Descobri Edson Nery no começo dos anos 1980, atraído pelas suas ideias e opiniões contraditórias que sua personalidade suscitava. Os apreciadores de Edson Nery se dividiam entre os que o enxergavam como um elitista boçal que pensava a biblioteconomia como um refúgio dos eruditos, e os que o tinham como um tipo de miliciano, paladino da biblioteconomia. Da tensão entre essas visões, construí uma imagem de um personagem que se identificou com a modernidade. Edson saiu da caverna, observou o mundo, percorreu seus meandros e, diante da visão do mundo, percebeu o tamanho de sua aldeia, e liderou uma cruzada para inseri-la em uma conjuntura de progresso. A linearidade não lhe pertencia. A visão universal de Edson Nery não respeitava fronteiras ou tendências e se inseria, confortavelmente, em diversos tempos históricos.

Com apenas 25 anos foi nomeado, pela Prefeitura Municipal do Recife (Pernambuco), para a Diretoria de Documentação e Cultura (DDC). Em 1946, por indicação de Lydia de Queiroz Sambaquy, recebeu uma bolsa de estudos que lhe permitiu realizar o Curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Dois anos depois estava de volta ao Recife para criar o primeiro curso de biblioteconomia do Nordeste, promovido pelo Departamento de Documentação e Cultura (DDC).

Com o final da segunda Grande Guerra e do Estado Novo no Brasil veio um tempo em que pipocavam as oportunidades e crescia a esperança de paz e progresso. Em agosto de 1946, a articulação capitaneada pelo professor Joaquim Amazonas logrou sucesso no projeto de criação da Universidade do Recife (UR). O primeiro reitor da UR entendia que não se formava pessoas sem a memória custodiada pelas bibliotecas, e que o sucesso do seu projeto dependia da gestão e disseminação do conhecimento. Amazonas convenceu Edson da oportunidade de incluir a biblioteconomia no repertório dos cursos oferecidos pela nova universidade. José Césio Regueira Costa, diretor do DDC, anuiu com a intenção e cedeu o curso para a Universidade do Recife.

Nesse momento a personalidade forte e o espírito midiático rompem o casulo e passam a ser dominantes na personalidade de Edson Nery. A breve passagem pela imprensa local parece ter despertado no jovem bibliotecário o gosto pela polêmica. Nathalia Caliman, em Um bibliotecário e sua paixão, lembra que “Naqueles anos, a personalidade polêmica, (…) já se fazia notar. A calmaria durou pouco, no ano de 1951, Edson envolveu-se em uma controvérsia que lhe custaria o emprego na Universidade.” (Silva, 2010,20).

A celeuma principiou com a discordância de Edson Nery a respeito do novo prédio da Biblioteca Pública. O Governo do Estado havia nomeado uma comissão para estudar a localização de novos edifícios, cuja opinião ele discordava. O próprio Edson explica o fato no livro Vão-se os dias e eu fico: memórias e evocações, de 2009. “O imbróglio” diz Nery, “começou com a publicação, nos jornais de 10 de outubro de 1951, do relatório apresentado ao Governo do Estado por uma comissão criada para estudar a localização de novos edifícios para o Instituto de Educação, Hospital do Pronto Socorro e Biblioteca Pública. Em 21 do mesmo mês publiquei o artigo no Diário de Pernambuco”.

O Pomo da discórdia era a localização da Biblioteca Pública no Parque 13 de Maio e, principalmente, a insistência dos arquitetos em construir um edifício “grandioso” e “imponente”. Edson pagou a opinião livre com seu emprego. Paradoxalmente, quinze anos mais tarde, ele se envolveria em nova polêmica, desta feita com as bibliotecárias da UFPE, justo por defender a construção de um edifício “grandioso” e “imponente”. O projeto foi contestado, mas foi levado adiante, numa atitude considerada autoritária.

Maria da Penha Franco Sampaio, em 1993, refletindo sobre a disputa, explica: “O projeto foi aprovado pelo BID e, por solicitação dos bibliotecários, deveria ser refeito, para atender as necessidades da UFPE.” Maria da Penha enfatiza que o BID só admitiria mudanças no projeto caso fossem realizadas pelos consultores indicados por eles, os norte-americanos Frazer G. Poole e Rudolph Atcon, e Edson Nery da Fonseca. O modelo de estrutura organizacional era compulsório. Apesar de modernizante e desejável, recebeu maciça oposição dos técnicos e, efetivamente, não chegou a tornar-se funcional. A imposição dos consultores e a interferência do MEC USAID no projeto da Biblioteca Central da UFPE deixou um clima de insatisfação com as mudanças exigidas pela Reforma, conclui Maria da Penha Franco Sampaio.

A tribuna dos Jornais era confortável a Edson Nery. Dirigia-se ao público com o objetivo de colocar a prova suas ideias. Para Edson o dissídio era um instrumento. A mesma ferramenta usada por Tobias Barreto, o grande mestre do labafero; também por Gilberto Freyre que, não foi contemporâneo de Tobias, mas aprendeu com ele, aprimorou e transmitiu a arte a Edson. Finalmente a polêmica foi a ferramenta que encontrou no nosso bibliotecário um obreiro de excelência. No princípio de 1995, Edson Nery, sendo Edson Nery, se envolveu em nova e ruidosa rusga, numa batalha travada nos periódicos locais com os bibliotecários pernambucanos.

Na manhã de 14 de abril, quando o Jornal do Commércio do Recife chegou no setor de referência da biblioteca pública, Alberto Cunha Melo, como de costume, tomou o jornal percorrendo livremente suas páginas, quando deu de cara com um artigo de opinião assinado por Nery intitulado “A revolta das catiripocas”. Surpreso, o poeta comentou com uma das bibliotecárias o conteúdo do texto e, em poucos minutos, o vespeiro estava enxameado. Não se ouvia outra coisa nos corredores, os ânimos de elevavam, os telefones não paravam de tocar. Impropérios e maldições foram lançados, e os mais infames pejorativos invocados para adjetivar, o autor e a obra. Apesar do furor, quando a poeira baixou, não se registrava uma única palavra de desagravo como resposta da parte dos bibliotecários injuriados.

O texto era um libelo em defesa da bibliotecária Walda de Andrade Antunes, que dois anos antes havia escrito o livro “Curso de capacitação do professor regente de biblioteca”. A obra trafegava na contramão da orientação do Conselho Federal de Biblioteconomia, que então combatia a cultura centenária que alocava recursos humanos desviados de sala de aula nas bibliotecas escolares. Essa cultura na prática tirava emprego dos bibliotecários. O pleito era justo e legal.

A essa época os Conselhos Regionais se valiam da legislação, (1962 e 1986) que dispunha sobre o exercício do cargo de bibliotecário, como atividade exclusiva aos bacharéis de biblioteconomia. Para combater a violação da regra, o Conselho Regional de Biblioteconomia do Distrito Federal, alertado por seu congênere paranaense, iniciou um processo para investigar o caso de Walda Antunes. Até aí o Conselho cumpria seu papel legal, mas ao ameaçar a autora com base na violação do código de ética, o CFB ultrapassou os limites do seu mandato e a ação tornou-se um ato de censura, um cerceamento ao direito de expressão garantido aos cidadãos pela constituição de 1988.

A resposta de Edson ia na verdade contra o espírito corporativo, contra a ignorância e contra o uso da representação pública dos Conselhos, delegada pelo Estado para defender os interesses da profissão, não para ameaçar quem pensava diferente.

Edson Nery iniciou o artigo, sugestivamente intitulado “A revolta das catiripocas”, elogiando as bibliotecas da Venezuela, defendendo o nepotismo que, segundo ele, naquele país “havia dado certo”. Generalizava sobre o estado das bibliotecas brasileiras, culpando os políticos e as autoridades que não haviam desenvolvido, na infância e mocidade o civilizado gosto pelas coisas da educação e da cultura e, por essa razão, não sabiam avaliar o valor das bibliotecas. O argumento da ignorância foi utilizado exaustivamente por Nery para localizar a origem dos problemas das bibliotecas brasileiras. Em parte, ele tinha razão.

A seguir o autor volta a fúria de sua pena para as universidades e para os “concluintes dos cursos universitários de biblioteconomia”, que segundo ele, “só queriam trabalhar em bibliotecas de instituições que pagam bons salários”, esquecendo, convenientemente, que ele mesmo tinha feito uso desse expediente nos idos de 1947. Era fato, que as bibliotecas escolares estavam ao desamparo dos profissionais bibliotecários, mas por um motivo muito mais cultural e conjuntural que a singular escolha dos concluintes.

Elogiava a solução apresentada por Walda Antunes, que não obstante legítima, era flagrantemente contrária à lei vigente. Para romper esse ciclo vicioso, dizia Edson Nery: “a sra. Walda de Andrade Antunes encontrou uma solução: um curso de capacitação, por correspondência, que faça das professoras regentes de bibliotecas escolares”. Estava criada a celeuma. Insistia, que os criativos textos de Walda podiam contribuir para “solucionar o problema das bibliotecas escolares em todo o vastíssimo território nacional, que inclui localidades atrasadas, nas quais nenhum bacharel em biblioteconomia gostaria de morar.” Acusava bibliotecárias “encasteladas em Conselhos de Biblioteconomia” de a “ameaçam-na, inclusive, com a absurda e draconiana possibilidade da apreensão policial do livro e do videocassete”.

Incomodado com o silêncio sepulcral das bibliotecárias, Edson Nery volta a carga no princípio de janeiro de 1996, com novo artigo publicado no Jornal do Commercio, para provocar as bibliotecárias, “Catiripapas e catiripocas”, desta feita, com argumentos pobres e risíveis. Iniciava o texto praticamente de onde terminara o anterior, primeiro fazendo uma correção acerca da autoria da expressão “catiripoca” que, segundo ele, teria sido inventado por Myriam Gusmão “para denominar bibliotecárias bobocas”. No novo artigo, partia do esclarecimento de que o inventor da palavra catiripoca, na verdade, teria sido ”Simeão Leal, paraibano e diretor do Serviço de Documentação do MEC, que inventou a classificação das mulheres em dois grupos: as catiripapas (bonitas, inteligentes, em tudo bem dotadas) e as catiripocas (pobres de vários dons, embiocadas, difíceis)”.

Era uma expressão infeliz e preconceituosa, “tendo ouvido essa história contada por Hélcio Martins” esclarece Edson Nery, que passou a associar o termo “catiripoca às bibliotecárias feias e burras.” Mesmo nos idos dos anos cinquenta, o termo seria reprovável, quase um bullyng. Com a matraca solta, seguia explicando que ‘recentemente’ teria mantido um contato com duas “criaturas dessa espécie”, fato que o teria feito concluir que os “cursos de biblioteconomia estariam necessitando, com urgência, de nova orientação. Pois a verdade é que continuam formando catiripocas.” Justificava sua opinião argumentando que essas bibliotecárias estavam principiando o trabalho pelo inventário e catalogação. Na verdade, qualquer projeto de acesso a conjuntos documentais e bibliográficos, principia pela criação dos instrumentos de pesquisa, que, em última instância, dependem de classificação e de catálogos.

A crítica —não compreendida — subjacente na abordagem de Edson Nery recaia sobre o excesso de tecnicismo, o abandono do humanismo e da erudição que marcara uma tradição de longo percurso a profissão e a célebres bibliotecários como Ramiz Galvão, Borba de Morais, Clovis Bevilacqua, entre outros. Edson Nery comparava o trabalho das bibliotecárias à obra de Santa Engrácia (infindável). Argumentava. Contratadas para reorganizarem a biblioteca, “em vez de criarem um salão de leitura atraente, com as obras de referência e os últimos fascículos dos periódicos à disposição dos usuários” diz Edson Nery, “puseram-se a tombar livros e a fazer fichas catalográficas manuscritas para, depois, datilografá-las caprichosamente.” Conclui.

Criticava aqueles profissionais que em “plena época dos computadores, do CD-Rom, da comunicação on-line, da multimídia, (…) continuavam escriturando livros de tombo do tempo dos amanuenses”. Reservava especial desprezo aos profissionais que, tendo a disposição os recursos de eletrônicos cooperados de catalogação na fonte, teimavam em fazer o trabalho manual medieval, escolha que ele classificava como inadmissível e desperdício de tempo sem falar da imprecisão gerada pela escrituração manual em livros de tombo do e as fichinhas de catalogação.

Desta vez, a provocação não adormeceu sem resposta. Duas semanas depois, no mesmo Jornal do Commércio, Maria Cristina Guimarães Oliveira, bibliotecária, professora e pesquisadora do Departamento de Biblioteconomia da UFPE, reagiu à altura com um texto intitulado Sobre Catiripapas e Catiripocas, publicado no Jornal do Commércio, 19 de janeiro de 1996. Com um tom determinado, Maria Cristina respondeu, classificando de “impertinentes insinuações” colocando-se no “dever de fazer algumas colocações, face ao sepulcral silêncio” que se estabelecia as provocações de Edson Nery.

Esse capítulo da Guerra das Bibliotecárias se encerrou em festa, com a criação de um bloco carnavalesco que reagia com bom humor e criatividade, frente a polêmica que corria no Jornal do Commércio. Em 1999, Hélio Monteiro, então diretor da Associação de Bibliotecários de Pernambuco, teve a brilhante ideia de fundar a troça carnavalesca Catiripocas em Folia que saiu no carnaval daquele ano ostentando o estandarte das catiripocas, puxado por uma orquestra de frevo. Partia da concentração na sede da Associação na rua Gervásio Pires, passava pela Praça do Arsenal e dispersava na Rua da Imperatriz. O bloco Catiripocas em Folia saiu até 2002.

A polêmica ajudava a desenvolver crises programáticas, no ambiente controlado do discurso. Era projeto, com objetivo e endereço certo. Edson tinha no debate o veículo e a língua sua espada. Célebres oradores da antiguidade, como Demóstenes e Cícero, entenderam que a emoção potencializava a força no sentido e impregnava os significados, os fatos e as coisas de uma capacidade que elas, no seu modo natural, não possuíam.

A polêmica agia levantando a fervura das conversas tediosas. A levedura das ideias fermentava a fala e dava lugar a um essencial azedume. Era uma ferramenta eficiente para promover temas e incrementar a visibilidade do discurso, conservando o polemizador em evidência. Quem, contudo, enxergar nas polêmicas de Edson Nery apenas o produto de vaidade, não compreendeu a complexidade e a função social de suas estratégias discursivas. Esta perspectiva permite apenas a visão da árvore que esconde a floresta. Edson Nery é muito mais, e suas polêmicas têm um papel social relevante.

A condição provocadora, destilada na acidez gourmet de Edson Nery era uma estratégia deliciosa usada, antes de mais nada, para promover ideias. Caso não se servisse desse espírito, certamente seus postulados não teriam chegado a nós com a força e com a condição de transformar que elas portam ainda hoje. Pode-se não gostar da pessoa, mas não podemos deixar exaltar o intelectual de porte, que se derramava para além das fronteiras de sua aldeia. O espírito de Edson Nery excedia os limites da Nação Pernambuco, e se projetava para fora do Brasil, com exuberância, mostrando o poder de um intelectual parido nas fileiras da biblioteconomia pernambucana. Seria injusto não enxergar o bibliotecário militante que se tornou um dos personagens mais relevantes para a construção da biblioteconomia nacional.

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