“E a verdade é que, se alguns negros, às vezes famílias inteiras, tinham saído de casa às primeiras alvíssaras da liberdade, levando o seu baú de roupas, sem ainda saber que destino seguiriam, muitos tinham ficado com antigos senhores, presos a estes apenas pela afeição e não mais pelo cativeiro. […] Alguns voltaram da porta, como se a rua os intimidasse. Outros só voltaram depois de ter cantado e dançado nas praças apertadas de povo.” (Os Tambores de São Luís, de Josué Montello, Livraria José Olympio Editora, 3° edição, 1978, p. 445).
Embora fragmento de uma obra ficcional, o trecho acima é bastante representativo do que foi o processo de “abolição” da escravatura no Brasil. Assinado pela Pricesa Isabal no dia 13 de maio de 1888, a Lei Aurea garantia formalmente a liberdade aos escravos, mas parece ter sacramentado materialmente a escravidão por longos anos.
A Lei permitiu que as pessoas, dependentes financeiramente (e muitas vezes ligadas emocionalmente, como bem destacou Montello) dos seus ex-senhores, continuassem se sujeitando a estes como uma forma de sobrevivência. Aos mais destemidos, restou as agruras das ruas, com violência, prostituição, alcoolismo e outras formas de marginalização.
E o pior é imaginar que essa leitura, mais politizada desse período da história do Brasil, só se tornou possível relativamente recente. Quem não lembra dos livros didáticos de história nos quais se desenhava uma imagem de libertadora, de heroina, quase divina da Princesa Isabel, a monarca “responsável” pelo feito?
Não cabe, obviamente, de discorrer aqui sobre os motivos, complexos e variados, que levaram a assinatura da Lei. Mas de destacar o quanto ela parece ter sido inócua, do ponto de vista efetivo no que se refere às garantias sociais aos negros. Os números mostram o quanto esse segmento continua vítima de um racismo estrutural tão bem representado por essa Lei feita, literalmente, para inglês ver.
“O (momento) pós-emancipação não teve nenhuma preocupação com inclusão dessas populações (de ex-escravos). Eu me refiro a educação, saúde, habitação, todos os problemas estruturais”, lembrou a historiadora Lilia Moritz Schwarcz em entrevista à BBC Brasil recentemente.
Alguns exemplos
O Atlas da Violência 2017, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no ano passado, revela que homens, jovens, negros e de baixa escolaridade continuam sendo as principais vítimas de mortes violentas no País. Dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios, 78,9% correspondência a população negra.
E se os negros são as maiores vítimas de violência, as mulheres negras se destacam negativamente nesse cenário. De acordo com o Anuário Brasileiro da Violação 2017, em 2016 foram mortas 4.606 mulheres, ou seja, a cada 120 minutos uma mulher foi assassinada no Brasil naquele ano. Esses números parecem comprovar que o assassinato de Marielle Franco (mulher, negra, periférica e defensora dos direitos humanos) não foi um caso isolado.
Dentre os desempregados, no contingente abismal de 13 milhões de brasileiros, 63,7% são pretos ou pardos, conforme apontou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) divulgada no ano passado. A mesma pesquisa mostra que pretos e pardos recebem, em média, R$ 1.531, ou seja, quase a metade do rendimento médio dos brancos, que é de R$ 2.757.
Por sua vez, os dados do Infopen, o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, divulgados no final do ano passado, mostram a seletividade imposta à população negra pelo sistema penal brasileiro. Enquanto no total da população brasileira com mais de 15 anos 53% das pessoas se declaram negras, 64% dos presos no sistema penitenciário nacional são negros.
Ser as maiores vítimas de violência, o maior número de desempregados e encarcerados, com os menores índices de alfabetização e de acesso aos bens de consumo, bem os com menor acesso à internet e água potável mostra o quanto o 13 de maio de 1888 continua deixando a desejar aos negros desse país.
E embora se reconheça a importância das políticas públicas voltadas à população negra, a verdadeira abolição da escravatura não vem com expedientes burocráticos, mas com muita luta. As conquistas mais recentemente do movimento negro, como as ações afirmativas, estão aí para provar isso.