Hoje é 6 de setembro de 2021, e paira no ar um inusitado medo de um certo bicho-papão que pode surgir amanhã, dia da tal independência na história do Brasil. É quase que como o pavor de uma criancinha amedrontada com aquelas assombrações que povoavam o imaginário popular no pequeno povoado, “che vállepe”, Bella Vista, Paraguai, na década de 50, época em que o General Strossner articulava seu golpe militar para uma ditadura.

Pura coincidência psicopatológica, diria Freud.

Mas, vamos lá com as nossas estórias, começando hoje com as andanças noturnas e sinistras de “Cara´í Lu´í[1]; traduzido literalmente seria o Senhor Lobisomem. Não sei o nome daquele vivente, com quem, por algumas vezes, quando vadiava pelos trilheiros das ruas, eu cruzava de repente. Magro, quase que encurvado de tão alto, de uma palidez branquicenta, olhos mormacentos escondidos no fundo das cavidades do rosto e pescoço aquilinos, em cujos ombros se sustentavam o terno preto surrado, essa figura silenciosa, de longe, metia medo em todo mundo e a rua, à medida que ele avançava no lento caminhar dos sapatos empoeirados, ia se esvaziando.

O boato era de que, nas noites de lua cheia, ele se transformava num lobisomem, um lobo enorme e muito cruel e perigoso. Na minha mente de “mitã´í churí casõ boca´í[2], só a sua imagem como vivente já me era por demais de sinistro, e não precisava que se transformasse em nenhum lobo satânico. Mas…

Tantas décadas se passaram, mas as lembranças daquela noite se mantêm indeléveis na minha memória. O ar abafado e quente do começo de verão nos levou para dormir fora da casa, embaixo de uma enramada florida de maracujá. Naquela época, em Bella Vista, quase todo mundo usava umas camas chamadas de paraguaias, que eram muito práticas para se montar, pois suas pernas estavam presas ao estrado, e o seu colchão, também fixa, era feito de uma tela elástica de arame estilo pixaim.

Ali estavam meus pais, no catre grande feito de trançado de couro, e minhas irmãs numa cama paraguaia e eu em outra. A lua cheia avançava pelo céu que, devido à claridade, surgia como um mar azul com ilhas de nuvens que, por alguns momentos, a escondiam e a tudo escurecia. Também ali dormia, um sono mais leve, o Roni, nosso lavrador valente e grandalhão, que, na minha imaginação, mais parecia uma onça; dois guaipecas de raça indefinida lhe cobriam os costados. No silêncio, um ou outro barulho de inseto ou animalzinho que caça pelas folhagens no escuro.

De repente se ouve um forte estralo, como uma grande bofetada, e o latido dos cachorros no meio do bananal. Ganidos, urros, atropelos no meio das folhas secas da plantação, acordamos cada um mais confuso que o outro; eu particularmente não tinha a mínima ideia do que estava acontecendo, mas por precaução me preparei para passar sebo nas canelas. Vi meu pai quase correndo para os fundos do quintal com a arma na mão, um revólver de que ele nunca desgrudava e até dormia com ele embaixo do travesseiro.

Ao luar vi os guaipecas em disparada para a rua, para longe do bananal, e o Roni como que dobrado ao meio, arrastando a bunda pelo chão, sem saber para onde ir, como se estivesse cego. Ouvi o tiro, e um tropel de fuga pelo mandiocal, que foi se distanciando até não se ouvir mais nada, a não ser o lavrador que gania e lambia suas feridas atrás da cozinha. Meu pai retornou e estava muito nervoso. Mandou que entrássemos todos para dentro, e eu, num piscar de olhos, recolhi as perninhas da cama e fui para meu canto num dos quartos, juntamente com as minhas irmãs. Demorei muito para dar mais um cochilo antes do amanhecer, pois estava muito curioso sobre o inusitado acontecido.

Naquela noite, apesar dos meus ouvidos atentos, nada foi comentado sobre o incidente, mas, no outro dia, enquanto eu servia o “caa´ý[3] aos meus pais, escutei farrapos de conversas que me foram deixando as orelhas em pé. Como de costume levantei cedo e fui fazer o fogo no fogão a lenha que não era como os de hoje, de metal, mas feito de tijolos com uma chapa de ferro onde ficam as bocas para se colocar as panelas para cozinhar ou a chaleira para esquentar a água.

Todo filho, por menor que seja, tinha a obrigação de servir o mate aos seus pais ainda na cama, e é ali que toda a conversa interessante começa a rolar de boca em boca. Acho que nunca servi o “caa´ý” com tanta eficiência e rapidez, e os ouvidos atentos a tudo que ali era dito, até murmurado.

— “Cara´í Lu´í…” – escutei meu pai cochichar na direção dos ouvidos da mamãe, virando o rosto para se servir melhor do mate. Então foi isso, um tal de Senhor Lobisomem que esteve barulhando no bananal na noite passada e chegou até a botar a cachorrada para correr e inclusive machucou o Roni, que hoje amanheceu quieto deitado à sombra do pé de manga.

Quando, na hora de tomar o cosido[4] com bejú[5], pude falar com a minha irmã mais velha e mais experiente, a Kéca, lhe perguntei quem era “Cara´í Lu´í”? Ela empurrou a cabeça para trás, e me perguntou:

— Você não sabe quem é o “Cara´í Lu´í”?

— Não.

— É um homem que vira lobo e ataca as pessoas e os animais nas noites de lua cheia. Você nunca viu aquele senhor de terno preto e que parece um morto ambulante?

— Sim, já vi algumas vezes.

A partir daquela noite sinistra, quando ao longe aparecia a figura do morto-vivo de preto, eu sumia do mapa e da narrativa literalmente.

Peço licença ao leitor para que escreva o final desta história depois de amanhã, 8 de setembro.

***

Ontem foi 7 de setembro, e percebi que houve um atropelo no bananal lá para as bandas de Brasília, pois, parece que o “Cara´í Lu´í” ali tentou atropelar a tal da democracia, e se deu mal. Esse nosso imaginário popular nos prega cada peça.

Na próxima estória vamos falar do “Jasy Jatere”, que domina e enlouquece os incautos que andam sozinhos pela floresta. Hoje em dia tanta gente com o celular nas mãos, distraída, é presa fácil para esse tipo de mito.  


[1] Assim denominado, em guarani, “Luisón”, o Lobisomem.

[2] Menina humilde de calças de boca pequena, isto é, calças curtas.

[3] Mate, feito de erva-mate moída colocada na cuia que se enche com água quente.

[4] Chá feito com erva-mate e açúcar, queimados na brasa viva, sem cinzas.

[5] Massa de polvilho assada na frigideira, que substituía o pão na maioria das casas do povo.

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