Li o excelente relatório da ARTIGO 19, intitulado “10 anos da Lei de Acesso à Informação: de onde viemos e para onde vamos” (i). Dividido em três partes, o relatório apresenta um resgate histórico-político do regime de transparência, o cenário atual da garantia do direito à informação e uma proposta de agenda para os próximos anos. O documento incluiu consulta a mais de 30 especialistas da sociedade civil, governo, academia e movimentos sociais e quatro estudos de caso que constatam graves tentativas de desmonte da cultura de transparência estabelecida no Brasil, desde a promulgação da Lei de Acesso à Informação (ii) – LAI (Lei n. 12.527, de 2011).

O relatório é publicado em um momento muito apropriado e posiciona a LAI de volta ao centro do debate sobre o resgate à cultura da transparência, um dos pilares necessários da nossa democracia, como apresentado no texto.

O documento é inovador por construir conhecimento sobre o acesso à Informação no Brasil atual. Lamento apenas o fato de as organizações da sociedade civil e o governo ainda não terem feito a ligação necessária entre o acesso à informação, o atendimento às demandas que se denominaram de transparência passiva e a necessidade de fortalecimento dos arquivos, bem como o recolhimento de documentos públicos (físicos e digitais), dados e sistemas aos arquivos públicos para garantir o acesso e a preservação permanente.

O documento menciona a questão da transparência passiva (pág. 80 e seguintes) no capítulo “Informações florestais e desafios na Transparência Passiva – uma análise conjunta”, ao avaliar a necessária abertura de bases de dados públicas. Porém, o acesso às bases de dados públicas ou aos portais de dados abertos, não darão acesso ao conjunto de documentos públicos produzidos pelos órgãos no exercício das suas atividades específicas, como estabelece a Lei de Arquivos (iii) (Lei n.  8.159/1991). No entanto, competem aos serviços arquivísticos a gestão de documentos e o recolhimento daqueles de valor permanente aos repositórios arquivísticos digitais confiáveis (RDC-Arq).

A Lei de Arquivos e o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) são mencionados, ao analisarem-se as condições que propiciaram a aprovação da LAI: “A primeira delas foi a aprovação da Lei n. 8.159/1991, que instituiu formalmente o direito de acesso a documentos públicos, criando o Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ), órgão vinculado ao Arquivo Nacional. A lei estabelece o que são documentos de caráter público e de caráter privado, ainda que deixe em aberto o conceito de interesse público, e o que imprescindivelmente deve permanecer sigiloso”. 

O parágrafo mencionado indica a conexão orgânica entre a Lei de Arquivos e a LAI e deveria inspirar uma análise mais profunda das razões pelas quais os órgãos públicos têm dificuldades em atender aos pedidos de acesso à informação em questões de transparência passiva.

Quilômetros de documentos desorganizados e, portanto, não acessíveis, acumulam-se em depósitos de documentos dos órgãos públicos de todo o país. Para citar apenas dois exemplos, o INSS tem cerca de 700 km de documentos físicos a serem organizados, selecionados e recolhidos ao Arquivo Nacional para acesso público. Não é conhecido o volume de documentos digitais acumulados nessa e em outras instituições públicas. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que recentemente determinou a suspensão da entrega de títulos rurais e outras atividades que não sejam consideradas “urgentes” ou “obrigatórias” por falta de orçamento, armazena quilômetros de importantes documentos fundiários, sem organização, em depósitos precários, em todas as unidades da federação.

A determinação judicial ao Arquivo Nacional (AN) para a anonimização do nome do coronel Olinto nos documentos e relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV) é apresentada (pág. 35) sem, contudo, mencionar que o AN é a instituição arquivística custodiadora do acervo da CNV (e de todos os documentos da Administração Pública Federal), reforçando a impressão do não entendimento da importância dos arquivos públicos no processo.

Em níveis federal, estadual, municipal e distrital, os arquivos públicos são agências criadas para o acesso à informação, compondo ferramentas de gestão indispensáveis à transparência e à eficiência administrativa, à boa governança do Estado e ao atendimento das demandas da cidadania. Tanto é assim que, antes da aprovação da LAI, as questões de acesso à informação constituíam dispositivos da Lei de Arquivos e foram revogadas para uma regulamentação mais abrangente na LAI.

Dados do Conarq indicam que apenas 7% dos municípios brasileiros possuem arquivos públicos institucionalizados. É preciso que as nossas excelentes organizações da sociedade civil respaldem os esforços do Conarq para estimular a criação de arquivos municipais e estaduais, bem como o fortalecimento dos já existentes, apoiem os arquivos públicos e exijam que os governos cumpram a Lei de Arquivos e o § 2º do art. 216 da Constituição Federal: “Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”.

No âmbito internacional, arquivos nacionais desempenham importantes papéis no processo de acesso à informação. Nos EUA, a Lei de Liberdade de Informação (iv,v)  (FOIA, da sigla em inglês Freedom of Information Act) é também uma norma arquivística. Compete ao National Archives and Records Administration (NARA), o Arquivo Nacional dos EUA, atender às solicitações de informações relativas aos documentos dos diversos órgãos da Administração Pública Federal custodiados pela instituição. O Escritório de Serviços de Informações Governamentais (vi) (OGIS, da sigla em inglês Office of Government Information Services), subordinado ao NARA, é encarregado pelo Congresso americano do acompanhamento e revisão das políticas das agências federais e seus procedimentos, em conformidade com a FOIA, sendo também responsável pela resolução de disputas de FOIA entre agências federais e solicitantes. O Comitê Consultivo da FOIA (vii) (FOIA Advisory Committee) reporta-se ao Arquivista dos EUA, título do Diretor do NARA.  A publicação de dados governamentais abertos é também uma atribuição do NARA. (viii) Também no Reino Unido, os dados abertos são disponibilizados pelo seu Arquivo Nacional. (ix)

Na América Latina, a Rede de Transparência e Acesso à Informação (x) (RTA) atua em cinco áreas temáticas: Arquivos, Jurisprudência, Indicadores, Capacitação e Difusão e Governo Aberto. Na página do seu grupo de trabalho dos arquivos, constituído pelos arquivos nacionais dos países latino-americanos, orienta que, para o êxito das leis de transparência, é fundamental contar com padrões na gestão dos documentos públicos, de forma a assegurar o acesso a todo ato administrativo, seus fundamentos, e qualquer outra informação produzida nas instituições públicas. A RTA, inclusive, com apoio do programa EUROsociaAL+, desenvolveu um modelo de gestão de documentos que tem por objetivo apoiar os países, respeitando a diversidade de políticas arquivísticas nacionais e regionais, na preservação e acesso aos documentos nos arquivos.

Segundo o Conarq (xi), o município que não possuir um arquivo público institucionalizado em sua estrutura administrativa está descumprindo a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Arquivos, de 1991, obstaculizando ou inviabilizando a aplicabilidade das leis de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar n. 101/2000), da Transparência (Lei Complementar 131/2009) e da Lei de Acesso à Informação, bem como evidencia a ausência de gestores públicos comprometidos com uma administração eficiente, eficaz e transparente dos documentos gerados e acumulados pelo poder público municipal.

Além de institucionalizar os arquivos públicos dos entes subnacionais, é preciso melhorar os orçamentos destinados aos arquivos em todos os níveis. Implantar políticas públicas requer programas de ação e orçamento. As normas existem e precisam ser cumpridas. Uma rede de arquivos públicos que preserve a documentação do Estado e dê acesso ao cidadão é condição essencial ao bom atendimento à Lei de Acesso à Informação. #10anosLAI

 REFERÊNCIAS

(i) ARTIGO 19. 10 anos da lei de acesso à informação: de onde viemos e para onde vamos. São Paulo, SP, 2022. Disponível em: https://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/files/2022/05/A19-LAI2022_versao-digital_16-05-2022.pdf Acesso em: 21 maio 2022.

(ii) BRASIL. Lei 12.527 de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações. Diário Oficial da União: seção 1, edição extra, Brasília, DF, 18 nov. 2011.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm . Acesso em: 21 maio. 2022.

(iii) BRASIL. Lei 8.159 de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 9 de jan. 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8159.htm. Acesso em: 21 maio. 2022.

(iv) ESTADOS UNIDOS. HR 3802 – The Freedom of Information Act, 5 U.S.C. § 552. H.R 3802 Eletronic Private Information Center. 104th Congress (1995 -1996). Disponível em: https://epic.org/open_gov/efoia.html. Acesso em: 21 maio. 2022.

(v) ESTADOS UNIDOS. The Foia Improvement Act of 2016. 114th Congress (2015 – 2016). Disponível em:  https://www.congress.gov/114/bills/s337/BILLS-114s337enr.xml. Acesso em: 21 maio. 2022.

(vi) NATIONAL ARCHIVES. Office of Government information Services (OGIS). Disponível em: https://www.archives.gov/ogis. Acesso em: 23 maio. 2022.

(vii) NATIONAL ARCHIVES. The FOIA Ombudsman. FOIA Advisory Committee Votes on Additional Recommendations to Archivist. Disponível em: https://foia.blogs.archives.gov/2022/05/16/foia-advisory-committee-votes-on-additional-recommendations-to-archivist/. Acesso em: 23 maio. 2022.

(viii) NATIONAL ARCHIVES. The National Archives and Records Administration –  NARA. Open data policy.  Disponível em: https://www.archives.gov/data . Acesso em: 23 maio. 2022.

(ix) THE NATIONAL ARCHIVES. How to look for records of … Government datasets. Disponível em:  https://www.nationalarchives.gov.uk/help-with-your-research/research-guides/government-datasets/. Acesso em: 23 maio. 2022.

(x) RTA Red de Transparencia y Acceso a la Información. Archivos.  (RTA). Disponível em:  https://redrta.org/archivos/. Acesso em: 23 maio. 2022.

(xi) CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (BRASIL). Criação e desenvolvimento de arquivos públicos municipais: transparência e acesso à informação para o exercício da cidadania. Rio De Janeiro: Arquivo Nacional, 2014. Disponível em: https://www.gov.br/conarq/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/Cartilha_criacao_arquivos_municipais.pdf. Acesso em: 23 maio. 2022.

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