“A despeito da autonomia da Fundação [Palmares], bem como da separação dos Poderes, entendo que a desmobilização de parcela relevante do acervo da mencionada entidade deva passar por uma discussão mais ampla e plural, de acordo com a finalidade da própria Fundação e das comunidades que ela visa proteger e representar, sendo decisiva a participação de múltiplos atores, sob pena de lesão irreparável aos valores das comunidades negras e da sociedade brasileira como um todo”.

Com esse argumento, o juiz federal Erik Navarro Wolkart, da 2ª Vara Federal de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, decidiu liminarmente, nesta quarta-feira, 23, que Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), não pode promover a doação dos livros, folhetos, folders, catálogos e demais materiais bibliográficos pertencentes à instituição, sob pena de multa pessoal no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) pela doação de cada item, além das demais consequências cíveis e criminais decorrentes do descumprimento de ordem judicial.

A decisão foi tomada em uma ação popular movida pelo advogado Paulo Henrique Lima, militante do movimento negro e integrante de um coletivo da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Por mais que eventualmente, e na visão da Fundação ou de seu principal dirigente, não haja uma correlação direta entre a finalidade da referida Instituição e os livros apontados(folhetos, folders e catálogos do seu acervo), o expurgo dos mesmos de maneira açodada, sem um amplo diálogo com a sociedade, que, ao fim e ao cabo, é a destinatária do material, pode representar prejuízo irreparável”, diz o magistrado em sua decisão.

Há duas semanas a Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao Ministério do Turismo, afirmou, por meio de um relatório, que 54% do acervo da sua biblioteca é composto de publicações “alheias à [sua] missão institucional”, dividindo o material em grupos como “iconografia delinquencial”, “iconografia sexual”, “intromissão partidária”, “sexualização de crianças”, “pornografia juvenil”, “técnicas de vitimização”, “livros esdrúxulos e destoantes”, “livros eróticos, pornográficos e ‘pedagógicos’”, “livros de/e sobre Karl Marx”, “livros de/e sobre Lênin e Stalin” e “material obsoleto”.

A FCP explicou que os critérios para o levantamento temático e quantitativo do acervo foram construídos pela equipe técnica do CNIRC, “dentro de suas atribuições legais e profissionais”. São eles: 1) “Ordem Regimental”, que estariam em desacordo com a finalidade da Fundação e 2) “Ordem Legal”, que contrariariam as leis brasileiras que “vetam e condenam a formação de guerrilheiros; a sexualização de menores; a subversão do estado democrático de direito; e a pregação da violência como meio político ou de alteração da ordem social”.

O relatório, intitulado “Três décadas de dominação marxista na Fundação Cultural Palmares”, assinado pelo seu presidente, Sérgio Camargo, também sugere a mudança do nome da sua biblioteca, que homenageia o escritor, intelectual e militante negro Oliveira Silveira em função da sua “mentalidade voltada para a manutenção de um gueto marxista”. Dentre as centenas de obras retiradas do acervo estão “A crise do Imperialismo, de Samir Amim (Graal, 1977); “Poemas: Rondó da Liberdade, de Carlos Marighella (Editora Brasiliense, 1994); “Homossexualidade: mitos e verdades”, de Luiz Motte (Editora Grupo Gay da Bahia, 2003) etc.

Um parecer técnico assinado pela professora de História do Livro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Ana Virgínia Pinheiro, informa que não consta na literatura científica da biblioteconomia, que é a área de conhecimento no âmbito da documentação, associada às ciências da informação, reconhecida por lei e cuja competência de formação é atribuída a Instituições de Ensino Superior, qualquer referência aos critérios de seleção apontados pela Fundação que justifique o desbaste realizado no acervo da sua biblioteca.

Diversas instituições se manifestaram contra a medida, que também repercutiu muito nas redes. Mas apesar da decisão contra a direção da Fundação, nesta quinta-feira, 24, às 18h, organizações da sociedade civil, parlamentares, personalidades e lideranças negras realizam um ato público virtual contra o racismo e a censura na Fundação Cultural Palmares. Participam do ato, entre outras, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB), Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e Favelas em Luta.

Comentários

Comentários