Paulo escreve, mas nunca leu poesia. Comprou por R$ 5, numa feira de livros no shopping, a obra “Poesias”, de Olavo Bilac.

Vinicius entrou numa sala estreita com nome de biblioteca onde estantes vazias em quantidades insuportáveis para o espaço rivalizavam com livros didáticos amontoados em diversas pilhas no chão. Entre os raríssimos livros de literatura dispostos em uma das prateleiras das estantes desertas, pegou uma edição de “Cinderela”. O adolescente leitor que tem na prateleira de casa livros de Tolkien na sua rota de leitura, emprestou o livro para ler para a sobrinha de um ano.

Pâmela havia se envolvido com a criação de um Clube de Leitura que nunca havia se reunido para ler. Sequer houve uma única tentativa para saber “que gosto tem”.

Sem a experiência, como reconhecer a falta?

Paulo não considerou a biblioteca da escola como lugar de encontrar obras de seu interesse para alimentar o desejo de seguir escrevendo poesia.

Eu fico me perguntando se é da “alma adolescente” escrever poemas, espontaneamente, para dar forma e nome aos sentimentos. Quando perguntei, Paulo diz lembrar vagamente de um ou outro momento em sala de aula em que leu poesia.

Vinicius entrou na biblioteca com estantes vazias e livros empilhados no chão como fosse algo possível e comum numa biblioteca da escola. Ligeiro, escolheu seu livro entre os não mais do que oito que casualmente estavam alinhados em uma prateleira.

Eu estava perplexa com o caos daquele espaço enquanto ele se movia alheio ao caos. E de novo eu vi que é no miúdo dos momentos que nasce a naturalização do olhar acerca do sucateamento do que deveria ser uma política pública de excelência.

Quando concluímos uma roda de leitura compartilhada com Pâmela e outras estudantes, expondo ideias sobre trechos lidos que nos haviam tocado, nasceu um olhar de deslumbramento que não havia visto nas horas anteriores em que estivemos juntas. “Uma experiência inesquecível”, disse ela, que queria voltar a repetir.

Eu não tinha a menor ideia de como seria o desenrolar e o desfecho da roda de leitura. Eu me movimentei convicta da força do texto literário, do direito inalienável daquelas meninas de viver a experiência, do senso de responsabilidade como leitora de proporcionar a elas e a mim esta vivência de leitura e com todos os meus sentidos à flor da pele para ler e puxar fios de conversa sobre o que sentíamos, que poderia ser tão comum e tão incomum entre nós, e todos igualmente válidos. Uma experiência de liberdade de sentir e partilhar, com palavras ou com silêncio. E foi o que aconteceu.

“A biblioteca é imprescindível em uma proposta de escola onde faz sentido estudar. Não nos interessa que as pessoas leiam, mas que aprendam e se construam como pessoas em relação à vida.” (Professor Luiz Percival Leme Britto)

O dia em que escrevo este artigo é 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Um dia emblemático para incorporar o pensamento do professor Luiz Percival sobre a escola que precisamos, onde a biblioteca tem papel protagonista e estratégico, no sentido de compor com o projeto político-pedagógico de uma escola “onde faça sentido estudar”, onde a leitura é meio  para aprender a existir no mundo de forma comprometida com este mesmo mundo.

Então, neste dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, as perguntas: qual está sendo, de verdade, a apropriação da história da escravização de pessoas negras no miudinho do dia a dia das salas de aula nas escolas? Estudantes aprendem e apreendem? As experiências de aprendizagem contribuem para promover indignação e empatia? Sujeitos da e na história com o compromisso de agir para impedir iniquidades e promover direitos e igualdade?

Alijad@s sistematicamente de práticas leitoras significativas no cotidiano acadêmico, com especial enfoque à literária, que privilegie as leituras que instigam a pensar e indagar a vida para além das percepções superficiais e de senso comum disparadas e distribuídas pelas mídias, sem oportunidades para partilhar suas impressões e sentidos criados, onde ler não seja verbo de estreito pragmatismo funcionário, como podem nascer leitor@s engajad@s, encantad@s, comprometid@s com a superação de desafios para adquirirem – como diz Ana Maria Machado – “fôlego” leitor?

Um fôlego para seguir encarando de frente desafios de compreensão e aprendizagem para desenvolver novas tecnologias de todas as ordens que nos levem para uma viagem intergaláctica e ao mesmo tempo uma profunda imersão em nossa humana essência para,  finalmente, promover vida digna e de qualidade para tod@s; para que aprendamos a coexistir em igualdade de condições e não descansar até zerar todos os indicadores que colocam todas as expressões da vida em risco.

Você, leitora/leitor, já reparou como o fato de uma criança ou jovem ler gera manchete e um quase encantamento expressivo da sociedade em torno da notícia? É curioso isso, não acha?

Por que uma sociedade que se maravilha com o fato de alguém superar todos os desafios para ler e se tornar leitor(a) quase por acaso não está tão engajada com a efetividade da política pública que pode, de fato, viabilizar acesso permanente e gratuito à leitura? Por que, como sociedade, não demandamos às(aos) nossas(os) candidatas(os) aos cargos públicos políticas públicas de biblioteca? Naturalizamos a ausência de bibliotecas?

“Um professor consciente, mas sem livros pode fazer pouco e pouco fazem os livros se não podem apropriar-se deles, em sentido profundo, os professores”, diz a escritora argentina Maria Tereza Andruetto

Nós não pensamos sobre como são formadas(os) as(os) leitoras(es) com a mesma desenvoltura com que naturalizamos a sentença acerca de que jovens não leem. Agora, com todos os gadgets eletrônicos, ficou ainda mais fácil fincar raízes nesta convicção, de que jovens não leem e pronto – e lerão cada vez menos (o quê?) ou cada vez mais (o quê?) porque estão nas redes sociais.

Escrevi um artigo sobre esse tema também intitulado “Vocês não gostam de ler”. Com isso quero dizer que a primeira dificuldade prática é de ordem social: não consideramos sobre o direito, o valor, o tempo e a trajetória necessários na construção de cultura de leitura e da biblioteca, consequentemente, como insumo fundamental para apoiar esta jornada.

Entender e viabilizar uma edificação Biblioteca na Escola, conectada ao seu projeto político-pedagógico e, como em qualquer ambiente educativo, entender, investir intensamente na formação, contratar e incluir em plano de carreira de municípios e estados as(os) professoras(es) e bibliotecárias(os) para atuarem juntas(os) na formação de leitoras(es) competentes.

A qualidade do atendimento oferecido pela biblioteca está estreitamente relacionada ao impacto que ela pode promover na vida acadêmica e pessoal de crianças e jovens – em seus projetos de vida -, e isso passa, sem sombra de dúvidas, por profissionais bem formadas(os) e atentas(os) para levar a ler na perspectiva tão bem assinalada do professor Luiz Percival Leme de Britto, no sentido de promover leitura como valor,  “é imperativo encontrar estratégias mais densas e mais fundamentadas de estimular a leitura, reconhecendo que ler, em muitas situações, é difícil e que a satisfação que daí se pode retirar é de natureza muito distinta da que oferece o entretenimento cotidiano”.

Eu não estou aqui menosprezando o aspecto relacionado aos recursos financeiros para colocar e manter de pé uma boa biblioteca na escola, que em muitos casos existem e podem ser mobilizados. Sobre isso tratamos diariamente na Campanha Eu Quero Minha Biblioteca e aproveito para incluir aqui o link para um conteúdo bastante instrucional que pode ser acessado por toda(o) cidadã(ão) para conversar com parlamentares e gestores públicos de suas cidades e estados, para que bibliotecas em escolas sejam incluídas no orçamento já em 2020.

Parafraseando uma célebre frase, não pergunte o que uma boa biblioteca pode fazer dentro de uma boa escola pela educação integral de qualidade, pergunte o que você pode fazer para que todas as escolas do seu bairro, da sua cidade, do seu estado e do nosso País tenham uma boa biblioteca.  Há pessoas e grupos extremamente mobilizad@s em prol de garantia de direitos. É seguir se preparando e atuando em redes de incidência junto à gestão pública e aos parlamentares.

Volto a recomendar que acessem Eu Quero Minha Biblioteca e falem de pertinho com a(o) candidata(o) em quem votou nos verões passados. Igualmente vale a leitura se você é uma(um) gestora(gestor) ou parlamentar. A pergunta não é SE temos recursos, mas COMO mobilizar recursos públicos a partir de escolhas afinadas com a lógica da educação pública de qualidade para formar seres humanos melhores para este planeta, aqui e agora.

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