No último dia 04 de maio foi aprovada pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na 330ª Sessão Ordinária, a Resolução nº 391 que regulamenta a remição por estudo, um direito da população carcerária previsto desde 2011, quando a Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal – LEP) foi atualizada para passar a permitir que a educação do apenado, e não apenas o trabalho, também pudesse ser revertido em menos dias da condenação a cumprir.

De acordo com a nova resolução, serão consideradas para o cálculo da remição três tipos de atividades educacionais realizadas durante o período de encarceramento: 1) educação regular (quando ocorre em escolas prisionais), 2) práticas educativas não-escolares e 3) a leitura. Para fazer jus à antecipação da liberdade, a pessoa condenada terá de cumprir uma série de critérios estabelecidos pela norma do CNJ para cada uma das três modalidades de estudo.

“Com a nova resolução, a instituição prisional que desejar aplicar a remição da pena pela leitura, terá de estar apta com a legalidade, tendo uma biblioteca com obras literárias, já que a biblioteca prisional passou a ser o legitimo laboratório para a aplicação deste tipo de remição”, ressalta a bibliotecária Cátia Lindemann, presidente da Comissão Brasileira de Bibliotecas Prisionais (CBBP) da FEBAB, que atuou ativamente na elaboração desta nova Resolução.

Nesta entrevista à Biblioo, Lindemann conta com exclusividade como foi o processo de construção da mobilização dessa iniciativa, as peculiaridades em torno das diretrizes da Resolução nº 391, as atividades que estão sendo desenvolvidas pela Comissão Brasileira de Bibliotecas Carcerárias da FEBAB. Ela também destaca a importância de se investir na ressocialização dos presos e na valorização das bibliotecas brasileiras.

Como se deu a mobilização e a ideia de criação da nova regulamentação da remição de pena por meio da leitura?

A iniciativa partiu do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que implementou um Grupo de Trabalho para montar o “Plano Nacional de Fomento á Leitura nos Ambientes de Privação de Liberdade”. Integram o GT os colegiados representantes do poder Judiciário e do sistema de Justiça, assim como do Executivo e da sociedade civil – neste quesito está a Comissão Brasileira de Bibliotecas Prisionais (CBBP), uma representatividade da Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários e Cientistas da Informação (FEBAB).

Um dos grandes problemas da remição de pena pela leitura sempre foi o grande contingente de analfabetos no cárcere que não conseguiam, por essa deficiência, aproveitar esse benefício. O que a resolução prevê sobre isso?

A nova resolução buscou pelo acesso de todos, inclusive os nãos letrados. Por exemplo, de o indivíduo recluso de liberdade não sabe ler, o seu companheiro de cela poderá fazê-lo em voz alta e ambos farão a argumentação sobre o que compreenderam da obra. O que sabe ler, o fará de modo escrito e o analfabeto via argumentação oral. Tiramos, também, dentre tantas outras burocracias, a necessidade exclusiva de ser uma “resenha” formal. O preso pode dar como retorno qualquer produção literária, desde que a mesma tenha como foco o tema da obra que leu.

Aqui na Penitenciária Estadual do Rio Grande (PERG), a maior do interior do estado do Rio Grande do Sul, onde trabalho na biblioteca que eu mesma implantei há 10 anos, o produto final da remição é feito por meio de poemas, resumos, crônicas e até raps em que os presos contextualizam o que foi lido. Levei este exemplo na hora de arguição da nova resolução de remição da pena por meio da leitura e foi tão bem aceito que acabou senso aceito.

Outro problema em relação às bibliotecas carcerárias é exatamente o conceito do que é uma biblioteca deste tipo, o que faz com que muitas vezes os números do INFOPEN não sejam condizentes com a realidade. Como resolver esse impasse?

Cientificamente falando, deixo aqui o artigo no qual escrevi recentemente, em dezembro último, ao qual aponto o conceito da Biblioteca Prisional, além de trazer toda a técnica que envolve as mesmas, biblioteconomicamente falando, além dos ditames jurídicos que envolvem o livro e a leitura na rotina intramuros das prisões . A CBBP também faz, anualmente, o Boletim Informativo da Comissão, trazendo os dados estatísticos das unidades de informação no cárcere .

Agora, lógico, existe uma discrepância entre os dados governamentais e a realidade propriamente dita. O estado de São Paulo, por exemplo, coloca que praticamente 90% de suas unidades prisionais possuem bibliotecas e, diante do nosso trabalho que envolve visitar as prisões, sabemos que a realidade é bem outra. No sentido de analogia, é tal como correm com as bibliotecas escolas, em que as escolas colocam qualquer sala de leitura como sendo uma biblioteca. Nas prisões acontece o mesmo.

Para resolver o impasse, tal como eu mesma citei ao pedir a palavra dentro de uma das reuniões do Grupo de Trabalho do CNJ, basta aplicar a Lei, fazê-la sair do papel, uma vez que as bibliotecas prisionais estão legitimadas desde 1984. Contudo, agora, com a nova resolução, a instituição prisional que desejar aplicar a remição da pena pela leitura, terá de estar apta com a legalidade, tendo uma biblioteca com obras literárias, já que a biblioteca prisional passou a ser a legitimo laboratório para a aplicação deste tipo de remição.

Além do trabalho em torno dessa resolução do CNJ, que outras atividades a Comissão Brasileira de Bibliotecas Carcerárias da FEBAB, que você preside, vem desenvolvendo?

Este trabalho no CNJ, no que tange a remição pela leitura, foi uma verdadeira vitória para nós. Particularmente falando, posso lhes dizer que tomei como uma espécie de prêmio dentro da minha luta pelas bibliotecas prisionais. Eu não me interessei pela temática dentro da biblioteconomia. Foi justamente o contrário. Minha profissão era das artes plásticas e foi isso que me fez conhecer o cárcere e descobrir que os presos sequer tinham livros que dirá biblioteca.

Isso me levou a desejar cursar a segunda profissão e compreender tudo do mundo das bibliotecas e, deste modo, leva-las às prisões. E não foi nada fácil, segue não sendo, mas agora a pauta já não é tão obscura quanto foi quando entrei, há 10 anos. Na última reunião do CNJ, para definição final da minuta que daria corpo à resolução, dentro do texto havia o termo “acervo bibliográfico” como condição para execução da remição de pena pela leitura.

Pedi a palavra e, constrangidamente, argumentei para os representantes do judiciário brasileiro que “acervo bibliográfico”, por si só, não se configura em biblioteca. Usar que bastaria uma instituição prisional ter um “acervo bibliográfico” para aplicar a remição seria passar por cima da legitimidade das bibliotecas prisionais, já negligenciadas pelo governo, afinal, qualquer caixa de papelão com uma dúzia de livros, em baixo de uma escada qualquer, pode configurar em “acervo bibliográfico”, mas jamais em biblioteca. Eu usei exatamente estas palavras.

Ao final de minha explanação, meus argumentos não só foram aceitos como toda a minuta foi modificada. No dia do bibliotecário, coincidentemente, tivemos a leitura da minuta já pronta. Onde se lia “acervo bibliográfico”, passou a constar “biblioteca”. Deste modo, além de fazer valer a Lei 7.210/84, que dá respaldo legal às bibliotecas prisionais, também as tornou espaço obrigatório para que o preso pegue a obra a qual ele fará a remição pela leitura. Receber esta noticia, no dia da profissão que escolhi justamente em função do cárcere, é algo que sequer sei mensurar com palavras, trata-se de um marco das bibliotecas prisionais, que saíram da biblioteconomia e selaram sua presença dentro da jurisprudência, lugar em que de fato e verdade lhes cabe, como um direito do preso e não assistencialismo, conforme muitos as tomam.

A CBBP segue ainda trabalhando dentro do Grupo de Trabalho do CNJ, pois agora vem a parte do censo previsto para durar 11 meses, em que serão averiguados quais instituições penais tem biblioteca e, se tem, quantas obras literárias possuem, quantas estantes, ou seja, o detalhamento técnico das mesmas. Depois partiremos para o plano de fomento à leitura nas prisões, uma vez que o objeto maior de tudo é a formação de leitores nas prisões. Além disso, vamos ofertar, no segundo semestre, o primeiro curso brasileiro de capacitação para atuação em biblioteca prisional, que faz parte da retomada da Escola de Cursos FEBAB.

A CBBP também está no Grupo de Trabalho do Prison Libraries, da IFLA/UNESCO, o qual sou a representante da América Latina e Caribe como presidente da Comissão. E, recentemente, lhes conto de modo inédito, fui convidada, representando a CBBP/FEBAB, para ajudar o governo da África do Sul dentro da intenção deles de levar a remição de pena pela leitura para lá. Por fim, seguimos lutando para que nas escolas de formação a biblioteca brisional seja inserida, legitimamente como deve ser dentro das “Tipologias de Bibliotecas”. Já avançamos muito nesta pauta, promovendo diálogo com as escolas de formação, aliás, um trabalho que merece destaque por parte da nossa representante docente na CBBP, Adriana Souza, da FESPSP.

Com base na sua experiência e atuação profissional, como você avalia a situação das bibliotecas prisionais brasileiras e de que forma elas podem contribuir para que a nova resolução seja executada de forma efetiva?

A situação não é muito diferente das escolares. Mascaram qualquer espaço de leitura como sendo biblioteca. O que antes já era difícil, agora virou resistência. Se antes as bibliotecas prisionais já eram negligenciadas pelo governo, agora muitas são desativadas para alocar mais presos. Mas o que esperar de um governo que legitimou o “bandido bom é bandido morto”? Mas, contudo, e apesar de tudo, avançamos, já que, doravante, a instituição prisional que desejar aplicar a remição da pena pela leitura, terá de contar com a presença da biblioteca. Ponto. Assim roga a resolução, sem meio termo.

Imagine você pedir para um preso que faça um pão sob o argumento de que isso lhe diminuirá a pena, e dizer: “Olha, você pode fazer o pão, mas não terá como adentrar na cozinha”. O mesmo acontece com a remição pela leitura. Não há como conceber que o preso tenha acesso aos livros sem que para isso não possa dispor de uma biblioteca, conforme roga a lei. Além disso, tal como citei na reunião do CNJ, precisamos acabar com o assistencialismo que tanto a sociedade como próprias representatividades jurídicas colocam em torno do livro nas prisões, promovendo “doação de livro” para o preso diretamente.

Ora, acaso a gente vê campanha de doação de livros para alunos de escolas, universidades ou moradores de determinadas comunidades? Não, né?! O que se faz é campanha para as bibliotecas e na prisão não é diferente. As obras na biblioteca circulam na cadeia, se doadas individualmente ficam sob o crivo do apenado, que hora sai ou é transferido. A contribuição da biblioteca na prisão é justamente essa, fazer a circulação de obras, atuando como ponte essencial, e legitima, para a Educação e, agora, a resolução para a remição de pena pela leitura.

No contexto atual, com um país cada vez mais dividido e marcado pelo crescimento de um discurso autoritário e punitivo, como é o seu desafio pessoal de lutar e trabalhar em prol das bibliotecas prisionais e da ressocialização?

Aproveito a pergunta, e o espaço, para salientar que há uma década atuo pelas bibliotecas prisionais sem ganhar um só centavo, de modo totalmente voluntário, por amor a causa do livro e da leitura nas prisões. Lamentavelmente, a profissão de bibliotecário sequer existe dentro do quadro funcional do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), que, aliás, é outra luta da CBBP. Não há uma porta legitima de adentrar a prisão de modo oneroso.

Até hoje eu coloco dinheiro do meu bolso pra custear minhas idas ao trabalho da biblioteca na prisão. E, conforme já citei, além de trabalhar com afinco por acreditar no propósito da causa, você precisa resistir a um governo que só acredita na premissa do “punir” e nunca na do “reeducar”. Mas o que esperar de um poder maior que é capaz de cortar verbas da Educação, negligenciar vidas dentro de uma pandemia, negar um vírus mortal. Ora, as prisões passaram a ser praticamente invisíveis neste “desgoverno” que tomou conta do país.

Sobre o termo “ressocializar”, ressalto Foucault quando eles nos lembra que os muros altos das prisões não é para evitar que o sujeito preso fuja do cárcere e sim para que a sociedade não precise vê-los, deparando-se com a crua realidade do cárcere. Pessoalmente falando, não uso ou gosto muito deste termo, pois o apenado está privado da liberdade, mas jamais deixou de fazer parte da sociedade, ainda que preso. A pergunta que devemos nos fazer é: “Como desejo que o individuo preso saia da prisão?” Pois no Brasil não há pena perpétua, uma hora eles saem em liberdade e para que não tenhamos a reincidência, faz-se necessário investir no “reeducar”.

Ao contrário do que apregoa o senso comum, de que na cadeia só tem assassinos e bandidos de alta periculosidade, apenas 11% dos presos no Brasil são de crimes hediondos, os demais fazem parte, em sua grande maioria, do tráfico. E sabe quem ganha com a violência e a criminalidade que envolve o tráfico? Os que verdadeiramente fomentam isso e estes não estão atrás das grades e sim nos bairros nobres da classe média alta da sociedade, vestem terno e gravata, estão sentados nas cadeiras do poder. Onde está preso o dono do helicóptero com meia-tonelada de cocaína? Digo-lhes, em lugar nenhum. Mas eu, por exemplo, tenho um preso leitor que foi pego com 200 gramas de maconha. Sequer foi julgado, mas está preso a espera da sentença.

Quisera ter um Brasil que, verdadeiramente, compreendesse, valorizasse e fizesse valer a legalidade das bibliotecas escolares. É investindo na educação básica, nas bibliotecas das escolas, que vamos de fato evitar, quem sabe, que uma criança não se torne um adulto a ter de conhecer o livro e a leitura dentro da biblioteca prisional.

*Está entrevista foi modificada no dia 07/06 para corrigir informações

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