Texto escrito com a contribuição de #ColunasBeabah previamente publicadas e disponíveis nas redes sociais da Beabah! – Bibliotecas Comunitárias do Rio Grande do Sul e com coautoria de  Viviane Henrique Peixoto*

Imagine-se visitando uma cidade na região Sul do Brasil. Pense em crianças brincando, moradores desfrutando da cidade, os pratos típicos, as indumentárias e as músicas. Agora, nos diga: quem são essas pessoas e o que as caracteriza? Qual cultura está sendo celebrada? No imaginário popular, comumente são os descendentes de europeus. Pessoas de pele branca, cabelos louros e olhos claros. Pessoas elegantes, afortunadas e trabalhadores competentes. No extremo sul essa ideia se acentua ainda mais. As culturas alemã e italiana, imponentes e impositivas, entranham-se como um sinônimo da cultura no Rio Grande do Sul. 

Como um reflexo da colonização europeia, a história diversa e multiétnica do estado é invisibilizada. Nos séculos XVII havia 40 povos indígenas no Rio Grande do Sul, atualmente são três. Guarani, Charrua e Kaingang, sendo essa a maior etnia, que juntas somam mais de 33 mil pessoas. O próprio tradicionalismo omite a etimologia da palavra “gaúcho”, expressão de origem indígena. Esquecem, ainda, que cerca de 21% da população sul-rio-grandense é negra. 

Não sendo os dados supracitados o suficiente, o estado ainda celebra a Revolução Farroupilha, a mais longa rebelião do período regencial do Brasil, tendo durado 10 anos (1835-1945). Grandes proprietários de terras iniciaram a revolta devido a insatisfação com os altos impostos cobrados sobre seus produtos pelo governo imperial e, a partir disso, viram que a separação do Brasil e a instauração da república seriam uma forma de liberdade comercial e política. O que não é contado, todavia, é que os Lanceiros Negros, cerca de 10 mil homens escravizados, foram recrutados para lutar com a promessa de liberdade ao fim do conflito contra o império. A derrota iminente forjou o episódio que ficou conhecido como Massacre de Porongos: cerca de 100 Lanceiros Negros foram surpreendidos pelas tropas imperais e brutalmente assassinados. Segundo o historiador Luiz Claudio Knierim “Quando se esconde ou não se conta bem o Massacre de Porongos, por exemplo, temos uma razão ideológica, o enaltecimento da figura mítica do gaúcho.” Os que não escaparam para quilombos ou para o Uruguai acabaram escravizados até a Lei Áurea, 43 anos depois. 

Como contraponto à ordem social estabelecida, o Movimento Negro Gaúcho que em 20 de novembro de 1971 fez um ato evocativo de resistência contra a comemoração referente ao dia 13 de maio, a falsa abolição que não garantiu nenhum direito humano para a população negra. O Rio Grande do Sul tem o maior número de Clubes Sociais Negros no Brasil confirmando o protagonismo, a resistênica e organização referente ao período pós-abolição no enfrantamento ao racismo. 

Como forma de resistência, a Beabah! – Bibliotecas Comunitárias do Rio Grande do Sul, criada em 2008 com a intenção de promover a leitura como um direito humano, é um coletivo de bibliotecas comunitárias, situadas nas comunidades de periferia e regiões de vulnerabilidade do Rio Grande do Sul. Atualmente a Beabah é composta por 17 bibliotecas, estando presente em Porto Alegre, Eldorado do Sul, Canoas, Esteio, Cidreira, Canela e Cachoeirinha, em bairros periféricos e de extrema vulnerabilidade social. 

Desde a sua criação, a rede promove enraizamento comunitário e fomenta a verdadeira cultura local, elevando a autoestima e contribuindo para a transformação individual e coletiva, através de bibliotecas vivas e com acervo de qualidade. Entrelaçando saberes da educação e da cultura, as bibliotecas agem com o intuito de formar leitores críticos e melhor preparados para o exercício da cidadania. É através da promoção do livro, leitura e literatura com temáticas afirmativas que a organização propõe que as populações gaúchas marginalizadas e invisibilizadas se enxerguem nos espaços de poder e informação. 

Compreendemos que a bibliodiversidade, ou seja, as múltiplas representações culturais são necessárias na literatura como parte de um movimento de desconstrução de padrões que reforçam estereótipos e criam histórias únicas. As bibliotecas comunitárias tem comprometimento com questões antirracistas, gênero e etnia. Naturalizamos narrativas em que personagens comumente marginalizadas são desvinculadas da subalternidade, valorizando povos originários e sua cultura, através de ações diárias, desde o selecionar uma literatura plural e desvinculada das ideias coloniais, até às formações e bate-papos com os diversos públicos. 

Finalizamos referenciando Lilian Rocha, Ana dos Santos, Fátima Farias, Duan Kissonde, Ronald Augusto, José Falero, Jeferson Tenório, Oliveira Silveira e

Atena Beauvoir Roveda, entre tantas outras expoentes da literatura gaúcha periférica, que endossam em suas narrativas a importância da representatividade, e Eduardo Peixoto e Bruna Ferreira, integrantes da Beabah!, que em 2021 publicaram nesse mesmo periódico a coluna intitulada “Eu sou gaúcho, por incrível que pareça”4, onde denunciam a perspectiva embranquecida da identidade gaúcha. Da mesma forma, saudamos os coletivos Afroativos – “solte o cabelo, prenda o preconceito”, projeto de conscientização empoderamento e ressignificação da cultura afro e Poetas Vivos, que por meio da poesia falada dos slams enaltece o povo negro gaúcho. Em uma de suas frases mais emblemáticas reforça: “têm preta e preto no Sul” 

“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo.” Lélia Gonzalez, 1988. 

Por um Sul que não cultive o racismo como tradição 

Por um Brasil laico diverso e livre pensador. 

 

*Viviane Henrique Peixoto: Idealizadora e Mediadora de Leitura da Biblioteca Comunitária do Arvoredo, na Vila Mapa em Porto Alegre, Articuladora da rede Beabah, integrante do Grupo de Trabalho de Incidência em Políticas Públicas da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias e  Beabah  – RNBC. Formadora do Programa Entre-Redes (área de formação e produção de conhecimento da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias). Integrante da Coalizão Direitos Valem Mais e formação em Advocacy nível básico pelo Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH)

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