Consciência não se dá. Se adquire!

Escrever é um ato de libertação. Embora, para mim, não seja um exercício fácil. Eu me sinto mais ou menos como as galinhas quando chocam os ovos galados. Meus processos de pensar e escrever são sempre atravessados por uma série de circunstâncias que envolvem escutas: de texto, de gente ao vivo, de vídeo, de podcast… Sobre o tema que decidi falar aqui não foi diferente. Muito pelo contrário. O fato curioso, que quase sempre acontece, se não sempre, é como surgem as referências e inspirações, ou irrompem, atravessando na minha frente sem que eu esteja exatamente buscando. Ou, vai ver, quando queremos partilhar um pensamento, embora sem a intenção consciente, vemos o que não veríamos normalmente. A intenção pode ser a porta de entrada da revelação. É preciso treinar os olhos para ver. Como a vida, escrever é também obra de acasos. Em todo caso, é obra. É trabalho árduo e intensivo.

Só pra dar uma ideia: do momento em que decidi sobre o quê iria escrever até agora, no momento em que escrevo, encontrei: (1) referências em um livro que estava lendo do Yuval Harari, (2) que por sua vez conversaram diretamente com um trecho de um livro da escritora angolana Ana Paula Tavares, que retirei da estante porque notei que estava fora da posição onde o havia deixado e ao invés de realocá-lo, decidi começar a ler, (3) seguido de um podcast que ouvi simplesmente porque o som do audiolivro que estava ouvindo enquanto andava começou a falhar e achei melhor mudar de aplicativo e acabei desembocando no spotify do incrível “Vinte Mil Léguas Submarinas”, que “apresenta a ciência através dos livros”, justamente numa entrevista com o sociólogo Matheus Gato de Jesus, autor do livro “O massacre dos libertos”. E ainda nem falei de “O cérebro criou o homem”, do neurocientista António Damásio, em função do meu mergulho contínuo nos achados da neurociência. Foi de mãos dadas com a escrita de diversas vozes, mergulhada nas narrativas científicas, históricas e literárias, que cheguei aqui. É acompanhada e banhada nestas vozes que teço aqui minhas críticas a três projetos de lei em tramitação. Juro juradinho que você vai entender essa trama.

Como a vida, escrever é ligar os pontos: ponto a ponto

O tema sobre o qual decidi falar aqui com você é algo sobre o quê venho estudando, mergulhada em leituras, assistindo entrevistas, ouvindo histórias, conversando com quem sabe. Gente com quem aprendo e apreendo. Tem sido, sobretudo, tempo de escuta. Escuta profunda. Atenciosa. Respeitosa. Cuidadosa. Escuta. O tema é a escravização dos povos africanos, a diáspora africana, o holocausto africano, o racismo estrutural enraizado até a medula da sociedade que ainda hoje condena e rouba vidas negras. E junto também a história sobre os movimentos de resistência da população negra que existiram desde sempre e sobre os quais intelectuais e autoras(es) negras(os) vinham contando há tempos, mas cuja circulação andava restrita, mesmo para quem estava estudando o tema (ou está), como foi o caso do Matheus Gato.

Numa famosa aula inaugural no Collège de France, o historiador francês Roger Chatier relembra uma ideia do poeta Antonio de Quevedo: ler é escutar os mortos com os olhos. Justo. Penso que ler é também escutar as vidas que sofreram outro tipo de morte: a do silenciamento, do apagamento. Exatamente como veio ocorrendo com a população negra no Brasil. Apagamentos que promoveram a cruel aceitação e normatização social de que é uma história que pertence ao passado e passamos por ela nos bancos das escolas virando a página para os próximos capítulos, mal e mal decorando as “contribuições” africanas para o vocabulário nacional (tipo moleque), o imaginário coletivo, a gastronomia brasileira (tipo acarajé) etc. Uma apropriação desprovida de admiração. E embora tenhamos uma lei, a Lei 10.639/03, que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, ressaltando a importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira, complementada pela Lei 11.645/08, que inclui o ensino da história e cultura dos povos originários do Brasil, os indígenas, de efetivo pouco temos. Para comprovar basta perguntar para qualquer estudante de qualquer fase da educação básica o que sabe a respeito e constatará que estes dois importantes marcos legais ainda sofrem de raquitismo de implementação.

Vou começar a puxar o fio dos fatos que citei no segundo parágrafo deste artigo, que vai colocando a gente na mesma página da história. Vamos puxar o fio de uma cruel história de pilhagem:

“…as fronteiras de muitos países africanos não consideram cursos de rios, cadeias de montanhas e rotas de comércio, dividem zonas históricas e econômicas desnecessariamente e ignoram identidades étnicas e religiosas locais…. Foram desenhadas por burocratas europeus que nunca pisaram na África…. as partes envolvidas reuniram-se em Berlim em 1884 e dividiram o continente como se fosse uma torta… Muitas das dificuldades que os países africanos enfrentam atualmente derivam do fato de que suas fronteiras não fazem muito sentido. Quando as fantasias escritas pelas burocracias européias depararam com a realidade africana, a realidade foi obrigada a se render”.

Muitas décadas após, a filha de um pedaço dessa terra fatiada com ganância, descaso e avidez por pilhagens, escreveu:

“Por isso, pai, comecei a minha carta com o deserto onde a vida começou há muito tempo e onde, hoje, as pessoas passeiam por cima das almas dos que estão por nomear. Digo-te ainda, pai, que há muitos anos gente do norte dividiu o sul do mundo aos bocadinhos e orientou os rios, apanhou o sal e acompanhou os quilômetros de raízes das árvores petrificadas que rompiam o chão. Não se importaram com os donos das terras e do gado nem com os ‘princípios cristãos e humanitários’. Tropas imperiais, anjos da morte e da desgraça saíram de Berlim para condenar ao deserto e à água envenenada todos os Herero e os Nama, as suas mulheres e crianças, para conseguir tomar todas as terras, os rios e as flores raras do deserto.”

O fatiamento do Brasil teve escala bem menor nas mãos de invasores e piratas/corsários à serviços de suas majestades, mas nossa história foi escrita com o sangue de milhares de seres humanos, habitantes que integravam os povos originários desta terra, e africanas(os) capturadas(os), espoliadas(os) de suas vidas e trazidas(os) escravizadas(os) para cá. Sob o chão desta nação há um imenso cemitério. Temos contas impagáveis. Porque a vida não tem preço, tem valor.

Sobre o genocídio dos povos originários/indígenas do Brasil, um capítulo infelizmente inacabado, você pode e deve assistir o vídeo de uma apresentação recente do escritor Daniel Munduruku, consagrado autor de literatura indígena infantil e juvenil. Entre suas obras destaco o “Meu avô Apolinário”, onde fala sobre quando “descobriu que era índio” e o mergulho nas conversas com seu avô, que o guiou no resgate da potência de sua origem e ancestralidade, empenhadas sabiamente na desconstrução de estereótipos que ainda hoje condenam e pilham vidas indígenas. Mal e mal “lembradas” num dia único, o 19 de abril. Daniel optou pela escrita literária com foco em crianças e jovens para desconstruir desde cedo o preconceito que por aqui viceja com relação aos povos indígenas.

A disposição em dispor de vidas humanas consideradas de menor valor e dispensáveis para realizar o projeto de exploração destas terras foi ganhando escalas de crueldade e desumanidade únicas, resultando numa escala de comércio humano nunca antes realizado: a captura e tráfico de cerca de 5 milhões de vidas africanas. Penso que o romance dos romances que melhor retrata no miúdo dos detalhes o que significou a escravização e a história de resistência dos povos africanos no Brasil é “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves. Se você ainda não leu, vai correndo ler. Corre lá na biblioteca pública, da escola, da universidade ou comunitária perto de você. Mas leia devagar: festinalente. Apressa-te lentamente. Pois quando a gente se joga na água não sai nadando. É preciso tempo e treino. Quando a gente se joga numa leitura é preciso tempo e escuta. Então, aprender a escutar é, sem dúvida, o verbo dos verbos na tecitura de sabedoria e humanidades. E por mais desconfortável que seja descobrir, sim, eu, você e muito mais gente estamos imersos no racismo estrutural. Não tem bóia. Sim, somos racistas. E só deixaremos de ser saindo da zona de conforto e ingressando na zona do conflito. Nossas crenças são como almofadas macias e quentinhas, que nos convidam a ficar quando tudo o que devemos fazer é partir em busca de conhecimento que ampliem nossas percepções e capacidade crítica.

É preciso aprender mergulhando de corpo e alma na leitura das múltiplas vozes e direto das fontes, atentas(os) aos lugares de fala.

“Movimentos que buscam mudar o mundo”, escreveu Harari, “frequentemente começam com a reescrita da história…. A nova história vai explicar que ‘nossa situação atual não é nem natural e nem eterna…. O mundo injusto que conhecemos hoje foi criado apenas por uma série de eventos ocasionais. Se agirmos com sabedoria, poderemos mudar este mundo e criar um muito melhor’”.

Ana Maria Gonçalves puxou o fio da história da escravização do povo africano no Brasil reconstruindo ficcionalmente a trajetória de vida de Luiz Gama, reconhecido como o advogado escravizado que libertou centenas de escravizadas(os). E no livro somos levadas(os) pela sua mão a conhecer e reconhecer que foi longuíssimo o processo que levou à abolição da escravidão, um processo que, de fato, não começa e não pertence à princesa Isabel, como ainda se “aprende” em tantos bancos de escolas. Matheus Gato puxou o fio do escritor negro Astolfo Marques, “A nova Aurora”, publicado em 1913, e escreveu “O massacre dos libertos”. Veja você, o massacre de vidas negras ocorrido no Maranhão anos após a assinatura da Lei Áurea e dias após a Proclamação da República no Brasil. Movidas(os) pelo pavor de ter a revogação da lei, um grupo de negras(os) foi às ruas, pois supunham que o novo regime trouxesse consigo a revogação da Lei. Foram massacradas(os).

Note que falta nos fazem os livros vindos de várias fontes, várias vozes, de autorias dos povos silenciados. Sem eles consideramos que são águas passadas as vidas continuamente ceifadas dos povos originários do Brasil, ignorantes da sua profícua cultura e resistência. Sem eles consideramos que são águas passadas a escravização dos povos africanos, igualmente ignorando a complexidade da cultura que produziram e produzem. Sem eles não estranhamos dormir colônia e acordar independente – seguindo sendo peça do tabuleiro do jogo colonial -, dormir monarquia e acordar república (sendo peça de um jogo jogado entre militares e cafeicultores, sem direito aos direitos sociais, cujo “herói” Deodoro fez parte do Estado monárquico e era funcionário de confiança de D. Pedro II); dormir escravizando e acordar libertando – ignorantes do longo processo de luta e resistência da população negra e setores progressistas da então sociedade brasileira – por progressistas leia-se pessoas de seu tempo que não aderiram à iniquidade em voga, ou seja, mais uma evidência de que podemos ser bem melhores do que os tempos nos quais vivemos. E a literatura é farta em nos apresentar casos.

No dia em que ainda escrevo este artigo, uma nova vitória, resultado desta luta secular: o Senado aprova projeto de lei que equipara injúria racial como racismo.

No mês em que escrevo este artigo, celebramos, no sentido de honrar, o Dia da Consciência Negra, uma ideia que nasce com o ativista negro Steve Biko e se enraiza no Brasil graças à mobilização de diversos coletivos negros, evocando a imagem de Zumbi dos Palmares, em nome de quem honramos a memória de quem nunca se rende e jamais se renderá enquanto não for arrancada a última raiz do racismo que visceja Brasil adentro e mundo afora. Tudo melhor escrito e dito na voz de Elisa Lucinda:

“A civilização regada ao egoísmo e a um capitalismo predador caminha pra muito longe das etnias indígenas, da ancestralidade negra, do ubuntu. Chega! Sou remanescente de Palmares, o mundo que não respeita a natureza está fadado ao fracasso. Toda a filosofia ocidental que estudamos, mesmo quando se disse universal, não o era. Faltou África e pajelança! O Brasil é analfabeto de si, não estudou seus orixás, saber tão necessário, pois, filho de Oxóssi não desmata, filha de Yemanjá não polui o mar, filha de Oxum não inviabiliza rios, nem apodrece lagoas. O saber ancestral negro africano faz falta nas escolas. Assim como o fundamento indígena sabe ler montanhas e chuvas, nós brasileiros deveríamos ter vivido até aqui com tais desenvolvimentos. Por isso, nos conclamo: coloquemos nossos saberes na roda cotidiana sem escondê-los. Ousando. Vencendo a ignorância e celebrando a existência.”

Mas, afinal, o que é a consciência?!

Diz o neurocientista António Damásio: “A consciência não se resume a imagens na mente. Ela é, no mínimo, uma organização de conteúdos mentais, centrada no organismo que produz e motiva esses conteúdos… É também uma mente capaz de ter noção de que esse organismo vivo e atuante existe”. “…mas só depois que esse cérebro desenvolveu um protagonista capaz de testemunhar surgiu a consciência, rigorosamente falando, e só depois que esse cérebro desenvolveu linguagem tornou-se amplamente conhecida a existência de mentes”.

Damásio constrói uma narrativa intensa e igualmente bela sobre o processo evolucionário que engendrou o cérebro e, posteriormente, a mente consciente: a vontade de viver do nosso organismo. O “desejo” de prevalecer de cada célula e a pulsão de vida desse coletivo de células teria levado ao surgimento de uma célula muito especial, a célula nervosa, os neurônios, responsáveis por manter o diálogo entre corpo e mente.

Nós, sapiens, temos 86 bilhões de neurônios e quem desvendou este dado foi uma neurocientista brasileira, Suzana Herculano. Muitos outros seres vivos têm neurônios, como o verme nematódeo, só que apenas 302. Logo, não há razões biológicas para nós, sapiens, seguirmos existindo por menos. Se o cérebro surgiu para gerir a vida dentro do corpo, ampliando suas oportunidades de êxito imerso na diversidade e adversidade do ambiente, a consciência elevou a níveis astronômicos essa capacidade. Nessa longuíssima jornada realizada ao longo de milhões de anos, conquistamos A condição para criar cultura e por extensão todas as condições – apoiados por raciocínio, memória e linguagem – para buscar e assegurar o bem viver de todas as vidas. E por extensão nomear e compartilhar dramas, loucuras e esperanças humanas.

“A consciência veio, viu e venceu!”, escreveu Damásio. E venceu porque viabilizou o êxito biológico da nossa espécie, apesar dos ainda tantos e inúmeros desacertos. Ampliar a noção de êxito, no sentido de abarcar o bem estar de todas as vidas e o compromisso inabalável de extirpar todas as iniquidades passa, sem dúvida, pela oferta de todas as condições básicas de cuidado, acolhimento e educação. Precisamos ser educadas(os) e isso passa por acesso ao conhecimento. Passa por aprender sobre as realidades tão diversas à nossa volta, desenvolver a capacidade para refletir, “analisar os fatos sem pressa, avaliar o resultado das decisões e ponderar os resultados emocionais dessas decisões … esse é o caminho para a construção de um guia prático também conhecido como sabedoria”.

“Leituras de curto prazo formam leitores de curto prazo”

Esta é uma afirmação de quem sabe muito sobre o que diz: a bibliotecária colombiana Sylvia Castrillon, dita em sua participação no IX Seminário do Grupo Lelit da Universidade do Oeste do Pará, quando falou sobre Para que servem as bibliotecas e os acervos escolares. Sylvia destacou a importância de haver uma curadoria afinada e superar os interesses comerciais que atravessam a construção e atualização de acervos. A importância central da formação leitora e literária de quem está responsável pela gestão da biblioteca para fazer frente às demandas centrais por leituras significativas, leituras que nos permitam ir muito mais além das superficialidades tão disseminadas por todas as mídias. Faz ideia do esforço para filtrar e descartar os slogans vazios de propagandas de tudo, as mentiras intermináveis espalhadas aos quatro ventos das mais variadas formas, opiniões de gurus de plantão convencidos em nos convencer de que em 6 ou 7 passos chegamos lá aonde quer que seja? Aprender a filtrar tantos ruídos que desviam nossa atenção e contaminam nosso pensamento é, certamente, o 13º trabalho de Hércules e nós somos apenas sapiens, não semideuses. Ignorar e superar toda essa algazarra exige de nós muito mais do que estamos de fato conseguindo dar conta, apontam tantas pesquisas – escrevi sobre o tema neste artigo publicado no Biblioo.

Leituras homogêneas e superficiais = Memórias de curto prazo = Gente de curto prazo = Sociedade intolerante e preconceituosa. O que significa que estamos fazendo um péssimo uso do que conquistamos em nossa jornada evolucionária como sapiens. Estamos literalmente subutilizando a potência que há em nós para aprendermos a promover o novo bom e melhor para todas as formas de vida. Em toda a sua pluralidade.

E finalmente neste ponto aterrissamos nos PLs que citei lá em cima

Eu convidei você para ingressar nesta jornada narrativa até aqui para dar uma pequenina mostra sobre a importância de sermos preparadas(os) para uma longa jornada em busca da sabedoria citada por Damásio. Esta jornada só é possível se tivermos assegurados e à nossa disposição ambientes, pessoas e recursos. Aqui destaco a escola, as bibliotecas abertas à comunidade e seus acervos. Seus contornos, como os vejo, estão escritos neste artigo, Toda biblioteca deve ter uma escola, escrito em novembro de 2020.

Eu entendo que é no miudinho das redações das leis que podemos ganhar ou perder, ir mais adiante ou retroceder, e devemos sempre atuar para darmos pequenos passos adiante, assegurando no detalhe o que nos é tão essencial.

Os projetos de lei são: o 11.157/18, o 4003/20, o 9484/18. Você pode conhecer o inteiro teor de todos acessando os links e pode, inclusive, deixar seus comentários no site da Câmara sobre cada um e inscrever-se para receber em seu email novas informações sempre que ocorrer novos encaminhamentos nas instâncias legislativas. Aqui estou abordando o tema ACERVO. Sobre o PL 9484/18, o mais abrangente dos três, compartilhei minhas considerações no artigo Porque ainda acredito na biblioteca e na posse da palavra, entre as quais a ênfase na formação leitora inicial e continuada de profissionais da educação e da biblioteconomia que têm a responsabilidade de formar leitoras(es) .

O que está ausente nestes três projetos de lei é a fundamentação e critérios que devem ser observados com relação ao acervo, sobre bibliodiversidade, por exemplo, um eixo essencial para assegurar acesso a leituras fundamentais para a formação de uma consciência cidadã, antirracista, sobre o quê viemos tratando até aqui neste artigo. No PL 4003/20 há, inclusive, um agravamento, pois ao propor uma “nova definição de biblioteca escolar” considera, apenas, “acervo digital”. De novo, sem qualquer consideração e referências sobre como devem ser pensados e disponibilizados de modo que possam ser abrangentes, que levem em conta diversidade, pluralidade, representatividade, proporcionalidade. Recorro às palavras do Prof. Luiz Percival Leme Britto, que a meu ver tão bem apresenta como deve ser o acervo da biblioteca escolar: “considerando sempre o nível de autonomia e de desenvoltura intelectual das(os) usuárias(os), precisa incluir obras de ciência, história, geografia, psicologia, literatura, artes e organizar-se de forma a permitir percursos formativos amplos e densos. Sua funcionalidade depende, em grande medida, de como a comunidade da escola abraça um projeto de formação que toma a interdisciplinaridade como eixo e avança para além do espaço-aula”.

Quando a gente lê a Base Nacional Comum Curricular, por exemplo, e vê que a meta é que ao ingressar no ensino médio cada jovem deva ter conquistado autonomia leitora, tenha interesse e envolvimento com a leitura de livros de literatura e por outras produções culturais do campo, é preciso que se faça mais, muito mais do que vimos fazendo. E as leis devem confluir todas neste sentido. Compor. Fortalecer.

É preciso muita acuidade para pensar as bibliotecas, todas as bibliotecas, em todas as suas dimensões e em seus acervos, justamente porque concordamos com a BNCC, porque queremos a efetividade da lei 11.645/08, porque partilhamos a máxima do professor Antonio Candido sobre a potencialidade de humanização proporcionada pela literatura, demonstradas em pesquisas conduzidas por neurocientistas.

É fundamental que legisladoras(es) tenham mais acuidade na redação das leis, o que implica ampliar a escuta de educadoras(es) e pesquisadoras(es) das áreas da educação, da leitura, da literatura e da biblioteconomia. Indo além, muito além de interesses corporativos. É preciso acreditar que a biblioteca é o lugar que permitirá o acesso democrático a um bem incompressível como é o livro, e não podemos barateá-la. Podemos e devemos fazer com que as leis cuidem no miudinho das letras de assegurar integralmente os padrões de excelência que façam da biblioteca o espaço de formação do ser humano integral. Ninguém pode largar a mão de ninguém.

Consciência não se dá. Se adquire. Com árduo trabalho intelectual. Consciência é construção de toda uma vida, para que não dure um dia só.

“Ah! Benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah! Soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse extremo requinte de volúpia, sabem transcendentalizar a Dor, tirar da Dor a grande Significação eloquente e não amesquinhá-la e desvirginá-la!” (Cruz e Souza)