Átila Iamarino, em eloquente entrevista para a BBC Brasil, afirma que “o mundo mudou, e aquele (de antes do coronavírus) não existe mais”. Toda a sua entrevista nos convida para uma impiedosa reflexão, mas somente essas poucas palavras já são capazes de desarticular nosso modus operandi. Enquanto bibliotecários e bibliotecárias, não poderia deixar de ser diferente.

Indiferente da unidade de informação que atuamos, é fácil nos pegar pensando em como fomos pegos tão repentinamente. Este panorama em que estamos, tão à la Camus, foge de qualquer planejamento de crise que tenhamos imaginado e agora nos coloca de mãos quase que atadas.

“O que fazer?” provavelmente é a pergunta que mais temos nos feito. O que fazer de atividade física? O que fazer para me alimentar? O que fazer com essa imensidão de cursos online gratuitos que nasceram mais que de uma ninhada de coelhos? O que fazer para ajudar o próximo? Neste casamento de pandemia com infodemia, a esperança de pegar o buquê ao final se iguala à esperança de um novo casamento, entre a empatia e a coletividade.

Diante de tudo isso, algumas iniciativas surgiram rapidamente para tornar (ou ampliar), de alguma forma, a atuação de nossas bibliotecas. A Federação de Associações de Bibliotecários (FEBAB) criou o “Informação em Quarentena” (um boletim colaborativo de curadoria de conteúdo), o IBICT surgiu com o “Ciência Aberta é vida” (diretório de fontes de informação científica de livre acesso sobre o COVID-19) e a Associação de Bibliotecários do Distrito Federal trouxe o “CONVIDE-i9” (uma biblioteca digital colaborativa com inúmeros recursos sobre o tema).

Isso sem falar nas inúmeras atividades idealizadas voluntária e individualmente por profissionais e por coletivos que nasceram na pandemia. Um desses coletivos é o Librarian Support, focado na relação das bibliotecas com suas comunidades. Para falar sobre isso, entrevistamos o professor David Lankes, da Universidade da Carolina do Sul e um dos idealizadores da proposta.

Lankes é doutor em Information Transfer (Syracuse University) e diretor da School of Library and Information Science da University of South Carolina. Ele vem buscando consolidar uma perspectiva de “Nova Biblioteconomia”, retratada em obras como “The Atlas of New Librarianship” (2011) e “Expect More: demanding better libraries for today’s complex world” (2012). Nessa entrevista, ele fala um pouco, além do seu projeto, da realidade das bibliotecas dos Estados Unidos frente ao contexto do coronavírus, além do papel social dos bibliotecários não somente durante, mas, principalmente, no pós-pandemia

A Escola de Biblioteconomia e Ciência da Informação da Universidade da Carolina do Sul juntamente do Public Libraries 2030, estão trabalhando num projeto chamado Librarian Support. Como esta ideia nasceu e como funciona o projeto?

Ele surgiu, creio que da mesma forma que os demais projetos que surgiram durante esta pandemia, a partir do seguinte questionamento: “o que podemos fazer para ajudar as bibliotecas enquanto elas estão fechadas?”. Na Europa e nos Estados Unidos, o fechamento das bibliotecas aconteceu de maneira muito rápida, sem tempo para se planejar. Em uma reunião com fundadores do PL2030, me dispus a fornecer alguma formação, capacitação para bibliotecários que agora estão em home office. Como a sugestão foi bem acolhida, recorri à Universidade da Carolina do Sul para contribuir.

A primeira proposta foi a de fornecer vídeos de seminários online, sobre temas e técnicas da biblioteconomia, que já fizemos, mas logo em seguida, o pessoal se prontificou a realizar aulas em tempo real. Acabamos de adicionar esses vídeos ao site e continuamos a ir ajustando o projeto conforme novas necessidades vão surgindo.

Que resultados a equipe espera alcançar com o projeto? Algum deles já foi alcançado?

Tínhamos duas intenções em mente: fornecer capacitação para os bibliotecários que estariam trabalhando de casa durante a pandemia e dar aos meus professores e outros bibliotecários uma maneira de contribuir durante este contexto, ajudar de alguma forma. Ficar em casa é a coisa mais importante que todos podemos fazer para reduzir a atuação do vírus Covid-19, mas isso somente não traz uma contribuição ativa. Ao fornecer materiais ou participar de uma entrevista online, podemos não apenas fazer o bem, mas nos sentirmos melhor através dessas práticas.

Bibliotecários e professores compartilham um objetivo em comum, que é o de fazer o bem, o Librarian Support era uma maneira de direcionar essa energia. Embora eu adorasse que mais pessoas participassem das sessões em tempo real, os conteúdos foram muito bem recebidos e quem participa está dando excelentes contribuições; portanto, desse ponto de vista, ele alcançou seus objetivos.

Menos visíveis, mas igualmente importantes, foram as conversas offline que tivemos como parte desse esforço. Saber o que os bibliotecários estão passando na Dinamarca, nos Estados Unidos e na Irlanda tem sido incrivelmente útil. Existem todos os tipos de novas ideias e projetos que surgiram para ser aplicados para quando a epidemia passar. Muita discussão sobre como os valores profissionais são vistos é claramente tão importante quanto as habilidades profissionais. Quando as bibliotecas fecharam, alguns funcionários se esforçaram para encontrar novos meios de atender uma população local de maneira segura. Alguns outros profissionais não tinham algumas das habilidades para saber o que fazer.

A emergência da pandemia também mostrou fragilidades na abordagem com a comunidade que muitas bibliotecas adotaram. Usamos os prédios das bibliotecas para obter bons resultados de nossos serviços e produtos, mas as primeiras coisas que passamos a oferecer quando ficamos online é meramente emprestar e-books.

Demorou um pouco para entender como poderíamos apoiar a comunidade também por meio de leituras em voz alta e até hospedar reuniões virtuais em grupo, além de inúmeras outras possibilidades. Minhas histórias favoritas são quando as bibliotecas tiveram que fechar seus espaços físicos e aproveitaram a oportunidade para chamar seus “frequentadores” para garantir que estavam bem. De qualquer forma, essa crise mostra quanto mais bibliotecas precisam estar online para apoiar suas comunidades.

Além dos professores da Universidade da Carolina do Sul, há um formulário no Librarian Support em que qualquer profissional pode oferecer seus serviços para a comunidade. Que tipo de perfil tem esses profissionais? Esta comunidade que é atendida é internacional ou somente concentrada nos Estados Unidos?

Matt Finch, nosso primeiro convidado para atividades em tempo real, apontou que há um grande número de pessoas da comunidade que são vitais para a biblioteca, mas que não trabalham especificamente em bibliotecas. Consultores, palestrantes, freelancers, pessoas que trabalham com projetos que possam colaborar com as bibliotecas.

Quando as bibliotecas fecharam seus espaços físicos, eles se preocuparam, com razão, com o bem-estar de sua equipe. Nós, como bibliotecários, também precisamos nos preocupar com essas pessoas. Ele sugeriu que criássemos um sistema para dar destaque ao trabalho que elas podem fazer, portanto, qualquer profissional pode preencher o formulário com suas habilidades que julga poder colaborar com a biblioteca.

No Brasil, durante a pandemia, as bibliotecas estão com sérios problemas em como tornar seus produtos e serviços disponíveis e em como ajudar populações em certos tipos de vulnerabilidade, como as pessoas em situação de rua ou os excluídos digitalmente. Nos Estados Unidos, como as bibliotecas e seus profissionais estão trabalhando diante desta problemática?

Aqui, temos o mesmo problema. Quando bibliotecas, escolas, universidades e empresas tornaram suas atividades online, passou a presumir que todo indivíduo tivesse acesso à internet. Mas longe disso. Nos Estados Unidos, a internet é tratada como um utilidade pública, mas não é regulamentada como tal. Não há projetos de lei para prestação desse serviço a ambientes rurais ou centros urbanos carentes. Portanto, as disparidades socioeconômicas e o distanciamento digital que já existiam antes do vírus, agora foram ampliados.

Houve algumas tentativas para resolver isso enviando ônibus escolares como pontos de acesso móveis, por exemplo. Muitas escolas fizeram compras de emergência de Chromebooks para equipar seus alunos com tecnologia em suas casas. Escolas e bibliotecas ativaram o wi-fi novamente e seus estacionamentos passaram a funcionar como novos “cibercafés”.

Outro fato que esta crise mostrou, tanto nos Estados Unidos como na Europa, é que a lei de direitos autorais precisa de algumas disposições sérias de emergência. As bibliotecas universitárias buscam fornecer acesso aberto a suas bases de dados para acelerar pesquisas sobre o Covid-19. As bibliotecas escolares e públicas estão criando leituras sobre algumas interpretações incompletas da lei de direitos autorais. Nossos países precisam deixar claro que, quando fornecemos nossos serviços online, não forçamos esses serviços a se tornarem piratas e que devemos respeitar toda a legislação de acesso que existe por detrás.

Você acredita que a atual situação possa trazer uma nova cultura de organização e uso de bibliotecas, transferindo do modelo analógico e presencial para um mais remoto e digital?

Quando lá no início estávamos desenhando o Librarian Support, eu imaginava que iríamos nos concentrar em gerenciamento de crises e em atividades mais imediatas. Mentes mais inteligentes que a minha, no entanto, me convenceram de que precisávamos fornecer ideias e capacitação para quando as bibliotecas fossem abrir novamente. Pressionar por mudanças imediatas, durante uma epidemia, como foi apontado, pode ser muito frustrante porque muitas bibliotecas não conseguem implementar projetos totalmente novos durante este contexto.

Por outro lado, em conversas com bibliotecários de diversas partes do mundo, começamos a ver uma pressão muito interessante por mudanças a partir do momento que as bibliotecas poderão abrir suas portas novamente. Muitos bibliotecários que estão em home office tiveram que ser criativos para atender às necessidades de seus membros. Os bibliotecários estão se engajando em um trabalho mais criativo do que antes, porque as ferramentas que eles usualmente utilizam em seus ambientes de trabalho não vieram com eles para casa, o tão venerado acervo distanciou-se.

É muito provável que pós-pandemia teremos profissionais com uma mudança de modelo mental, mais criativos e soltos das amarras de suas estantes. A pandemia mostrou às bibliotecas como seus serviços e produtos online são insuficientes se seu foco estiver distante das necessidades da sua comunidade. Bibliotecários estão sendo forçados a ser mais criativos e estão gostando disso.

Este período de quarentena destacou inúmeras fraquezas com nossa relação ao trabalho, à educação, à economia e às próprias relações humanas. Você, enquanto diretor de uma escola de biblioteconomia, consegue perceber necessidades de mudanças que precisam ser feitas na formação do bibliotecário?

Acho que isso tudo coloca uma nova realidade nas coisas que sempre dissemos que ensinamos. Saber trabalhar com tecnologias, capacidade de gerenciar crises, trabalhar online de maneira eficaz, estreitar o distanciamento digital, tornar a comunidade real online… tudo isso abordávamos de um viés muito teórico. Sabíamos que eram importantes, mas ter uma forte presença física (um prédio bonito e acessível, um acervo rico…) sobressaía em relação ao desenvolvimento de nossas habilidades digitais.

Agora sabemos que elas são extremamente importantes e, ainda mais, quais delas são fundamentais para tempos de crise. Em linhas gerais, não vejo tópicos totalmente novos para a formação do bibliotecário, mas com certeza vejo um nível diferente de ênfases aos assuntos e disciplinas que trazemos para a sala de aula.

Fazendo uma alusão à curva de performance do vírus, também temos uma curva de modelo mental. Há pouco mais de um mês, nossa curva subia rapidamente no quesito de fornecer entretenimento, formação, orientações. Esta curva se estabiliza quando passamos a nos questionar sobre a necessidade de ser produtivo, de ter de consumir todo esse conteúdo disseminado, de estar presente em inúmeras transmissões ao vivo. E daqui algum tempo, a curva irá declinando, nos colocando num lugar que deixou de ser o mesmo de antes para um que trará a seguinte e constante questão: que bibliotecas entregaremos às nossas comunidades a partir de agora?

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