solução planificada de um problema científico ou a criação de um novo artefato, todos eles têm por base os acontecimentos neurais que ocorrem dentro de um cérebro, desde que esse cérebro tenha estado e esteja nesse momento interagindo com o seu corpo. A alma respira através do corpo, e o sofrimento, quer comece no corpo ou numa imagem mental, acontece na carne”.

Nosso corpo é nosso solo. E se sabemos mais sobre nossa neuroplasticidade cerebral e o diálogo permanente entre cérebro e corpo, poderemos vir a ser mais capazes de adubar, conservar e transgredir em busca do novo bom e melhor. Reflorestar nossa alma humana para, então, sermos mais capazes de cuidar melhor da vida. De toda a vida. Ladrilhar o chão sobre o qual deixamos nossas marcas, de mãos dadas por todas as vidas.

Mergulhando nas pesquisas de neurociência sobre processos de formação leitora, encontrei ideias semelhantes às propagadas há tanto tempo por gente da literatura, da educação, da filosofia …. “das humanas”: (1) importa o que lemos para as crianças – narrativas que deitam raízes da imaginação ao invés das superficiais e banais -, como lemos junto com elas – em diálogo e com afeto ao invés de forma funcionária como se administrássemos remédios ou vitaminas.

“Se nossa percepção da beleza ficar reduzida ao sobrevôo de uma aranha-de-água pela fina superfície das palavras, teremos perdido as profundezas que há mais abaixo; não seremos nunca levados pela beleza de aprender e compreender o que subjaz” – Maryanne Wolf.

E daí começaram a pipocar artigos sobre a mobilização e conquistas de jovens que “pegam touro à unha”, e foi me dando uma baita comichão. Indignação mesmo!!! Porque são pistas que mostram como seguimos falhando miseravelmente como sociedade para prover essa garotada com os insumos básicos para sua formação intelectual e sensível. Estamos negando direitos. Jovens teimam levar livros para que cheguem a quem não tem acesso. Jovens teimam escrever e levar adiante sua voz para dissolver a ditadura das histórias únicas. E há um equívoco enorme em saudar as iniciativas sem ao mesmo tempo cobrar incisiva e intransigentemente pelas políticas públicas que deveriam assegurar o que conquistam a duras penas. Deveriam estar desfrutando ao invés de estarem correndo atrás do que lhes é de direito.

Daí então eu lembrei de novo na Nilma. Pensei nas palavras-semente que ela dispersa no mundo de todas as maneiras. Palavras que acordam ao mesmo tempo indignação e avante! Que falam firmeza e ternura. Que veem as vidas humanas por trás do que “dizem” os números e percentuais das pesquisas sobre comportamento leitor. Nilma olha com suspeita e olha além. Estica o pescoço para além de possíveis equívocos de interpretação sempre amparada no que dizem e disseram quem vem esticando o pescoço para além da conformação dos dados. É para além deles que o pulsar das vidas humanas pedem mais acuidade de olhar, para “acessar os sentidos que não estão tão à mão”. Como disse o Percival Leme Britto: “Ninguém pode ser mais contestadora e mais transgressora com tanta delicadeza quanto a Nilma. Ela nos faz flutuar e ao mesmo tempo ter confiança”.

Claudicar não é opção.

Sim, vivemos tempos obscuros. Sim, nos falta tanto. Sim, há retrocessos. Sim, poderíamos ser e estar muito melhores do que nos descobrimos hoje. Mas também temos tanto: conhecimento para transformar e pessoas com quem estar para plantar e colher o novo bom e melhor. Temos no presente. Tudo o que temos é o presente. Passado é memória. Futuro é ficção. É preciso povoar o cotidiano de crianças e jovens com palavras literárias que acordam indignação e anunciam beleza. “Ler texto literário pede esquecimento do mundo tal qual é. Pede conexão com como poderia ser, como deveria ser”, disse Percival Leme Britto.

Outro dia minha filha ainda bem pequena disse: “Mãe, criei um nome para um livro: ‘A terra dos não nascidos’. É um lugar onde, apesar das mulheres estarem grávidas, os bebês não nascem”. Após anos imersa em múltiplos universos literários de múltiplas palavras-fonte emerge a força da autoralidade. E do outro lado das intermitências nasce a insistência da vida. E a vida segue seu curso com pedrinhas de metáforas pulsantes por vida digna e boa para todas as formas de vida.

Por que inventas estórias? Para nossa escuridão ficar mais bonita” – Fragmentos, de Paulina Chiziane.

Toda a vez que agradeço à Nilma por andar neste mundo ao seu lado e por ser parte de sua rede de partilha, afeto e confiança, ela diz que vida a gente não agradece; vida a gente compartilha. Este texto é uma homenagem à Nilma e a todas as pessoas que como ela não se furtam a levar às mãos às profundezas da terra para desenraizar preconceitos e semear conhecimento, sentido, gentileza e resistência. Todas as pessoas que como ela partilham o que sabem como inspiração e sem afetação. Todas as pessoas que não barateiam a literatura e não a mercantilizam. Ao lado de gente como a Nilma, a gente sabe no corpo o que queria dizer quem disse que nenhum caminho é longo demais quando uma amiga nos acompanha. É saber que nunca estamos sós.

“É hoje que crianças e jovens dizem ‘eu quero minha biblioteca’, espaço de comprovada confiança da população, conforme apontam dados, depoimentos. É hoje que pessoas aderem a movimentos que reivindicam o direito à leitura literária, é de hoje o tempo em que nos entregamos à tarefa premente de pensar, escrever e ler o país que queremos, o mundo que queremos” – Nilma Lacerda.

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