Adelaide Ramos e Corte é uma daquelas bibliotecárias consideradas referência para área. Com uma vasta experiência profissional, tem um papel significativo na atuação junto ao movimento associativo da biblioteconomia. Assim como muitos bibliotecários e bibliotecárias, ingressou na graduação sem conhecer muito a respeito da profissão, mas com o passar do tempo se apaixonou pela área e nela permanece desde 1976, quando concluiu a graduação em biblioteconomia pela Universidade de Brasília (UnB).

Nesta entrevista, Adelaide revela o início de sua trajetória profissional, assim como as conquistas e desafios que enfrentou em seu percurso. Com uma atuação significativa junto ao movimento associativo da área, ela chama atenção para importância da participação e do conhecimento da classe a respeito dos órgãos de representatividade.

Conte um pouco de sua trajetória profissional. Como começou sua relação com a biblioteconomia?

Começou quando eu estava no 3º ano do Científico e precisava decidir o curso que faria na Universidade e escolher minha profissão. Sempre gostei de psicologia e queria cursar essa graduação. Mas no ano que fiz vestibular, a Universidade de Brasília (UnB) não ofereceu vagas para o curso. Então fui procurar outro.

Fiz teste vocacional que me indicou qualquer curso na área de humanidades. Fácil, não? Aí fui para o catálogo da UnB, ler as ementas, a característica do profissional e o mercado de trabalho. Quando parei na página da biblioteconomia, nunca tinha ouvido falar nessa profissão, mas fiquei simplesmente encantada com a descrição da mesma. Não tive dúvidas. Fiz minha inscrição no vestibular para biblioteconomia.

Passei no vestibular e então começou meu contato com essa profissão que abracei com toda força do meu ser e me fez muito feliz. Essa profissão me sustentou financeira, emocional e profissionalmente.

Na Universidade tive o prazer de ser aluna, e consequentemente preparada para o exercício profissional, por professores fantásticos, donos de uma cultura geral invejável e de um profundo conhecimento do papel social da biblioteconomia, num país em desenvolvimento.

Fiz estágios em instituições onde aprendi muito e exerci minha profissão em lugares onde os gestores nos deram oportunidade de crescer, como a Biblioteca Central da Universidade de Brasília, biblioteca universitária, onde trabalhei na catalogação de livros da classe de economia, tínhamos metas a cumprir em termos de livros catalogados por dia e com qualidade, com o mínimo de erros possível.

Naquela época os recursos de busca de informação eram poucos. Após me aposentar, em 1998, tive o privilégio de voltar para trabalhar em uma biblioteca universitária, de uma instituição privada, primeira experiência no setor privado, após quase trinta anos de serviço público.

A biblioteconomia abriu portas incríveis para mim. A então Empresa Brasileira de Transportes Urbanos nos colocou ao lado de engenheiros calculistas, exatos e como era importante buscar informações técnicas para essa turma. Foi minha primeira experiência em trabalhar de forma sistêmica com os órgãos do Ministério dos Transportes, que representavam todas as modalidades de transportes: terrestre, viário, aquaviário, urbano, interestadual etc. Sendo pioneiros na construção de um Tesauro em Transportes.

Na hoje Escola Nacional de Administração Pùblica (ENAP) iniciamos outra perspectiva profissional, preparando servidores públicos para o exercício de suas funções. Experiência ímpar.

Fui muito feliz como bibliotecária. Ao mesmo tempo em que trabalhava em uma instituição, buscava sempre obter a visão da profissão de uma maneira geral. Quando inauguramos a Biblioteca da ENAP, em 1981, a festa foi grande e contamos com a presença dos presidentes, à época, da Associação dos Bibliotecários do Distrito Federal (ABDF), do Conselho Regional de Biblioteconomia, de professores do curso da UnB, e da maioria dos dirigentes das bibliotecas de Brasília.

Foi uma festa tão linda, que a visão dos dirigentes da ENAP sobre o papel da nossa pequena biblioteca, mudou muito. Foi muito importante o apoio e a visão de integração, de colaboração, que pudemos passar da atuação das bibliotecas. A visão geral que buscava sobre a nossa profissão, se deu com a participação ativa e efetiva no movimento associativo.
Brasília das décadas de 1970 e 1980 era a cidade das bibliotecas especializadas. Grandes acervos, equipes muito bem preparadas, sistemas especializados em pleno vapor, a exemplo das áreas de saúde, meio ambiente, transportes, pesquisa agropecuária, dentre outros.

Nessa época a ABDF [Associação dos Bibliotecários e Profissionais da Ciência da Informação do Distrito Federal] ocupava um lugar de destaque no cenário nacional e dentre suas muitas atividades, publicava a Revista de Biblioteconomia de Brasília, em parceira com o Departamento de Biblioteconomia da UnB.

Essa revista tinha nota 5 na Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e por isso recebíamos recursos para sua publicação, o que era uma grande ajuda e um reconhecimento por parte do Estado, da importância do movimento associativo e sua contribuição com a literatura da área. E eu estava lá na ABDF, como voluntária, acompanhando e trabalhando muito. Tudo muito bom. Só coisa boa.

Brasília nunca teve sindicato de bibliotecários e a ABDF sempre era chamada para representar essa categoria profissional nos fóruns e nos momentos de negociação. Coisa incrível. Uma associação civil, lutando por direitos trabalhistas.

Com a biblioteconomia tive o privilégio de conhecer, por esse Brasil afora, profissionais, que além de comprometidos com a profissão, são pessoas maravilhosas, cuja amizade conquistada, fez e fará parte da minha vida, para sempre. Profissionais com quem muito aprendi a amar nossa profissão.

Me aposentei em 1998, mas a biblioteconomia não se afastou de mim. Fui para iniciativa privada, governo distrital, experiências novas e inovadoras e voltei para o movimento associativo.

Você tem uma vasta experiência e atuação na área de biblioteconomia. Como você enxerga a questão do esquecimento que o bibliotecário tem de si mesmo e de sua profissão?

Somos uma categoria muito pequena em números. Em efetivo exercício profissional, não chegamos a 35 mil profissionais em todo o Brasil e fazemos pouco barulho. Apesar de sermos considerados uma profissão liberal, a grande maioria dos bibliotecários brasileiros possui um vínculo institucional, possui um empregador, seja da área pública ou privada e se acomoda com o emprego. Seja pelo salário, pela facilidade e proximidade de sua residência, pelas garantias trabalhistas, enfim permanece em uma zona de conforto individual.

Talvez o que mais importa seja o seu mundo institucional, certamente para garantia de emprego e aí procura trabalhar bem e nesse caso, conhecemos muitos exemplos (o que é muito bom) de profissionais que se tornam indispensáveis às suas instituições. Mas fica só por nisso mesmo. Eu creio que esse esquecimento é mais por comodidade. Obtido seu sustento, nada mais importa.

Ao contrário de outros países, o Brasil ainda tem um ordenamento jurídico que dispõe e regula o exercício da profissão de bibliotecário. Na sua opinião, precisamos rever a legislação da área? Até que ponto a reserva de mercado é uma garantia para a profissão nos próximos anos?

Infelizmente ainda vivemos em um país extremamente legalista e esse legalismo fala mais alto, por vezes, que a própria competência. Nesse cenário, somos sim, uma profissão estruturada, fazemos parte de um cenário organizado. Contamos com excelência nos cursos de formação (graduação) excelência na academia, na pesquisa e extensão, na competência dos professores que nos formam, na qualidade dos profissionais que fazem a profissão, temos um mercado de trabalho claro, funções da profissão bem delimitadas, sabemos o que devemos fazer e como fazer, temos métodos, processo e metodologias de trabalho bastante bem definidas e, apesar de toda apatia, temos um movimento associativo que promove ações que valorizam a profissão e mostram para a sociedade o que podemos oferecer a ela.

Com relação à reserva de mercado, esse privilégio não é somente dos bibliotecários. Tenho uma experiência interessante e que marcou um determinado momento da minha atuação profissional. Certa vez, quando na presidência da ABDF, participamos, a pedido de bibliotecários de um determinado órgão vinculado à saúde, de uma reunião para defender a importância da biblioteca e da informação naquela instituição. Presentes à reunião, profissionais da área administrativa, médicos, enfermeiros, pesquisadores, enfim, um pessoal bastante comprometido e capacitado.

A uma certa altura, o coordenador da reunião disse que entendia muito bem o papel da biblioteca e do bibliotecário, concordava com os projetos, enfim, como nossa proposta, mas não via nenhuma necessidade de ser um bibliotecário a ocupar a direção daquela biblioteca. Sem discutir, dissemos que concordávamos com ele, desde que o chefe do posto de enfermagem daquele hospital fosse um técnico de enfermagem e não um enfermeiro. Imediatamente os enfermeiros se rebelaram e não concordaram com aquela nossa sugestão. Final da história, foi nomeado um bibliotecário para dirigir aquela biblioteca.

Cada macaco no seu galho. Jamais teria coragem de dirigir um setor de recursos humanos, um hospital, um escritório de advocacia, uma escola, não tenho competência nem formação para desempenhar qualquer função que não esteja vinculada diretamente à biblioteconomia. Mas nem todos pensam assim, acabam assumindo funções e postos para os quais não estão preparados. Até onde a sociedade terá prejuízos com essas situações? É nisso que devemos pensar. No que a sociedade vai receber com a atuação profissional de qualquer cidadão

Não me preocupo com a reserva de mercado, porque o próprio mercado fará essa seleção natural. Porque temos bibliotecários, psicólogos, médicos, professores e tantos outros, desempregados? Me preocupo sim com a capacidade de a nossa academia preparar profissionais para o futuro, com opções de desempenho profissional que extrapolam o ambiente físico das bibliotecas.

Vejo também que a pandemia do Covid 19 apresentou um cenário que nos obrigou a repensar as ofertas de serviços e produtos das bibliotecas e temos exemplos de sucesso nessa área. Bibliotecários deixando de pensar em espaços físicos, em grandes acervos, em estantes recheadas de livros e transformando as bibliotecas em deliciosos espaços pequenos com acesso ao mundo. Rever a legislação da nossa área é importante sim, para acompanhar todo processo evolutivo pelo qual estamos passando. Mais para acompanhar essa evolução, do que para garantir mercado de trabalho.

Você já integrou a gestão de órgãos de representatividade dos bibliotecários. Na sua opinião por que a classe bibliotecária não participa de forma mais efetiva desses órgãos?

Porque dá muito trabalho participar de uma associação, de um conselho de classe ou de um sindicato. O bibliotecário cumpre uma jornada de trabalho que não é das mais tranquilas, vive sob pressão diária, trabalha muito. Bibliotecário que é bibliotecário trabalho muito. Tenho certeza disso. E são poucos que ainda se dispõem a trocar suas casas por uma noite de discussões, análises, decisões, nas associações, conselho ou sindicato.

Com exceção do sindicato, quem colabora com os demais órgãos associativos não é liberado nem para participar das reuniões oficiais. Aí fica tudo muito difícil. Além do que, ninguém quer sair da sua zona de conforto. Por outro lado, nem todas as pessoas possuem a vocação para trabalho voluntário, não é?

Parte dos bibliotecários ainda tem dificuldade para identificar a diferença entre a atuação dos Conselhos Regionais e do Conselho Federal de Biblioteconomia. A que você atribui isso?

Infelizmente o bibliotecário possui essa dificuldade mesmo. Parte porque não há motivação por parte da própria universidade. Não existe espaço na matriz curricular para analisar o cenário da profissão, sua organização. É preciso que esse assunto faça parte da grade curricular. Muitos profissionais saem da universidade sem nunca terem ouvido falar de Conselho, Sindicato ou Associações de sua profissão. Se dão conta quando encontram um emprego e precisam apresentar o registro profissional. Dirigem-se ao Conselho e ficam sabendo que precisam pagar uma anuaidade para obter o registro. Qualquer que seja o valor da anuidade, será muito para esse profissional que não entende a importância dessas instituições para sua atuação profissional.

Fico mais assustada ainda quando vejo profissionais assumindo as funções desses órgãos e confundindo tudo. Confundem atribuições de Conselhos com Associações, com Sindicatos. Uma loucura.

Quero aproveitar esse espaço para esclarecer essa questão. Os Conselhos profissionais são órgãos de Estado. Foram criados para ajudar o Estado brasileiro a fiscalizar o exercício das profissões, para evitar que um bibliotecário se passe por cirurgião. Existem única e exclusivamente para isso. Fiscalizar o exercício profissional. Não precisam se preocupar com a formação de profissionais, com lutas salariais, com a educação continuada, com festas, com política, nem nada.
A fiscalização é um processo silencioso. Envolve pessoas e deve gozar do sigilo necessário. Nos Conselhos, a filiação é obrigatória. Porque só serão conhecidos os profissionais registrados, e o bibliotecário só poderá exercer a profissão após o término de sua formação, se for autorizado pelo Conselho, se seu pedido de registro for aceito e aprovado. Os membros dos Conselhos ganham ajuda de custo para o deslocamento para as reuniões e diárias e passagens para reuniões fora de sua cidade. Nada mais que isso.

As Associações civis, ao contrário. Por não fazerem parte da estrutura de Estado, estão livres para promover a profissão junto à sociedade, da forma como entenderem ser necessário. Podem congregar, divulgar, promover a educação continuada, realizando congressos, cursos, exposições, fóruns, comemorações, incentivando publicações, realizando parcerias com órgãos públicos e privados que contribuam para a valorização do profissional e da profissão, dentre tantas outras coisas. O trabalho na Associação é totalmente voluntário. Ninguém recebe nada. Nem ajuda de deslocamento. Associações não fiscalizam, nem participam de negociações salariais ou melhorias das condições de trabalho. A filiação às Associações é totalmente livre.

Os sindicatos não fazem parte da estrutura de Estado como os Conselhos, mas possuem algumas regalias. Os dirigentes são remunerados, liberados do cumprimento da jornada de trabalho em suas instituições e só eles possuem competência para lutar por salários e melhores condições de trabalho. Normalmente estão filiados a uma Central de Trabalhadores, a um movimento político partidário.

Uma outra característica das Associações e Conselhos é que nenhum dos dois deve assumir uma posição político partidária. Com certeza o presidente de um Conselho profissional ou de uma Associação é um ser político e deve ter sua preferência por uma ideologia político-partidária. Mas não deve transpor essa sua condição, esse seu ideal para essas instituições, em respeito aos seus associados, pois cada um é um ser individual e único e deve ter suas escolhas próprias. Então, cada macaco no seu galho.

Qual a sua percepção acerca do futuro da área de biblioteconomia, do movimento associativo, dos órgãos de representatividade e das bibliotecas públicas? Temos a evoluir ou a cair no esquecimento?

Bibliotecas públicas não vão morrer nunca!!!! Vitória!!! Porque a sociedade está ali, junto, cobrando, usando, participando. Temos lindos exemplos no Brasil de bibliotecas públicas com orçamentos baixíssimos e com trabalhos maravilhosos junto à comunidade. Existem independente do Estado, mas tendo bons bibliotecários.

A biblioteconomia também não morrerá, porque a informação, matéria prima dessa área, não morrerá. Sofrerá sim, atualizações, inovações, melhorias. Mas morrer, não acredito. Já encontramos cursos de biblioteconomia que estão se adaptando, com sucesso, à nova realidade tecnológica, usando esses recursos para capacitar melhor seus alunos e oferecer, à sociedade, profissionais com maior capacidade de suprir suas necessidades de informação.

O movimento associativo, seja pelas associações de bibliotecários, seja pelos conselhos ou outros órgãos representativos, também não vai morrer, porque sempre haverá um pequeno grupo de profissionais que acredita na importância dessas instituições e ações, para a área. A história mostra isso. Se fosse condição para que uma associação existisse, desde que pelo menos 50% dos profissionais fossem a ela filiados, não teríamos uma única associação no Basil.

Brasília, por exemplo, conta com uma Associação forte, a ABDF, com menos de 100 associados, numa população de mais de mil profissionais. Existe representatividade? Não. No entanto, sempre surge um grupo de profissionais que não a deixa morrer. Isso acontece ao longo dos últimos quase 60 anos.

Qual a mensagem que você deixa para os bibliotecários e bibliotecárias do país?

A mensagem é de CONFIANÇA nessa nova geração. Digo que minha geração e a que me antecedeu contribuiu substancial e efetivamente para fazer acontecer a biblioteconomia brasileira. É chegada a hora de entregar o bastão à essa maravilhosa geração que está à frente tanto das atividades das nossas instituições de formação, fiscalização e promoção como das bibliotecas brasileiras. Gente nova. Sangue novo. Habilidades novas.

Confio muito nessa geração para dirigir os destinos da biblioteconomia pelos próximos 50 anos, seja na atuação direta, seja no reflexo do que estão fazendo hoje. Por isso, por essa nova geração que chega com muito gás, a biblioteconomia, considerada de maneira geral por seus professores, escolas, profissionais, movimento associativo, instituições representativas, bibliotecas, não morrerá, jamais!!! Terá nova roupagem. Sempre renovando e inovando. MAS VIVA, PARA SEMPRE!!!!

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