“Não se nasce mulher, torna se mulher ” (Simone de Beauvoir)
Dos livros que retiramos das estantes, às rodas de conversa, as palavras foram lançadas como flechas, alcançando duas jovens mulheres mediadoras de leituras. O rompimento dos silenciamentos fizeram ecoar em nossos corações um grito de liberdade que se encontra com a leitura e a escrita. Muitas são as tentativas do sistema patriarcal e da sociedade machista para controlar nossos corpos e mantê-los apenas ocupando os espaços domésticos.
Mas aprendemos a romper esses silenciamentos e opressões, hoje traçamos novos caminhos, nos protegemos e defendemos, fazendo da escrita nossa melhor amiga. Aprendemos que nossas vozes têm forças e que precisamos projetá-las. Assim, com nossas leituras e recitais, vamos reescrevendo nossas narrativas.
A história que trazemos nesta coluna desenvolve-se há 12 anos na antiga casa do coveiro, um dos mais antigos cemitério protestante tombado pelo patrimônio histórico da cidade São Paulo, no extremo sul da capital. É neste espaço, na Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, criando asas e planejando voos, que como jovens “Escritureiras” promovemos e incentivamos a leitura de obras literárias escritas por autoras mulheres.
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No “Mural Mulheres Negras Presente”, na entrada da biblioteca, as mulheres negras, moradoras das comunidades, são homenageadas em lambes, pretas em retratos, por seus esforços e vitórias que se conectam com a biblioteca. Os saraus também são instrumentos para essas discussões que envolvem a visibilidade e a representatividade feminina, ampliando o repertório de referências literárias para diminuir as exclusões pregadas neste mundo tão violento e desigual. Nosso primeiro passo é enfrentar parte deste universo que limita, acessando os livros, participando de encontros, admirando as obras e criando momentos para enaltecer as literaturas femininas.
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Lembramos uma das primeiras obras lida no ensino fundamental, a fim de entender os processos da puberdade, aconteceu com o livro “Rita está acesa” de Terezinha Alvarenga¹. A história mostrava Rita que utilizava um vestido que mostrava os peitinhos nascidos, uma trança até a cintura, um olhar atento ao espelho: de frente se nota ora menina, ora moça aos seus 11 anos de idade. Essa obra foi uma oportunidade de descobertas e encontros, porque éramos reprimidas ao falar sobre sexualidade.
Atualmente existe mais acesso a informações e conteúdos diversos, mas ainda há pouca liberdade para as mulheres falarem sobre a temática, daí a importância dos livros, permitindo conhecer, refletir e levantar dúvidas sobre quem somos. A partir desta compreensão, passamos a discutir em nossos encontros literários sobre os corpos femininos, principalmente os que são objetificados, violentados e discriminados como das mulheres do grupo LGBTQI+.
Por muito tempo sofremos com as desigualdades de gênero e enfrentamos essas barreiras para que mulheres tenham espaços de falas e atuações em seus territórios. Muitas vezes nos questionamos sobre narrativas de mulheres que marcaram a história do Brasil, ao escutarmos sobre rainhas, heroínas e princesas nos colocamos em uma posição de desejo, em ser uma dessas figuras que transcendem uma padronização do ser feminino imposto pela sociedade.
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Percebemos a história das mulheres como algo que envolve também as relações das famílias, do trabalho, da mídia, da literatura, da sexualidade, da violência, dos sentimentos e das representações. Por outro lado, observamos o quanto existe uma invisibilidade que adentra a vida literária, seja pela raça, classe ou por questões de gênero.
Obras como as de Kiusam de Oliveira; Ana Maria Gonçalves; Djamila Ribeiro; Conceição Evaristo; Ryane Leão; Mel Duarte; Cidinha da Silva; Neide Almeida e Elisandra Souza fazem parte do repertório de conhecimentos que adquirimos nos clube de leitura, bate-papos e estudos com escritoras negras e periféricas na Biblioteca Caminhos da Leitura.
Penetramos no universo da palavra, reverenciamos nossas ancestralidades e as vozes que ecoaram dentro do nosso ser, reconhecemos como mulheres de direito, entendendo o que nossas mães viveram e que podemos enxergar na vida uma nova possibilidade de ser, (re)existir e (re)inventar.
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Somos de Parelheiros, região onde Carolina Maria de Jesus passou seus últimos dias. Temos orgulho disso. Aprendemos com Carolina, escritora, cantora e catadora de papel, que optou viver da liberdade de sua arte, não permitiu que a fome ou a pobreza a silenciasse, ressignificando a sua vida, trazendo o belo em meio a tanto sofrimento. Ela, que morreu em 1977, recebeu em março de 2021 o título de doutora honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
É com essa representatividade da mulher preta e pobre, que recebemos no “3ª Sarau Mulheres na Literatura – Histórias que transformam e vozes que ecoam” sua filha Vera Eunice, mantenedora e multiplicadora de sua vida e obra. O legado de Carolina perpassa os tempos, denunciando o racismo estrutural e o apagamento da população negra no Brasil, sendo importante na luta antirracista.
Assim, os livros de Carolina de Jesus e outros histórias podem nos despertar às vezes com uma palavra ou um trecho, que nos trazem memórias, permitindo ter o pé no chão e dando sentido para nossa (re)existência. “Eu sou, porque nós somos”: esse é um mantra que honraremos diante das vozes femininas, porque as lutas podem ser individuais, mas as conquistas são coletivas.