“Ana banana subiu na bananeira, comeu banana podre, morreu de caganeira”. Essa deveria ser uma rima simples, lembro de ter ouvido a primeira vez quando tinha aproximadamente 6 anos e continuei ouvindo durante todo o meu primário, na escola Azevedo Sodré, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, até que finalmente com 10 anos sai daquela escola. A rima nunca saiu da minha cabeça. Por que frases tão bobas cantadas por crianças podem marcar tão profundamente? Simples, junto com elas vinham os “elogios”: “macaca suba na árvore e pegue a banana”. Impressionante é que naquela época isso não machucava, não entendia que meus amiguinhos estavam me ofendendo e era comum uma preta ser chamada de macaca. Acredito que os pequenos também não sabiam o que estavam fazendo, mas imagino que hoje aos 44 anos devo ter sido a única marcada a ferro com aquela inocente brincadeira.

O racismo muitas vezes se encontra na fala  proferida por crianças, jovens e mais velhos. Pequenas frases como essas demonstram como os estereótipos sobre povos chamados “exóticos” ainda persistem, menosprezando e reformulando na mente de muitos uma diferença inexistente, e fazendo com que o pejorativo seja manifestado de forma normal. A literatura durante muito tempo fez parte desse tipo de manifestação, com apenas homens brancos considerados capazes de produzir qualquer tipo de escrita.

Quando estava no antigo segundo grau tive um professor chamado Walter de Alencar, homem negro, bem sucedido, que orgulhosamente mostrava no registro de sua identidade militar “cor: branco”. Um negro “livre”, mas ainda escravo, que pega um pequeno troféu e exibe, esquecendo que aquilo é apenas corrente em forma de letras, fazendo-o retornar à condição que  lhe foi imposta. Como diz Conceição Evaristo: “Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outras e nova vida”. Enquanto escravos, os pretos se adaptaram a aceitar o que lhes era imposto.

Durante muitos séculos qualquer outro “tipo não branco”, principalmente negros, que ousassem se aventurar em voar um pouco além do chão era menosprezado, “minorizado” e posto para escanteio. Quando conseguia algum sucesso, a soberania da época fazia de tudo para recolocá-lo, desconstruindo a imagem real, mostrando o que era idealizado, correto e aceito para “todos”. Scotti (2014) no capítulo A desigualdade pelos desiguais, de sua tese de doutorado afirma que  “A desqualificação do  negro para atuar em (quase) todas as áreas compreende o aspecto mais  claramente racistaI, um racismo ancestral enraizado em atos, palavras e conceitos que se torna um peso a cada passo de um não branco. O que me faz lembrar da desconstrução feita com o maior escritor brasileiro dos últimos tempos, Machado de Assis, que durante séculos era descrito como branco e indiferente às questões raciais.

Os meus livros de escola mostravam suas imagens como um homem branco de cabelos e barba lisas. Mas só descobri que era negro já balzaquiana, no curso de filosofia da PUC-RJ, e imediatamente olhei para os lados e vi a cara de espanto de todos, só fiquei triste por não comemorar com outro negro já que eu era a única na sala.

Era quase impossível buscar uma referência positiva não branca em livros, revistas e novelas. Todos os negros que sobressaiam eram “branqueados” para justificar sua capacidade intelectual. O Negrinho do Pastoreio, Tia Anastácia, as empregadas nas novelas, podiam permanecer negros por indicarem subserviência e inferioridade.

Quando penso na importância da literatura no combate ao racismo, ressoa em meus ouvidos a fala da filósofa Katiusca Ribeiro: “Qualquer preta e preto que sobrevive a essa masmorra mental de dominação a qual fomos submetidos me inspira… Todos os meios utilizados na busca de nossa emancipação servem como combustível motivacional.” Todos os negros que se dispõem a enfrentar o preconceito, a pouca verba, as dificuldades de ser um escritor, são inspiração para outros que ainda não aprenderam que podem fazer o mesmo.

Lembro da fala e de um artigo do educador francês Gilles Brougère  afirmando que “aprender é o que permite entrar nos mundos sociais e dominar os códigos.” Quantos mundos sociais a literatura traz? O quanto podemos aprender com eles? Quais códigos nos são apresentados para dominar? Quais são dominantes? Por muito tempo lemos em contos, poemas, poesia, romances e outros textos que ser branco é ter poder, e não ser é não ter. Decodificamos o código, o dominamos e aceitamos o racismo imposto, desejando ser iguais a eles. Grada Kilomba mostra isso quando fala que: “Branco não é uma cor… Quando nós falamos sobre o que significa ser branco, então falamos sobre políticas e absolutamente não sobre biologia. Assim como Negro corresponde a uma identidade política que se refere à historicidade das relações políticas e sociais, não à biologia.”

Os códigos apresentados na literatura precisam ser cada vez mais diversificados, trazendo visões sem estereótipos, sem preconceitos. Vemos o quanto temos uma visão distorcida quando ouvimos os textos declamados em uma disputa de Slam ou quando lemos livros como do autor Jonatan Magella, jovem da Baixada Fluminense-RJ, escritor que mostra sua realidade e a conta de forma fluída e forte. Dos seus contos, o título que mais me impactou foi “Só os covardes amam honestamente”.  Jovens como ele trazem uma nova perspectiva para a forma como devemos ler o mundo e como ele deve nos impactar. 

Somos seres que precisam de referências e quando vejo pessoas como Conceição Evaristo, Maria Carolina de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Grada Kilomba e muitas outras tendo sua escrita reconhecida vejo o quanto, finalmente, ser homem e branco não é mais a única referência. Mulheres e homens não brancos que escrevem sobre suas vidas, suas derrotas, suas vitórias, e principalmente seus problemas, trazem para o campo da literatura um questionamento e problematizam a realizada imposta. A literatura tem a indispensável missão de problematizar o racismo, de trazer à tona todo o mal que ele fez e ainda faz por estar enraizado em nossa sociedade. Ela é uma arma social que nunca deve ser ignorada e/ou silenciada.

Na maioria das vezes, quando pegamos um livro não pensamos se o autor é preto, branco, indígena. Lemos, envolvemo-nos e nos permitimos envolver com seu texto, choramos, rimos e por muitas vezes, replicamos os textos carimbados em nossa mente. Ter autores não brancos, que trazem a problemática do racismo à tona, é carimbar na mente dos leitores a importância do tema, é permitir que se questione tudo que está a sua volta e fazer com que todo leitor, seja ele quem for, veja a história  contada de outro ângulo, formando uma nova visão, ajudando a história a ser corretamente escrita.

Conceição Evaristo (2017), em sua obra Ponciá Vicêncio, diz: “Ponciá havia tecido uma rede de sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande buraco, um grande vazio”. Com essa frase, digo: Já fui babá, faxineira, passadeira, vendedora de picolé na praia, garçonete, explicadora, vendedora de roupa, bijuteria, sapato, recepcionista, atendente e telefonista, já trabalhei em grandes empresa e em multinacionais, não sei sambar, e não canto como um rouxinol e minhas curvas não são comparáveis às das mulatas Sargentelli, teci minha rede de sonhos e luto todos os dias para que ela não termine em um grande vazio.

 Ana que hoje se defini como contadora contadora de história, griô, mediadora de leitura, replicadora de cultura, ainda pobre, sempre preta, linda e alegre. Foto: Miguel Angelo

Hoje me defino como contadora de história, griô, mediadora de leitura, replicadora de cultura, ainda pobre, sempre preta, linda, alegre, conto minha história não para chocar, nem para impressionar, mas para que o mundo saiba que existe um outro lado que precisa ser ouvido e pensado. O mediador é uma multiplicador de histórias, amo ter a possibilidade de usar referências como Maria Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, Heliane Alves, Thais Araújo, Obama, Marielle Franco, Oprah, Zozibini Tunzi, Hamangaí Pataxó e muitos outros que não estão reescrevendo a história, apenas a estão escrevendo com uma visão mais correta.  Amo poder mostrar às crianças quilombolas, pretas, periféricas, pobres, brancas, indígenas, e que macaco é um animal, banana é uma fruta, que ter características de sua etnia é motivo de orgulho e que temos muitos exemplos não brancos, vitoriosos e maravilhosos para nos espelhar.

Referências

EVARISTO, Conceição 1946, Ponciá Vicêncio/ Conceição Evaristo – 3 ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017

SCOTTI, P.A. A desigualdade pelos desiguais; Sociologia das percepções da estrutura social brasileira. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p.156. 2014.

Branco não é uma cor . Preta, nerd e burning hell, 2015. Disponível em: <http://www.pretaenerd.com.br/2015/11/traducao-branco-nao-e-uma-cor.htmll>.Acesso em: 20 nov. 2020

Entrevista conduzida por Stefanie Hirsbrunner do African Times (2013). Disponível em: <gradakilomba.com/interviews/interview-1/>. Acesso em: 20 nov. 2020

BROUGÈRE, Gilles. A aprendizagem no cotidiano. Nova escola, 2012. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/541/a-aprendizagem-no-cotidiano>.Acesso em: 18 nov. 2020.

VIEIRA, Karina . Mulheres pretas que movimentam #11. Geledès , 2018.. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/mulheres-pretas-que-movimentam-11-katiuscia-ribeiro/>. Acesso em: 15 nov. 2020

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