Em 1962, ano em que a Universidade de Brasília (UnB) foi inaugurada, Darcy Ribeiro convidou Edson Nery da Fonseca para ministrar naquela instituição a disciplina de metodologia científica, conforme explica o próprio Edson: “Darcy Ribeiro me convidou para ensinar na universidade metodologia científica, dizendo o seguinte: ‘nós montamos três cursos de mestrado: um em Artes, um em Letras, outro em Ciências Humanas, e os alunos não sabem anotar livros, leituras, nem preparar suas dissertações de mestrado. Então eu queria que você viesse ensinar’”. Nery aceitou o desafio.

Pouco tempo depois, Darcy lançaria a Edson Nery um novo desafio: montar uma biblioteca na UnB. “Isso foi pra mim uma coisa formidável, porque havia muito dinheiro para comprar livros”, disse Nery certa vez. O trabalho de montagem da nova biblioteca começaria pela compra de grandes acervos particulares.

Mas os desafios não pararam por aí. A missão agora era organizar o Departamento de Biblioteconomia naquela Universidade. Neste momento Nery deixa a coordenação da biblioteca, cargo para o qual indica Abner Vicentini (1929 – 1976), então diretor da Biblioteca do Centro Tecnológico da Aeronáutica de São José dos Campos, São Paulo.

À época um novo regimento interno previu uma nova Faculdade de Estudos Sociais Aplicados com quatro departamentos: Administração, Biblioteconomia, Comunicação e Direito. “Olha, os professores estão querendo saber o porquê da reunião de quatro Departamentos numa só Faculdade de Estudos Sociais Aplicados”, indagou o professor Valnir Chagas, que foi o responsável pela reformulação do regimento. “Diga a seus colegas que nessa Faculdade vão ser formados os defensores das forças sociais, que são: administradores, bibliotecários, comunicadores e juristas”, respondeu-lhe Nery.

Os causos comprovam a vida de desafios intelectuais aos quais Edson Nery esteve submetido ao longo de sua brilhante trajetória acadêmica. Trajetória esta que se encerrou no dia 22 de junho de 2014. Vítima de infecções urinária e pulmonar, Nery faleceu em sua casa, na cidade de Olinda, Pernambuco, onde vivia desde 1991.

Querido e admirado por muitos, o intelectual deixou sua marca na vida de alunos e colegas, como na de Luiz Antonio Gonçalves que o conheceu em 1971 quando este foi estudar Biblioteconomia na UnB. “As suas aulas e palestras formaram a visão crítica que tenho da profissão. De aluno tornei-me seu amigo, algo do que tenho orgulho. Muitas vezes frequentou a minha casa e apreciava uma sobremesa de abacaxi feita por minha mulher a qual chamava ‘delícias de Ubiraci’”, relembra.

“Edson Nery: apenas um bibliotecário” é o título do perfil escrito por Gonçalves sobre os pioneiros da Biblioteconomia na UnB, trabalho que pode ser acessado na página da Faculdade de Ciência da Informação daquela Universidade.

Mais professor do que bibliotecário, como costumava dizer, Nery também se notabilizou pela escrita. Sua extensa obra literária versa sobre assuntos variados, na qual costumava defender posições polêmicas como a de que o ensino de biblioteconomia no Brasil deveria ser a nível de pós-graduação, a exemplo do que ocorre em diversos países: “o bibliotecário enciclopédico acabou-se. Então os bibliotecários têm que ser especializados. Então tem que ter graduação numa área do saber que for do seu interesse: Artes, Letras, Ciências, Ciências Humanas e depois uma pós-graduação, mestrado e, se quiser, doutorado em biblioteconomia”.

O clássico “Ser ou não ser bibliotecários e outros manifestos contra a rotina” (ABDF, 1988), no qual ela faz duras críticas a Adonias Filho, à época diretor da Biblioteca Nacional, lhe rendeu um processo administrativo junto ao Ministério da Cultura e ao SNI (Serviço Nacional de Informações, órgão criado para supervisionar e coordenar as atividades de informações e contra-informações no Brasil e exterior durante o regime civil-militar), no qual teve de dar explicações ao general Golbery do Couto e Silva. Nery viu o processo ser arquivado posteriormente.

Amigo de longa data de Gilberto Freyre (1900 a 1987), Nery acabou por tornar-se uma espécie de curador da obra do autor de “Casa grande e senzala” e “Sobrados e Mucambos”, título que não aceitava. Sobre Freyre e sua obra, o bibliotecário escreveu trabalhos que se tornaram referência como “Gilberto Freyre de A a Z” (MinC e outros 2002) e “Em torno de Gilberto Freyre” (Fundação Joaquim Nabuco, 2007). Antes de ver seus problemas de saúde se agravarem, ele percorria o Brasil proferindo palestra sobre a vida e a obra do velho amigo.

Das diversas polêmicas em que se envolveu, Nery destaca uma em que ele, mesmo sendo Udenistas e Lacerdistas, rebateu uma crítica feita por Carlos Lacerda, uma figura de quem o bibliotecário pernambucano se dizia admirador: “[…] Carlos Lacerda, que quando foi cassado pela ditadura militar, ele escrevia no Diário de São Paulo com o pseudônimo de Júlio Tavares e ele procurava assuntos para atacar a ditadura. Então um dia lá sai o Carlos Lacerda com um artigo, [depois] que viu no Diário Oficial um edital sobre um curso superior de biblioteconomia em Minas Gerais. E ele dizia ‘veja à que chegou o governo, uma atividade que se resume em arrumar e espanar livros, tem um curso superior’”.

“Aí eu não pude deixar de responder”, lembra Edson Nery. “E eu, insuspeito, porque fui sempre um admirador dele… E depois disse mais: eu fui bibliotecário da Câmara dos Deputados quando ele era deputado federal. Ele sabia a importância da biblioteca, nós todos na biblioteca éramos Udenistas e Lacerdistas, no Rio de Janeiro, no Palácio Tiradentes, de modo que tudo que ele precisava o secretário dele vinha na biblioteca e nós dávamos. E depois ele dizer isso… O que é que a política faz a pessoa”, recorda o professor emérito da UnB, título concedido após sua aposentadoria compulsória, em 1995.

*Uma outra versão deste artigo foi publicada na edição 33 da Revista Biblioo quando do falecimento de Edson Nery da Fonseca.

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