A Campanha Sou Biblioteca Escolar já recebeu na Biblioo diversas publicações, como por exemplo o texto publicado por Jonathas Carvalho em 2017. Com  o objetivo de ampliar a discussão em torno deste importante equipamento educacional a colunista da Biblioo, Dandara Baçã, entrevistou a mãe atípica e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência Andréa Medrado. Andréa Medrado é mãe de Clara e Maria Flor, coordenadora do Instituto Lagarta Vira Pupa (@lagartavirapupa – wwww.lagartavirapupa.com.br), mobilização social e política das pessoas com deficiência e familiares, e uma das lideranças na luta contra o rol taxativo da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

As pessoas com deficiência enfrentam inúmeros desafios devido às assimetrias criadas pela sociedade capacitista que desconsidera as diferenças e as especificidades. O governo Bolsonaro, apesar da imagem pública em prol das pessoas com deficiência, produziu diversos retrocessos no acesso a direitos das pessoas com deficiência. Uma das medidas deste fatídico governo foi a expedição do Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020, que incentivou a volta das escolas ditas especiais que promovem a segregação de pessoas com deficiência. 

O currículo de biblioteconomia não prepara os bibliotecários para a inclusão, não aprendemos a desenvolver métodos inclusivos de estudo de usuários, nosso desenvolvimento de coleções não contempla a necessidade de acessibilidade nos diversos tipos de materiais que compõem os acervos, nossas discussões em torno da biblioteca escolar não inserem a discussão sobre a acessibilidade dos ambientes informacionais, que não se traduzem em rampas e audiolivros. 

Além dos impactos da promoção da segregação pelo governo federal tiveram impactos na vida de pessoas com deficiência e suas famílias o trabalho precarizado de mediadores educacionais. No Distrito Federal, os mediadores que atuam nas salas inclusivas integram o Programa Educador Social Voluntário – ESV, regulamentado pela Lei Distrital nº 3506/2004 e Decreto Distrital nº 37010 de dezembro de 2015. Segundo a legislação, os ESV somente recebem o ressarcimento referente a transporte e alimentação. Esses profissionais diferente dos demais trabalhadores da educação não têm acesso a direitos trabalhistas e devido a baixa remuneração migram de atividade e abandonam o acompanhamento de crianças com deficiência. Essa precarização faz com que os cuidadores não possam exercer suas atividades laborais, impacta na qualidade de vida das pessoas com deficiência, provoca situações de crise, desmotivação, perda dos avanços do trabalho multidisciplinar e intersetorial. 

O Brasil passou por uma reforma psiquiátrica que levou à clandestinidade o enclausuramento de pessoas em adoecimento e privilegiou o cuidado em liberdade. Desta reforma os Centro de Atenção Psicossocial – CAPS se tornaram o espaço público para diagnóstico, acompanhamento e reabilitação de pessoas em adoecimento mental. Apesar de sua luta histórica e do avanço significativo a Rede de Atenção Psicossocial – RAPS ainda apresenta diversas dificuldades, sendo um dos grandes gargalos a atenção psicossocial infantil. Os usuários enfrentam atendimento precarizado devido a falhas quantitativas e qualitativas no dimensionamento de equipes e disposição de profissionais de acordo com o perfil epidemiológico, distribuição espacial do território e população residente, o que gera filas e demandas que não podem ser acolhidas pelos serviços. 11 anos, onze meses e vinte nove dias, 17 anos, 11 meses e 29 dias, 15 anos, 11 meses e 29 dias representam mudança de modalidade de serviço na RAPS e para familiares e cuidadores são gatilhos de desassistência de um serviço que oferece no Sistema Único de Saúde – SUS qualidade abismal com relação aos serviços privados. Quanto mais você puder pagar melhor será o tratamento e acesso a serviços com equipes multiprofissionais. As mães, cuidadores e familiares almejam centros especializados para verem seus filhos se desenvolverem e se tornarem na medida de suas possibilidades sua melhor versão. 

Como você vê o acesso a saúde e educação das pessoas com deficiência?

Ainda é um desafio em ambas as áreas. Mas por um lado, temos uma legislação na educação por exemplo, que garante o direitos de todos por uma educação inclusiva. A LBI e a lei Berenice Piana, são leis que asseguram suporte adequado e o amplo acesso dos alunos com deficiência porque a gente sabe que a inclusão tem um impacto positivo na aprendizagem de toda a comunidade escolar. Mas estamos caminhando, ainda existem muitas barreiras a serem vencidas e a atitudinal é a principal delas. Porque o capacitismo é estrutural e a sociedade ainda enxerga as PcD como incapazes ou que precisam de conserto. E viemos de quatro anos de muito pavor e ataques a educação, falas preconceituosas do Ministro da Educação e do chefe de estado se referindo aos alunos com deficiência como “problemas” é que nivelam por baixo os demais. Fora isso, o retrocesso de incentivar as escolas especiais, e diversos cortes de verbas na área da educação e saúde, fizeram com que o acesso à essas áreas para este grupo socialmente vulnerabilizado, sofressem ao longo dos últimos anos. É necessário daqui pra frente, voltar com investimento, aumentar as políticas públicas, lutar contra o capacitismo e ter PcD participantes dos processos de tomadas de decisões dos espaços de poder.

Fale um pouco do Lagarta Vira Pupa e da sua trajetória como ativista

Recentemente tive o privilégio e a honra de ser convidada pra integrar o time maravilhoso de coordenadoras do ILPV, um projeto que nasceu a partir das experiências de uma mulher potente que é a Andrea Werner, mãe do Theo, um garoto autista. Que hoje é um Instituto que acolhe pessoas com deficiência e suas famílias, participa de projetos de inclusão porque acredita que lugar de PcD é onde ele/ela quiser! Conheci a Jessica Borges, que é diretora do instituto numa roda de conversa on-line de mães atípicas e depois, numa mobilização que participamos contra o decreto 10.502, mais um ataque promovido pelo atual governo, contra a educação. E desde então, estamos juntas nas trincheiras lutando em prol dos direitos das pessoas com deficiência e direitos humanos. Me vi ativista por ser familiar de uma PcD, que tem seus direitos sendo negados constantemente. Não lembro em que momento, so sei que se eu não lutar as coisas não caminham pra ela. E encontrar outras mulheres mães nesse caminho que te entendem e estendem a mão, é fundamental. Te faz pertencer e saber que você não está sozinha, porque a maternidade atípica é um lugar social solitário. Ao mesmo tempo que somos chamadas de “guerreiras”, ninguém quer ser mãe atípica justamente pelas inúmeras ausências não só do Estado como tb da sociedade. O ILVP é feito por mulheres mães e pessoas com deficiência, e estar ao lado delas é um constante aprendizado e um lugar de afeto.

Qual é o papel da escola na vida de suas filhas ? As duas tiveram acesso à mesma escola?

A escola é um espaço rico não só de aprendizagem pedagógica, mas também uma oportunidade de convivência com as diferenças, algo que nos enriquece enquanto pessoas. Enfrento duas realidades diferentes, pois minha filha mais velha a Clara, de 14 anos, sempre estudou em escola privada. Apesar de sofrer discriminação devido ao seu cabelo, nunca teve matrícula negada ou foi vista como “problema” na escola. Com a Maria Flor tudo envolve uma série de barreiras porque ela é uma criança com deficiência múltiplas, que precisa de suporte não só de monitor mas também de apoio pedagógico. É isso ainda é visto como “trabalhoso” em muitas escolas. Tentativas de mudá-la de escola indicando para uma dita especial, pois os olhos da sociedade foram ensinados a olhar somente o laudo do aluno com deficiência. E se esquecem de olhar pras potencialidades, se esquecem de oportunizar e assegurar os direitos deles. Mas eu acredito na escola pública, na educação inclusiva de qualidade e luto por ela! Porque a inclusão é possível e beneficia todo mundo, não somente as pessoas com deficiência. Além de ser um direito.

Qual foi o papel da biblioteca na sua trajetória educacional ?

Toda minha vida escolar foi dentro da rede público da ensino. E tive a sorte de passar por escolas que sempre incentivaram a leitura e através dela, poder conhecer a nossa história e ancestralidade. Lembro da escola classe que estudei, havia uma biblioteca muito bonita e colorida, da qual tínhamos o incentivo de ler, pegar livros pra levar pra casa ou ler durante o recreio. No ensino médio, havia um projeto muito bacana de escolher um livro de autor brasileiro pra que produzíssemos e encenássemos peça de teatro a partir do história do livro. Foi através dessas vivências que conheci diversos autores como Machado de Assis, Jorge Amado, Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus, Lima Barreto, e pude continuar tendo o hábito da leitura, mesmo que agora através da internet e em menor número do que gostaria.

O que as bibliotecas representam na trajetória escolar de suas filhas?

Sempre incentivei o hábito da leitura, mas hoje devido a tecnologia e as redes sociais essa quantidade de conteúdo por segundo, fica cada vez mais difícil processar as informações e parar pra fazer uma boa leitura de um livro. Tudo é muito rápido hoje, sinto que não é como há tempos atrás. As escolas têm perdido um pouco o encanto para os alunos. Lembro que na minha época, a biblioteca era um lugar mágico, não só pra brincar com livros, mas pra descobrir lugares e histórias. Na escola da Clara, ainda existe o incentivo de ler livros, porém se tornou uma obrigação para ganhar ponto. Por isso, sigo com hábito de frequentar livrarias e nos presentear com livros. Ela tem uma prateleira no quarto repleta de livros. 

No caso da Maria Flor, infelizmente não é um espaço inclusivo e acolhedor para ela, pois a biblioteca tem sido um espaço esquecido pelas escolas no quesito acessibilidade e inclusão. Na escola onde ela estuda atualmente, a biblioteca não está em funcionando. Parece um depósito, um lugar esquecido.

Qual é a biblioteca que você almeja que suas filhas tenham na escola ?

A biblioteca é uma importante aliada no desenvolvimento pelo gosto da leitura e também é através dos diferentes livros, títulos e autores que “viajamos” por lugares, culturas e a história. A valorização de quem somos de fato e do nosso passado é fundamental pra construção do quem somos hoje e do que buscamos pro futuro. É o que espero e luto para que elas tenham e as crianças que virão: um ambiente que seja não só disseminador de informação e cultura, mas também um recurso no processo de ensino-aprendizagem que esteja sempre em constante atualização de conhecimento em todas as áreas do saber. Que as bibliotecas estejam abertas a receber todos os alunos independente de idade, sexo, raça, religião e corpos, que nenhuma barreira seja ela arquitetônica, comunicacional ou atitudinal que impossibilite os alunos com ou sem deficiência, de participar efetivamente do ambiente escolar e do acesso ao conhecimento. E que a biblioteca volte a ter um status de lugar importante é primordial na nossa sociedade.

Fale um pouco das suas demandas no ativismo em torno da síndrome de Pitt-Hopkins, Autismo e rol taxativo ?

Nem sempre trabalhei como ativista, vc não escolhe ser. Quando vê, já está lá meio que obrigada a estar porque é preciso lutar pra aceitarem a existência da minha filha. Minha caçula chamada Maria Flor que hoje tem 6 anos, nasceu com uma síndrome genética rara chamada Pitt-Hopkins. Associada a essa condição, é autista e uma pessoa não oralizada, ou seja, ela não fala. Então desde o diagnóstico dela, que ocorreu quando ela tinha 2 anos e 9 meses, comecei a me envolver com organização de eventos de conscientização e propagação de informação sobre autismo e doenças raras. Organizava palestras com profissionais e terapeutas, caminhadas de conscientização sobre ambos os assuntos. Comecei a conhecer muitas pessoas, familiares de PcD, outros ativistas e quando em fevereiro desse ano o julgamento do STJ foi marcado, me juntei as idealizadoras do movimento, Adriana Monteiro e a Andrea Werner e outras mulheres mães atípicas e PcD, para lutarmos contra mais esse retrocesso que poderia afetar a saúde de todos brasileiros, inclusive usuários do SUS, já que ele poderia entrar em colapso se a saúde suplementar começar a negar tratamentos e terapias paras pessoas com deficiência, doenças raras e crônicas, e tantas outras questões de saúde. Por ora, a lei do rol exemplificativo foi aprovada. Mas seguimos em alerta pois os planos de saúde estão tentando a todo custo, reverter a situação

Como os bibliotecários podem somar na luta do acesso a direitos de pessoas com deficiência e com doenças raras ?

Acho que a biblioteca não pode ser interpretada só como um espaço físico, mas tb um ambiente atrativo que faz parte necessariamente do processo educativo, independentemente qual condição o aluno tenha. E talvez essa seja a maior questão, olhar não só pro espaço mas pra escola e compreender que existirão diversos alunos. E que o aprender, que passa pela leitura e conhecimento, pode ser adquirido de formas variadas. Então é preciso que os bibliotecários também sejam capacitados pra olhar as individualidades dos alunos e que alguns precisam e terão o direito de ter um apoio pra ler um livro, por exemplo. 

Não basta só convidar o aluno com deficiência para a biblioteca é preciso também ofertar um atendimento especializado com recursos, adaptações e tecnologia assistiva, para que o bibliotecário seja mais um agente facilitador do processo educativo de todo aluno. Porque lugar de pessoa com deficiência é em qualquer lugar. 

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