1. Contexto de seu nascimento e sua formação

Em meio às transformações políticas e sociais que marcaram o Brasil nos fins do século XIX e inícios do século passado, como a transição da Monarquia para a República, os primeiros conflitos de interesses entre o governo autoritário de Floriano Peixoto e seus opositores, tempos conturbados da velha república, nascia aquele que se tornaria mais tarde escritor, poeta, teatrólogo, humorista, compositor, engenheiro e bibliotecário: Manuel Bastos Tigre. Eram os tempos da “belle époche”, época de grande crescimento urbano e industrial, tempos da segunda fase de Machado de Assis, de Aluísio Azevedo, Lima Barreto e Coelho Neto, era de crescente elegância, luxo e embelezamento das cidades, com suas luzes, cinemas e teatros, que se popularizavam desde os fins da era vitoriana.

Nesse mundo nasceu o nosso Bastos Tigre, a 12 de março de 1882, no Recife, em Pernambuco, primogênito de Delfino da Silva Tigre e Maria Leontina Tigre, vindo a falecer em 1 de agosto de 1957, aos 75 anos. De família relativamente abastada, aos cinco anos de idade frequentou a Aula Pública Mista da Rua Santo Elias, instituição de ensino primário no Recife e, depois, iniciou seus estudos em humanidades no Colégio Diocesano de Olinda. Posteriormente transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde graduou-se em engenharia civil pela Escola Politécnica, em 1906. Desde seus primeiros anos em Recife o jovem escritor já demonstrava seus talentos literários, já escrevendo odes e sonetos humorísticos em que satirizava seus colegas, professores e o próprio Colégio.

É dessa época escolar o poema “O Velho Seminário”, de 1896:

“O Seminário é um velho já caduco

De uns trezentos outonos bem contados,

Já meio mentecapto e maluco,

Beiços moles e olhos encovados

Eu duvido que aqui em Pernambuco

E até mesmo nos outros vinte Estados

Haja um sujeito assim tão legendário,

Como o nosso vetusto Seminário…”

Como se disse anteriormente, eram tempos de crescente expansão industrial, de grandes mudanças tecnológicas que alteravam continuamente a paisagem e vida social daquele século; isso causava a demanda cada vez maior, portanto, de pessoal competente na área da construção civil. Assim, visando prosseguir seus estudos, e já graduado no Brasil, o jovem escritor-engenheiro muda-se para os Estados Unidos, já que naquela época aquele país se tornava um grande polo formador e estimulante de profissionais das novas ciências e tecnologias.

Lá permaneceu por cerca de três anos, especializando-se em Engenharia Elétrica pela Bliss School, em Washington. De volta ao Brasil, em 1909, trabalhou como engenheiro da multinacional General Eletric; depois, no mesmo ano, atuou no Ceará como Engenheiro Geólogo, junto ao antigo órgão do então Ministério da Agricultura, o “Departamento Nacional de Obras Contra as Secas”, que visava a solução dos problemas de falta de água nas regiões mais áridas do país. Em 1911 casa-se com Maria Izabel, filha do desembargador Cintra. Tiveram cinco filhos: Sylvia, Selene, Helios, Heitor e Stella.

  1. Sua carreira intelectual: jornalista, poeta, teatrólogo, bibliotecário

No Rio de Janeiro, em 1902, ainda estudante, ingressou na vida jornalística, produzindo sátiras. Colaborou com a revista humorística “Tagarela”, e também oferecendo seus serviços a grandes jornais da época como a “Gazeta de Notícias”, “A Rua” e “A Noite”. No periódico “Correio da Manhã”, onde ingressara em 1904, manteve, até sua morte em 1957, a seção satírica “Pingos e Respingos”, onde descrevia com bom humor os traços da vida cotidiana carioca, seus feitos e ditos pitorescos, alcançando grande popularidade.

Usava então o pseudônimo “Cyrano e Cia”. Também se dedicava à composição de peças teatrais e, em 1906, aos 24 anos, estreou sua primeira peça, “O Maxixe”, no Teatro Carlos Gomes. Ao total compôs mais 12 peças e, em 1917, fundou a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT).

Em 1917 funda a revista humorística “Dom Quixote”, que continha inúmeras charges, ilustrações e ditos burlescos e irônicos acerca dos mais variados assuntos, contando com a colaboração de vários cartunistas e escritores, muitos deles ocultos por pseudônimos. O próprio Bastos Tigre utilizava o pseudônimo “D. Xicote”. A revista esteve em circulação até 1927.

Foi o escritor Emilio de Menezes, seu amigo, que o introduziu nos círculos literários do antigo Rio de Janeiro, que estava então em um fecundo período de criatividade cultural, de intenso intercâmbio entre escritores, jornalistas e outros intelectuais, como Olavo Bilac, Martins Fontes, Guimarães Passos, Henrique Orlando, entre outros. Nessas rodas de conversas tornou-se grande amigo de Olavo Bilac, com quem manteve contato até o fim de sua vida, e a quem influenciou e recebeu influências reciprocamente, de modo que alguns poemas de Bastos Tigre são também atribuídos a àquele escritor. Suas atividades literárias levaram-no a conquistar o primeiro “Prêmio de Poesia” da Academia Brasileira de Letras, com a obra “Meu Bebê”, e 1924.

Em 1915, já experiente na vida literária e totalmente dedicado aos livros, prestou o primeiro concurso público brasileiro para o cargo de bibliotecário, passando em primeiro lugar, posição que alcançou graças à sua tese sobre a aplicação do Sistema de Classificação Decimal (CDD), na organização lógica dos conhecimentos em biblioteconomia, técnica que conheceu enquanto esteve nos EUA, onde pôde entrar em contato com a pessoa e obra de Melvim Dewey.

Atuou primeiro no Museu Nacional e depois na Biblioteca da Associação Brasileira de Imprensa. Na Biblioteca Central da Universidade do Brasil, posteriormente, exerceu o cargo de 1º Diretor, que ocupou por mais de vinte anos, até sua morte. Dentre muitas de suas obras publicadas, poder-se-ia mencionar “Saguão da Posteridade” (1902), “Versos Perversos” (1905), “Moinhos de Vento” (1913), “Bolhas de Sabão”, (1919), “Arlequim” (1922), “Carnaval” (1932), “Musa Galata” (1949).

  1. Compositor e publicitário

Bastos Tigre também se dedicou a compor letras de música, geralmente de cunho humorístico e folião, como a música de carnaval “Vem cá mulata”, em parceria com Arquimedes de Oliveira, em 1902. Seu estilo é marcado pelo bom humor, pela exaltação da vida e seus prazeres, tal como nos seus escritos em prosa e verso.

Como publicitário, compôs diversos jingles e slogans que se multiplicaram pelas ruas e bondes cariocas do início do século XX. Foi criação sua o slogan da Bayer, que obteve grande sucesso pelo mundo: “Se é Bayer é bom”. Também escreveu a letra da canção “Chopp em Garrafa”, que foi musicada por Ary Barroso e cantada pela primeira vez por Orlando Silva, em 1934, “inspirado no produto que a Brahma passou a engarrafar naquele ano, e veio a constituir-se no primeiro jingle publicitário entre nós”. (As vidas de Bastos Tigre, 1982). Aos 70 anos recebeu o maior prêmio de Publicidade, o “Jubileu Publicitário”.

  1. Conclusão: personalidade e legado

O escritor Otacílio Colares (Bastos Tigre: bibliotecário e poeta da Belle Époque, 1982), em seu panegírico do nosso bibliotecário, descreve o bibliotecário como uma personalidade alegre, sempre bem-humorada e avessa a qualquer tristeza ou desânimo, e também amante da vida boêmia e muito criativo. Assim, escreve que “Bastos tigre foi um espírito alegre, que soube representar a pleno a alma do brasileiro cosmopolita do seu tempo, introduzido que fora, bem moço ainda, no mais significativo da boemia do seu tempo (…) folião poeta (…) sempre jovial, o Bastos Tigre, poeta satírico, irrefreável”. Bastos Tigre, sempre positivo, proibia sua família falar de coisas negativas, como doenças, ou de falar mal da vida alheia, preferindo sempre cultivar um ambiente agradável e livre de negatividade.

Sua dedicação à biblioteconomia sempre fora elogiada, e é assim definida pela pesquisadora Débora Melo (A importância do discurso da ética na biblioteconomia: Bastos Tigre, um exemplo de ética profissional, 2012), em seu artigo sobre a conduta ética de Bastos Tigre: “Como bibliotecário, Bastos Tigre se preocupou não só em fomentar positivamente a profissão, como contribuiu intelectualmente para área com sua principal preocupação: a organização do conhecimento”. O Reitor Pedro Calmom disse uma vez que Bastos Tigre: “Era considerado fanático pelo livro, de confiança, perícia e dedicação”. (As vidas… 1982, p. 37).

Em outro de seus poemas, Bastos Tigre diz: “Se uma hecatombe universal destruísse a civilização, uma biblioteca que escapasse, bastaria para reconstruí-la”. (As vidas… 1982, p. 40). Bastos Tigre influenciou a modernização da Biblioteca da Universidade do Brasil e reorganizou as coleções da Biblioteca da Associação Brasileira da Imprensa que hoje tem seu nome. Bastos Tigre foi ainda o primeiro brasileiro filatelista (filatelia é o estudo de selos postais) a fazer uma coleção temática: a agricultura. E propôs a inclusão no currículo primário da disciplina de filatelia, pois acreditava no seu poder educativo.

Por sua diligência, compromisso e carinho aos livros, sua preocupação com a organização do conhecimento, formação dos leitores, e sua visão da biblioteca como órgão social, Manuel Bastos Tigre foi escolhido como Patrono da Semana da Biblioteca, escolha oficializada pelo Decreto Federal nº 884, de abril de 1962. A resolução nº 5, de 11 de março de 1958, do Poder Legislativo do DF, que instituiu o Dia do Bibliotecário, escolheu o dia 12 de março para a celebração em sua homenagem. Foi também agraciado pelos prêmios Paula Brito e Gutenberg.

Bastos Tigre faleceu no Rio de Janeiro, em 1 de agosto de 1957, aos 75 anos. Uma de suas definições de Livro, em um de seus poemas, soa assim: “É o livro amigo mudo que, calado, nos diz tudo”.

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