“O açúcar do trópico latino-americano deu um grande impulso à acumulação de capitais para o desenvolvimento industrial da Inglaterra, França, Holanda e, também, dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que mutilou a economia do Nordeste do Brasil e das ilhas do Caribe”, destacou Eduardo Galeano no seu clássico As veias abertas da América Latina. Apesar disso há tempos se tem construído no imaginário popular a ideia de que pouco ou nada temos haver com a realidade de nossos vizinhos latino-americana. Um olhar um pouco mais atento mostra que historicamente temos compartilhado do mais flagrante descaso do poder público para com a questão social, especialmente a educação e nessa esteira, a biblioteca. São poucos os esforços para com este espaço reconhecidamente de resistência. Pudera! Não interessa absolutamente às elites incentivar qualquer esboço de pensamento. Nesta entrevista, a bibliotecária colombiana Silvia Castillon mostra que um dos dilemas que nos une é exatamente uma questão há muito ignorada pelas elites desta região: a biblioteca escolar. Castillon destaca que as políticas públicas para essa área até tem avançado, mas, segundo ela, os esforços ainda são tímidos.
Chico de Paula: Qual a realidade das bibliotecas escolares na America Latina hoje?
Silvia Castrillon: As bibliotecas escolares na América Latina estão começando a ter um lugar nas políticas públicas e nas agendas das autoridades da educação, pelo menos em alguns países. Não é a primeira vez que esta questão é importante na América Latina. Mais de três décadas, dos anos 70, quatro países – Costa Rica, Colômbia, Peru e Venezuela – começaram juntos um projeto patrocinado pela OEA [Organização dos Estados Americanos] através do qual compartilharam suas experiências em bibliotecas escolares. Os quatro países, com diferentes abordagens e modelos, já foram desenvolvendo programas de bibliotecas escolares. Desde aquela época são conhecidos os centros de recursos para a aprendizagem, como foram denominadas essas bibliotecas na Costa Rica, com base não só em reunir livros, mas também recursos audiovisuais. Deu-se seguimento ao trabalho de professores e crianças; o Peru trabalhou em estreita colaboração com a Biblioteca Nacional; a Venezuela deixou o trabalho para um centro de pesquisa em formação de docentes e a Colômbia começou seu programa de bibliotecas escolares como um componente essencial da reforma educativa que visa a melhoria da educação. Estes programas desapareceram. Trinta anos mais tarde, se renova o discurso sobre a necessidade de criação de bibliotecas escolares a pedido de algumas organizações internacionais como a OEI [Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, Ciência e Cultura] e o CERLALC [Centro Regional para o Desenvolvimento do Livro na América Latina e no Caribe]. No entanto, agora as bibliotecas que querem acompanhar as mudanças na educação respondem a um modelo educacional focado em fornecer aos alunos as habilidades necessárias para um melhor desempenho no trabalho, especialmente considerando o aumento dos níveis de competitividade dos países em um mundo globalizado.
C. P,: Particularmente na Colômbia, em que pé está esta questão?
S. C.: É lamentável que na Colômbia tenha acontecido, na minha opinião, um retrocesso a este respeito. O programa que eu mencionei acima foi a criação de mil bibliotecas com o melhor da literatura infantil da época, livros para professores e materiais de referência em ciência e tecnologia, com as limitações do tempo. No entanto, quando se trata de coleções de literatura, não deixava nada a desejar a uma biblioteca de hoje. Essas bibliotecas foram projetados para fornecer às escolas melhores condições materiais para um melhor ensino da leitura e escrita e, pensando que era necessário colocar nas mãos da comunidade educativa livros de qualidade, especialmente clássicos e literatura contemporânea. O programa foi acompanhado por um componente de formação de professores e era, essencialmente, formação destes como leitores. Essas bibliotecas desapareceram. Há alguns anos atrás, as cidades de Bogotá e Medellín têm organizado bibliotecas escolares nas escolas públicas que são muito proficientes do ponto de vista dos seus edifícios, suas coleções e sua organização técnica. No entanto, nem todos são gerenciados por profissionais com uma compreensão clara dos fundamentos de uma biblioteca escolar. E, pelo menos no caso de Bogotá, este programa não tem tido continuidade. Nacionalmente, não há um programa de bibliotecas escolares, nem nenhuma regra que exige do Ministério para implementá-las. Não há uma consciência clara, nem entre as autoridades e nem entre os professores sobre o possível papel de uma biblioteca escolar.
C. P.: Em passagem recente pelo Brasil a senhora falou sobre um estudo mexicano que comprova que a biblioteca escolar atuante aumenta o rendimento dos alunos. A senhora poderia explicar melhor?
S. C.: É um estudo de Elisa Bonilla Rius e cujos resultados são apresentados no livro “Bibliotecas y escuelas: retos y desafíos en la sociedad del conocimiento” publicado pela editoria Océano [ainda sem tradução para o português]. Minha menção deste trabalho é para destacar o fato de que diversos órgãos estão começando a olhar para a biblioteca escolar como desejável, de modo a melhorar o desempenho de escolas e instituições, assim como é medido por testes nacionais e internacionais. No entanto, nessa mesma conferência [proferida no Brasil] fiz referência que apenas melhorar o desempenho acadêmico é um objetivo insuficiente quando se trata de uma verdadeira formação de leitores para a vida. Isso é tornar a leitura uma atividade escolar que não afetará em nada para a condição das pessoas como seres com a capacidade de fazer da leitura e da escrita uma possibilidade para o pensamento e a reflexão. Por outro lado, há estudos que afirmam que ser um bom aluno não é necessariamente sinônimo de ser um bom leitor.
C. P.: O Brasil aprovou recentemente uma lei (Lei nº 12.244/2010) que torna obrigatória a existência de bibliotecas, com bibliotecários, em todos os estabelecimentos de ensino do país, sejam eles públicos ou privados. Como a senhora vê essa medida?
S. C.: Para mim, estas medidas são necessárias mas não suficientes. Elas constituem ferramentas para pressionar desde a sociedade civil até a comunidade acadêmica a criar bibliotecas. Mas elas devem ser acompanhados por processos de reflexão sobre o papel que estas bibliotecas podem desempenhar na educação e na necessidade de cumprir critérios de qualidade.
C. P.: No Brasil nós temos 30 mil bibliotecários e com essa nova lei, eles precisariam atender a 200 mil escolas em um período de 10 anos. Cada escola precisa ter um bibliotecário de agora até daqui a 10 anos. Mas esse tempo não é suficiente para graduar todos esses bibliotecários; não há a capacidade de graduar tantos bibliotecários em um período tão curto de tempo. A senhora acha que uma possível solução seria propiciar cursos de especialização para professores para que eles possam lidar com o trabalho nas bibliotecas?
S. C.: A verdade é que eu provavelmente vou dizer algo impopular entre os bibliotecários. Eu mesma sou bibliotecária por minha formação e pelo meu trabalho em boa parte das bibliotecas públicas e escolar, mas não pense que é necessário que à frente de cada biblioteca escolar esteja um bibliotecário. Um bibliotecário treinado em uma escola geralmente coloca a ênfase na formação técnica relacionadas com a gestão da informação. Acredito que as bibliotecas escolares poderiam ser tratadas por professores com conhecimentos de Biblioteconomia. Eu acho que os conhecimentos de Biblioteconomia são necessários, mas que as bibliotecas devem colocar o foco em pedagogia. Mas também acredito que a formação do bibliotecário deveria estar mais voltada para questões relacionadas com a cultura escrita, leitura, escrita, a formação de leitores, livros (não somente de literatura), literatura, etc.
C. P: Gunter Schlamp, conselheiro de secretarias de educação nos estados alemães de Hessen e Berlim-Brandenburgo, além de membro ativo do Grupo de Estudo sobre Bibliotecas Escolares naquele país, em entrevista à biblioo, falou que o trabalho das bibliotecas escolares deve começar primeiro pela escola, para depois partir para os bibliotecários, pois dessa forma se criar a imagem da biblioteca no imaginário das pessoas, antes de trabalhá-la tecnicamente. O que a senhora acha dessa proposta?
S. C.: Concordo, embora talvez o melhor seja que tudo se dê de maneira simultânea. Por outro lado, não acho que a imagem da biblioteca nas mentes das pessoas deve ser tecnicamente. A sociedade tem a imagem da biblioteca como algo fora de suas preocupações. A percepção geral é que a biblioteca, ou é uma ferramenta para a escola, ou é para a busca de informação para fins utilitários, científicos ou técnicos. Mas o fato de que esta última também está desaparecerndo porque se considera que os meio ligados a tecnologias de comunicação são mais eficazes e a biblioteca não detém exclusividade sobre eles.
C. P.: A senhora citou o educador brasileiro Paulo Freire em sua palestra. No seu entendimento, qual a contribuição de Freire para a democratização da educação e, sobretudo para a democratização da leitura?
S. C.: Essa é uma resposta para uma outra entrevista inteira. Para nós que temos trabalhado com a necessidade de democratizar a leitura e a escrita e que consideramos a cultura escrita como um direito, Paulo Freire tem sido uma referência permanente. É muito vasto a bagagem teórica que nos tem oferecido o pensamento de Freire, mas poderia, para resumir, dizer que o fundamental está associado ao caráter político e ético da educação, da escola e, para nós, à biblioteca e, portanto, ao exercício do bibliotecário.
Chico de Paula é diretor de redação da biblioo