O ano de 2017, literalmente, foi um divisor de águas na história das bibliotecas prisionais brasileiras. Além de ganharem representatividade, por meio da Federação Brasileira das Associações de Bibliotecários (FEBAB), que montou a primeira Comissão Brasileira de Bibliotecas Prisionais (CBBP), também ganharam espaço, de modo inédito, no XXVII Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação (CBBD), ocorrido no último mês de outubro na cidade de Fortaleza, Ceará. Certamente estes fatos ainda serão mencionados um dia nas escolas de formação quando o tema obtiver relevância e pertinência necessárias.

A Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), traz como proposta o direcionamento consciente para se alcançar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) ao longo dos próximos 15 anos, trabalhando em três dimensões: social, econômica e ambiental. Além dos países membros, outras diferentes organizações da sociedade civil auxiliaram por mais de dois anos na elaboração e revisão do texto, incluindo a Federação Internacional de Associações de Bibliotecários e Bibliotecas (IFLA). O tema do CBBD 2017 pautou-se justamente nas diretrizes desta agenda, tendo como tema os “Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas: como as bibliotecas podem contribuir com a implementação da Agenda 2030”.

“Ninguém será deixado para trás”

Esta é a principal premissa da Agenda 2030 e comprovamos no CBBD, neste que é o maior evento da área de biblioteconomia, que nada ou ninguém ficou para trás. Depois de décadas de realização, as bibliotecas prisionais receberam, finalmente, voz e já não são mais negligenciadas pelos profissionais da informação. Em dois momentos, mesa redonda e workshop, a pauta foi os livros intramuros prisionais na rotina dos presos. Mas a CBBP ousou e para carimbar de vez a presença das bibliotecas prisionais, levou para o auditório principal um egresso do sistema prisional, colocando-o ao lado de um professor de biblioteconomia, privilegiando assim o eixo das bibliotecas prisionais, que vai do cárcere às universidades.

Destacamos que esta tem sido uma das militâncias do professor da Universidade Federal do Cariri, Jonathas Carvalho: quebrar os paradigmas que ainda separam o tema das bibliotecas prisionais das salas de aula durante a formação dos futuros bibliotecários. Assim, tivemos um ex-presidiário ministrando fala para inúmeros bibliotecários e demais profissionais da educação e das bibliotecas, ocasião na qual, ao final da fala do professor Jonathas, o egresso sussurrou em meu ouvido: “Nossa, que palestra bacana esta do professor. Ele falou da biblioteconomia de um jeito tão social que estou pensando seriamente em fazer este curso”.

Itamar Xavier, egresso do sistema prisional, mostra sua publicação. Foto: Catia Lindemann / Arquivo pessoal

Sabíamos que seria arriscado, afinal, trata-se de um Congresso tradicional da biblioteconomia, sem contar que trabalhar com esta pauta também coloca os envolvidos no mesmo patamar do jargão popular que nos vê como “defensores dos manos (bandidos)” e tantos outros atributos ofensivos. Nosso próprio convidado chamou-me em particular e nervoso me perguntou: “Eles sabem que sou egresso do sistema, né? Posso ser eu mesmo na minha fala?”. “Não só pode como deve”, respondi de imediato. Pois uma coisa é o nosso discurso, outra é a de quem realmente viveu na íntegra cada palavra por nós defendida, que frequentou uma biblioteca prisional e sabe exatamente a diferença que ela é capaz de proporcionar dentro da privação de liberdade de uma pessoa.

Foi o caso do Itamar Xavier de Camargo, que cumpriu vários anos de sentença, em regime fechado e, pós os livros na prisão, ele resolveu estudar e hoje tem dois diplomas de nível superior: é professor do município de Presidente Prudente (SP), mestrando em educação e autor da obra “A verdade que liberta”, além de vários projetos que visam levar o livro e a leitura para crianças em vulnerabilidade social, visando que elas possam ter acesso aos livros agora e assim não necessitem frequentar uma biblioteca prisional no futuro, como foi o caso dele. Para nossa surpresa, o Itamar não só foi bem recebido, como obteve total empatia e interesse dos presentes pela nossa pauta, que no dia seguinte, dentro do workshop “biblioteca prisional: utopia ou realidade?”, tivemos um público inesperado, por se tratar de algo menor e concorrendo com vários outros eventos paralelos.

Definitivamente as bibliotecas prisionais comprovaram não ser utopia, embora já tenhamos mais de três décadas da lei que as torna obrigatórias dentro das instituições penais e apenas 37% (segundo dados da Infopen) destas possuem uma unidade de informação. Mas dentro do workshop recebemos relatos de colegas que atuam em projetos e trabalhos voluntários voltados à este tipo de biblioteca. Ressaltamos que, por hora, a atividade bibliotecária segue sendo voluntária, uma vez que o cargo de bibliotecário sequer existe no quadro de funcionários do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).

Outro aspecto importante, e que causou-nos um contentamento imensurável, ficou por conta do que tange as escolas de biblioteconomia. Sim, tivemos presente, tanto no auditório, durante a mesa redonda, quanto no workshop, a presença de vários docentes da área. Muitos buscando saber mais sobre o assunto, já que orientam trabalhos de conclusão de curso com esta temática e os que almejam montar projetos direcionados às bibliotecas brisionais ou de leitura, visando a remição de pena por meio dos livros. Verdadeiramente, “ninguém ficou para trás” no maior Congresso de biblioteconomia brasileira.

Os frutos pós CBBD

Para que ninguém fique para trás é necessário fazer pontes e foi o que fizemos durante as pautas que envolviam as bibliotecas prisionais dentro do CBBD. No workshop tivemos o prazer de conhecer a bibliotecária Maianna Paula, coordenadora da Biblioteca da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na ocasião ela mencionou que estava preparando a “Semana do Livro e da Biblioteca” e que o enfoque era justamente o livro e a leitura no cárcere. Não hesitei em sugerir o nome de outro egresso do sistema penal, Daniel Tiago Vieira, o qual tive contato tão logo que saiu da prisão, um cara que tinha tudo para seguir no submundo da criminalidade, mas “atrás das grades havia uma biblioteca” – veja aqui a matéria que fiz na época com ele – e Daniel soube fazer uso dos livros e deles fez sua paixão, tanto que escreveu três obras, de próprio punho, e hoje sua luta é para que as mesmas sejam publicadas. Maianna não pensou duas vezes e, pós-ponte feita, lá estava Daniel contando sua história, acolhido pela biblioteconomia mineira.

Recordo-me de um episódio, assim que o Daniel havia deixado a prisão, sem muitos amigos, rumo para seguir ou teto certo, ele em conversa comigo no telefone, me disse: “Amanhã ficarei incomunicável, sem internet ou créditos no celular. Pois estou de favor na casa de um amigo e terei de sair daqui.” Na hora o meu receio era que ele voltasse a fazer alguma besteira em busca de grana, no entanto, ele em momento algum me pediu alguma coisa. Apenas aquietou meu coração quando notou que eu estava preocupada, dizendo: “Calma, dona Catia, para a cadeia não volto mais. Acredite em mim, mas se não puder, acredite ao menos no poder que uma biblioteca na prisão pode ter na vida de alguém.”

Bibliotecário participam do “workshop biblioteca prisional: utopia ou realidade?” na programação paralela do CBBD. Foto: Catia Lindemann / Arquivo pessoal

Neste mesmo dia ele me chama ao telefone, e antes que eu pergunte como ele tinha conseguido grana para inserir crédito no celular, ele me envia uma foto, batendo laje e todo prosa contando que havia ganhado 70 reais, mais a comida por um dia de serviço. Desde então ele não parou, é um lutador cheio de sonhos e com uma meta: jamais voltar a vida do crime. E, por fim, se o assunto envolve bibliotecas, então não só pode como deve ser assunto da biblioteconomia e dos bibliotecários. E foi e continua sendo e nossa missão – enquanto CBBP – é para que continue sendo.

A agenda 2030 chegou ao cárcere, invadiu celas e percorreu os corredores prisionais mostrando que onde houver um só homem, então este também será inserido, corroborando com as palavras do próprio secretário-geral das Nações Unidas, quando ele destaca: “Os princípios fundamentais que sustentam os novos objetivos da Agenda 2030 são interdependência, universalidade e solidariedade. Eles devem ser implementados por todos os segmentos de todas as sociedades, trabalhando em conjunto. Ninguém deve ser deixado para trás. Aquelas pessoas, mais difíceis de alcançar, devem ter prioridade”.

E tiveram prioridade o Zé do pavilhão número tal, o João da galeria A ou a Teresa do presídio feminino, todos os encarcerados brasileiros fizeram parte, representados pela voz de um companheiro que já esteve atrás das grades ou citados dentro do grande contexto que envolve as bibliotecas prisionais, quando bradamos sempre: biblioteca prisional é um direito do preso, previsto em lei, não é e nem deve ser tomado jamais como assistencialismo.

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