Ao término de 2021, quando se comemoraram os 30 anos da Lei n. 8.159, de 1991, a Lei de Arquivos, tive diversas oportunidades de ressaltar a importância e a adequação da norma, marco da institucionalização das instituições arquivísticas e referência para a elaboração de outros regramentos nas esferas federal, estadual e municipal e de alguns países da América Latina.
Isso ocorre, especialmente, porque a Lei n. 8.159 apenas estabeleceu os conceitos fundamentais para os arquivos e foi genérica no que diz respeito a sua aplicação. Assim, mesmo com todas as mudanças tecnológicas ocorridas nas últimas três décadas, ela continua sendo considerada apropriada.
Nenhuma lei é imutável, especialmente em um sistema legal de características romano-germânicas, como o brasileiro. Mas é adequado e justo que, no balanço das suas três décadas de existência, os acertos da Lei de Arquivos sejam comemorados. Essas considerações estão registradas em entrevista por mim concedida à Revista do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
No entanto, encontra-se em tramitação, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n. 2.789, de 2021, de autoria das deputadas Érika Kokay e Benedita da Silva, ambas do PT, com o substitutivo apresentado pela relatora, a deputada Fernanda Melchionna, do PSOL, que altera sensivelmente a Lei de Arquivos.
Em audiência pública realizada pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, em 27 de agosto de 2021, juntamente com outros participantes, lamentei que a proposta de alteração da Lei não tenha sido precedida de ampla discussão, especialmente no âmbito do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), órgão responsável pela definição da política arquivística.
O substitutivo ao PL apresentado também não foi debatido amplamente e, embora tenha melhorado a proposta original em alguns aspectos, ainda não atende às necessidades de modernização dos arquivos, propósito da alteração da Lei, conforme estabelece a ementa do PL.
Na Live de lançamento do número 13 da Revista do Arquivo Público do Estado de São Paulo, analisei questões específicas que deveriam ser consideradas no substitutivo, sintetizadas a seguir, com o propósito de contribuir para o debate.
1) Âmbito de aplicação da Lei – no direito brasileiro, as leis novas têm efeito imediato e geral, não dependendo de regulamentação, salvo quando for indispensável, dada a sua própria natureza ou por exigência formal, expressa no seu texto. A Lei n. 8.159/91 carece de leis específicas para aplicação em estados e municípios, porque essa exigência está expressamente registrada em seu art. 21: “legislação estadual, do Distrito Federal e municipal irá definir os critérios de organização e vinculação dos arquivos estaduais e municipais, bem como a gestão e o acesso aos documentos”.
Essa ressalva pode ser eliminada do substitutivo, com a alteração do art. 21-A, tornando a Lei de Arquivos uma norma de âmbito nacional, a exemplo da Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527/2011), que, em seu art. 1º, estabelece que os seus procedimentos devem ser observados pela União, estados, Distrito Federal e municípios. O art. 45 da LAI prevê caber aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios regulamentar e definir regras específicas em legislação própria, obedecidas as normas gerais estabelecidas na Lei. Assim, os seus dispositivos são de aplicação imediata.
A falta de regulamentação específica prejudica, mas não pode impedir o cumprimento da LAI. Assim como a LAI, com a alteração, a Lei de Arquivos passaria a ter aplicação imediata em nível nacional, carecendo apenas de regulamentação pelos Poderes do Estado e entes da Federação. Trinta anos depois, apenas sete unidades da federação emitiram lei e decreto sobre o tema, oito aprovaram apenas decretos e 12 não aprovaram normas.
2) Necessidade de fortalecimento do papel dos arquivos públicos em relação à Lei de Acesso à Informação (LAI), à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a outras leis relativas à prestação de serviços públicos digitais – a Lei de Arquivos foi vanguardista na sua versão original, ao buscar compatibilizar as questões inerentes ao acesso à informação pública, à segurança do Estado e da sociedade e à privacidade dos cidadãos. Essas questões foram posteriormente revogadas e incluídas na Lei de Acesso à Informação e na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei n. 12.965/2018), importantes marcos regulatórios para o aperfeiçoamento da sociedade e do Estado brasileiro.
Embora o art. 17 da Lei n. 8.159/91 tenha estabelecido a competência das instituições arquivísticas em nível federal, estadual e municipal para a administração da documentação pública ou de caráter público, lamentavelmente a LAI e a LGPD não estabeleceram vínculos com os arquivos na implantação de suas políticas intrinsecamente decorrentes da produção de documentos e dados públicos, não incluíram dispositivos que preconizassem a importância dos arquivos públicos para o cumprimento das políticas que elas buscam regular.
Não obstante seja o monitoramento da LAI de competência do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU), e as diretrizes, promoção e fiscalização da proteção de dados pessoais, de responsabilidade da Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), os arquivos públicos são as agências do Estado criadas para o cumprimento do preceito constitucional referente ao direito de todos a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, a serem prestadas no prazo da lei.
Curiosamente, o substitutivo não menciona os dispositivos constitucionais que a Lei de Arquivos deve regulamentar (inc. XXXIII do art. 5º, inc. II do § 3º do art. 37, § 2º do art. 21, e o § 2º do art. 216 da CF) com vistas a sinalizar o papel dos arquivos no direito de acesso à informação e à transparência pública. O substitutivo também deveria incluir diretrizes relativas à excepcionalidade do tratamento dos dados pessoais contidos em documentos de arquivo, reconhecendo que os arquivos são necessários para fazer valer os direitos fundamentais dos cidadãos. Esse é o entendimento do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia, que prevê o armazenamento de dados pessoais por longos períodos ou permanentemente, quando se tratar de arquivamento no interesse público, com vistas à pesquisa científica ou propósitos históricos.
3) Eliminação de originais dos documentos arquivísticos digitalizados – a Lei n. 13.874, de 2019, denominada Lei da Liberdade Econômica, em seu art. 10, altera a Lei n. 12.682, de 2012, conferindo validade jurídica ao representante digital de documento físico digitalizado cujo original poderia ser eliminado, exceto quando se tratar de documento de valor histórico, alterando o dispositivo legal vetado anteriormente sob a alegação, na minha opinião ainda válida, de que os dispositivos ensejam insegurança jurídica.
A questão foi objeto de um outro projeto de lei, alvo de protesto da comunidade arquivística, por meio do conhecido Movimento contra o PL Queima de Arquivo. Na regulamentação desse dispositivo da Lei da Liberdade Econômica, o Arquivo Nacional conseguiu incluir, no Decreto n. 10.278, de 2020, a obrigatoriedade da adoção de padrões técnicos de digitalização para garantir a qualidade de imagem, legibilidade, retenção de conjunto de metadados, adoção de sistemas informatizados interoperáveis, buscando assegurar a integridade e confiabilidade dos documentos, bem como a aplicação de tabelas de temporalidades aprovadas pelas instituições arquivísticas, visando impedir a eliminação de documentos físicos de valor permanentes.
No entanto, a regulamentação conseguida pelo AN enfrenta oposição entre agentes públicos e empresas que intentam racionalizar os custos da preservação física dos documentos (sem considerar o custo da preservação em meio digital). A regulamentação da questão na Lei n. 8.159/91, uma lei específica sobre a matéria, pode ser a oportunidade de disciplinar, de forma mais adequada, a preservação do patrimônio documental, sem, contudo, resultar em guarda ou digitalização indiscriminada de documentos que podem ser eliminados.
4) Exclusão do conceito de gestão de documentos, substituído pelo conceito de política nacional de arquivos – o substitutivo excluiu a definição de gestão de documentos, expressa pelo art. 3º da Lei n. 8.159/91. O artigo passou a incluir a definição de política nacional de arquivos. Os atos normativos que estabelecem políticas não costumam incluir a definição destas. A Lei n. 6.938, de 1981, por exemplo, que estabelece a política nacional de meio ambiente; a Lei n. 10.216, de 2001, relativa à Política Nacional de Saúde Mental; ou o Decreto n. 7.404, de 2010, que regulamenta a Política Nacional de Resíduos Sólidos, entre outros, não definem as políticas que implementam.
No entanto, embora não seja usual, não me parece um problema. Contudo, sou favorável à manutenção do conceito de gestão de documentos, especialmente pela sua importância para dimensionar a contribuição dos arquivos à administração pública. Porém, considero oportuna a exclusão da menção à teoria das três idades. A lei não deve registrar estratégias específicas de organização documental, mesmo se tratando de uma metodologia paradigmática da Arquivologia. As práticas de qualquer área do conhecimento precisam ser constantemente questionadas em busca de maior efetividade.
Como preconizou Terry Cook, em 1977, a teoria arquivística não deve ser vista como um conjunto imutável de leis. O paradigma pós-custodial, a arquivística integrada, os records continuum, a gestão de dados, a criação de repositórios de guarda longa para os documentos digitais, a prestação de serviços públicos digitais, entre outros construtos irão requerer novas abordagens teóricas e metodológicas para a eficiência das políticas arquivísticas, especialmente em contextos em que a localização dos documentos, embora ainda extremamente relevante, passa a ter menor importância que o acesso a eles.
5) O papel do Arquivo Nacional – o substitutivo altera o art. 17 da Lei n. 8.159/91 e estabelece o Arquivo Nacional como autoridade arquivística máxima do Poder Executivo. Considero a mudança um avanço, contudo, não houve alteração do art. 18, que estabelece a competência do Arquivo Nacional para acompanhar e implementar a política nacional de arquivos, embora o novo art. 26 preveja a criação do CONARQ (Conselho Nacional de Arquivos), vinculado ao Arquivo Nacional, com a competência de formulação, monitoramento, avaliação e orientação normativa da política nacional de arquivos, como órgão central do Sistema Nacional de Arquivos – Sinar.
6) Arquivos públicos com autonomia de gestão – o art. 21-B determina que o Arquivo Público exerça atividades típicas de Estado e seja dotado, obrigatoriamente, de autonomia de gestão. Autonomia de gestão na Administração Pública significa que os arquivos públicos serão autarquias, de âmbito federal, no caso do Arquivo Nacional, e estaduais e municipais, nos demais casos. A autonomia é uma das principais características, por exemplo, das agências reguladoras, por se entender que o agente competente para a prestação do serviço ou produção do bem deve ser diferente do agente ao qual é incumbida a regulação da atividade econômica. Em razão da sua natureza de autarquia, subordina-se diretamente ao chefe do Poder Executivo e, como toda entidade da administração indireta, está vinculada a um ministério, que exerce supervisão sobre ela.
Em relação aos arquivos públicos, essa autonomia é desejável, porém de difícil implementação, especialmente por estados e municípios, que, na maioria dos casos, ainda não conseguiram criar o seu arquivo público. Caso a mudança seja aprovada, o AN deixaria de ser órgão central do SIGA, uma vez que os sistemas estruturadores são da Administração Pública Federal direta. Idealmente, no caso do AN, a alteração deveria ser precedida de um plano de carreira para os seus servidores. Além disso, a CF 1988 estipula que a criação de órgãos na estrutura do Poder Executivo ou a determinação de atribuições aos seus órgãos são competências privativas do chefe daquele Poder.
7) A presidência do Conarq – o art. 26, § 1º, do substitutivo estabelece que a presidência do Conarq deverá ser exercida por um representante do Arquivo Nacional. Atualmente, embora vinculado a este último, o Conarq é um órgão com autonomia, subordinado ao Ministro da Justiça e Segurança Pública. O substitutivo não esclarece se o presidente do Conarq, na condição de representante do Arquivo Nacional, será subordinado à direção do órgão representado ou ao Ministro de Estado. A regulamentação do dispositivo poderá resultar em perda de poder político e decisório para o Conarq.
Enfim, esses são alguns pontos para um debate, que deveriam ser consideravelmente ampliados, com a participação da comunidade arquivística e dos usuários dos arquivos, de forma a garantir que a Lei de Arquivos promova o aumento da eficácia e abrangência da política arquivística.