1.

O protagonista projetado por Jeferson De em seu mais recente filme, Doutor Gama (2021), é figura da maior pertinência para a revisão que o momento atual nos exige. Revisão de nossa formação histórica, desde o princípio sustentada pelo desrespeito à dignidade humana, e da ordem jurídica brasileira, tantas vezes definida pela criminalidade. Luiz Gama, personagem único de nossa história, nascera livre e seria ilegalmente escravizado aos dez anos; aos dezoito reaveria sua liberdade e, nos anos seguintes, se tornaria “o advogado dos escravos”. Esse ex-escravo, que reconquistara sua própria liberdade, arrancando centenas de pessoas “às garras do crime”, projeta-se ele próprio como Doutor Gama.

É da tribuna que Luiz Gama (interpretado por César Mello) se apresenta na sequência inicial do filme, espécie de prólogo ou profissão de fé, que abre a narrativa biográfica. É da tribuna que Doutor Gama se dirige diretamente a nós, que assistimos ao filme, e nos interpela diante dos crimes cometidos em nome de um pretenso direito de propriedade, que indignamente suprime o fundamental direito de liberdade. O protagonista nos dirige sua palavra firme e destemida, questionando nosso posicionamento diante dos crimes continuados dos “salteadores da liberdade”. E assim nos posiciona como integrantes de um júri popular, em que iremos acompanhar as trágicas peripécias de sua biografia, e compreender melhor sua atuação como advogado que combatia o que ele mesmo chamava de “um direito anômalo”.

A firmeza da interpelação que nos é dirigida por Doutor Gama é proporcional à gravidade do momento em que vivemos, em que pretensões negacionistas voltam a ter escandalosa dimensão institucional. Luiz Gama, o improvável advogado que lutou com ardor nas fileiras abolicionistas e republicanas — em prosa, em verso e na tribuna —, sonhava com um país “sem rei e sem escravos”. E denunciava a desavergonhada manutenção de um tráfico que, além de ser um torpe atentado à dignidade humana, era escandalosamente ilegal desde pelo menos 1831. A luta desse republicano abolicionista, que morreria em 1882, anos antes do fim da escravidão e da monarquia, não pode deixar de existir na nossa memória e no nosso desejo de uma sociedade com justiça e com liberdade.

2.

Doutor Gama articula em sua narrativa biográfica três momentos da cinematográfica história pessoal desse homem — que sofreu a escravidão na própria pele, e dela se livraria para lutar pela libertação de pessoas marcadas pelo mesmo estigma. A parte inicial do filme, após o prólogo já referido, representa a infância de Luiz Gama em Salvador, onde nasceu, e a primeira aparição marcante é a de sua mãe, a lendária Luiza Mahin (interpretada por Isabél Zuaa). Nessa sequência inicial, a mãe e o filho de dez anos estão em um quarto, e o menino pergunta se ela lhe ensinará a ler. Ela responde que sim, mas adverte: ninguém deveria saber que ela era alfabetizada. Logo depois, ela é chamada por alguém, e antes de sair garante ao filho: “Eu sempre volto”.

Luiza Mahin é personagem lendária do século XIX no Brasil, mas sobre ela não há qualquer registro documental que comprove seu envolvimento “em planos de insurreições de escravos”, como registraria seu filho já adulto. As poucas informações sobre ela nos chegaram pelo punho do próprio Luiz Gama, em prosa e em verso, e é por ele que ficamos sabendo: “depois da Revolução do dr. Sabino [a Sabinada], na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou”. A mãe do pequeno Gama desaparece em consequência de seu envolvimento em rebeliões negras, e não há rastros de seu destino. Esse desaparecimento, quando o menino tinha apenas dez anos, rende muito bem na elaboração ficcional do filme — que contraria a informação de Gama, mas torna verdadeira a promessa da mãe: “Eu sempre volto”.

A segunda parte do filme representa o jovem Luiz Gama, já com 17 anos. Ele era então um jovem escravizado, desde os dez anos — quando foi vendido pelo próprio pai, depois do desaparecimento da mãe. A narrativa do filme é hábil na articulação dos acontecimentos que ocasionam a escravização do protagonista, que é então levado de Salvador para o Rio de Janeiro, e finalmente para São Paulo. Será nesta província que o jovem Luiz Gama irá aprender a ler e a escrever, o que lhe servirá de contundente arma de combate nos anos seguintes ­— em versos, nas páginas dos periódicos e na tribuna. Antes de se tornar Doutor Gama, no entanto, o acesso à alfabetização lhe servirá para alcançar sua própria liberdade, depois de comprovar ter nascido livre e ter sido escravizado ilegalmente.

É nessa segunda parte da narrativa biográfica do filme que aparece a jovem Claudina Fortunato (interpretada por Samira Carvalho), a quem Luiz dedica versos apaixonados, e com quem irá se casar depois de reaver sua liberdade. Claudina será mais uma figura feminina de grande importância na trajetória do protagonista, que não deixou de trazer sempre consigo a memória da mãe. E é nessa situação amorosa que o filme incorpora a expressão lírica do protagonista: “Tão formosa crioula, ou Tétis negra,/Tem por olhos dois astros cintilantes”. A presença marcante da mãe e de Claudina evidencia que, sem elas, o jovem que fora escravizado teria dificuldade bem maior para se tornar Doutor Gama.

A terceira parte da narrativa tem maior extensão que as duas primeiras, e põe enfim em cena o personagem-título. A partir daqui, o Luiz Gama que se representa é “o advogado dos escravos”, atuando com ardor no foro e na tribuna, “onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes”. É nesta terceira parte que o filme nos apresenta o empenho de Gama para “promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas”. Ele, que nascera livre e fora ilegalmente escravizado dos dez aos dezoito anos, passa a fazer valer a Lei Feijó, de novembro de 1831, que em sua letra proibia o tráfico de pessoas escravizadas para o Brasil. Era a famigerada “lei para inglês ver”, durante vinte anos tornada sem efeito pelo completo descaso do Estado brasileiro (à época uma monarquia), que então (como posteriormente no Brasil republicano) prevaricava desavergonhadamente.

Mas é preciso dizer que o personagem histórico Luiz Gama tem mais facetas que supõe nossa percepção de espectadores. O Doutor Gama, além de “advogado dos escravos”, foi também soldado, amanuense, escrivão, poeta (lírico e satírico), professor, jornalista e redator de periódicos que ajudou a fundar, como O Diabo Coxo, Cabrião e Polichinelo. Sua numerosa colaboração na imprensa paulistana foi frente fundamental em seu combate por um país “sem rei e sem escravos”. Sua atuação na tribuna, através da qual pôde reaver a dignidade de mais de 500 pessoas escravizadas, foi complementada por uma produção numerosa de artigos combativos, nos quais registrava afirmações como esta: “O escravo que mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável do direito natural, e o povo indigno que assassina heróis jamais se confundirão”.

O filme de Jeferson De, não obstante, é sem dúvida fundamental para o combate contra o apagamento de figuras tão imprescindíveis como Luiz Gama. Aliás, o título do filme aponta para um aspecto relevante na trajetória desse que foi um dos mais importantes abolicionistas brasileiros. Doutor Gama é título que evoca a consideração em que Luiz Gama era tido entre pobres e infelizes, por quem se dedicou incansavelmente; mas Gama não pôde obter seu diploma de advogado, ainda que frequentasse aulas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, pois o racismo institucionalizado da época não permitia que um ex-escravo obtivesse o título de advogado. Para a mentalidade da província oitocentista da Pauliceia, Luiz Gama não podia ser mais que um “rábula”. E o título do filme em cartaz resgata o título que lhe é de direito, o de “advogado dos escravos”, ou Doutor Gama.[1]

3.

Hoje vamos nos aproximando da verdade de que o fim da escravidão no Brasil não foi resultado apenas de uma áurea assinatura, e de seu condão principesco. A campanha abolicionista que antecedeu o 13 de maio foi combate crucial, e foi levado a cabo em frentes as mais diversas — no jornalismo, na contundência de versos satíricos, e também no foro e na tribuna. E esse combate teve protagonistas negros, sendo Luís Gama certamente dos mais importantes, aliás o único que conhecia a experiência de ter sido escravizado. Vinte anos antes de 1888, esse combatente já impunha suas armas. Sua atuação como jurista e advogado foi responsável pela demonstração cabal de que, além de imoral, o tráfico e a escravização eram ilegais, e que havia no país um escandaloso pacto de “salteadores fidalgos”, de “contrabandistas impuros” e de “juízes prevaricadores”.

“Faço versos, não sou vate/Digo muito disparate,/Mas só rendo obediência/À virtude, à inteligência”. São versos de nosso combatente memorável, que constituem armas efetivas no combate por um país “sem rei nem escravos”. Não se tratava de ornamentação intelectual sem consequência, mas de necessária presença em espaço formador da opinião pública. Não é apenas na tribuna que Luís Gama se apresenta como homem negro, evidenciando com sua própria trajetória a indignidade da escravidão — mas também na mídia do verso satírico, que confrontava a odienta mentalidade racista: “Quero que o mundo me encarando veja,/ Um retumbante Orfeu de carapinha“.

É pena portanto que esta faceta, que fazia parte da atuação intelectual daqueles que rendiam obediência à virtude e à inteligência,  não tenha representação na narrativa de Doutor Gama. O que não invalida a realização artística do filme, que figura com grande beleza e força parte do imaginário do Brasil escravocrata do segundo império. E projeta entre nós, no momento em que se faz necessário um firme combate ao negacionismo — que pretende apagar a existência da escravidão, o genocídio de povos indígenas e a atuação tantas vezes criminosa do Estado brasileiro — um protagonista imprescindível de nossa história de lutas por justiça e liberdade.[2]

O protagonista de Doutor Gama poderia dizer, como no filme diz sua mãe Luiza Mahin: “Eu sempre volto”. O filme de Jeferson De é uma bela figuração desse retorno necessário.

[1] Dias atrás, a USP outorgou título de Doutor Honoris Causa a Luiz Gama — jornalista, jurista e poeta dos mais atuantes e consequentes da causa abolicionista. Anos antes, a OAB de São Paulo conferiu título de advogado ao Doutor Gama.

[2] Esse negacionismo figura na formação do Brasil republicano, como registram os versos do Hino da Proclamação da República: “Nós nem cremos que escravos outrora/Tenha havido em tão nobre país…”. A República proclamada, como se vê, deixou muito a dever aos ideais republicanos de Luiz Gama.

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