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Aulas para corpos ausentes
Venho acompanhando relatos de professores da Educação Básica de diversos estados do país reclamando das aulas remotas que estão sendo obrigados a ministrar. As reclamações são diversas: do uso de plataformas pesadas ou limitadas aos inúmeros recursos que demandam um trabalho multiplicado. Não é uma transferência de aula presencial para virtual. Isso demanda uma série de competências e habilidades que as escolas, sejam elas públicas ou particulares, não têm, porque nunca se preocuparam realmente com um ensino voltado para a formação em TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação), apesar de uso dessas linguagens fazerem parte das exigências para o Enem. Olha que ironia!
A prova de Códigos, Linguagens e suas Tecnologias, todo ano, apresenta questões sobre esse universo virtual e hipertextual. Está lá nas matrizes referenciais adotadas pelo MEC. É a competência 1 da prova: “Aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes para sua vida. H1 – Identificar as diferentes linguagens e seus recursos expressivos como elementos de caracterização dos sistemas de comunicação. H2 – Recorrer aos conhecimentos sobre as linguagens dos sistemas de comunicação e informação para resolver problemas sociais. H3 – Relacionar informações geradas nos sistemas de comunicação e informação, considerando a função social desses sistemas. H4 – Reconhecer posições críticas aos usos sociais que são feitos das linguagens e dos sistemas de comunicação e informação”.[1]
A função e o uso social dessas tecnologias em tempos de pandemia nos dizem muito de como estamos engatinhando há, pelo menos, duas décadas. Resumindo: as secretarias de educação e as redes de ensino particular se viram obrigadas a dar continuidade ao calendário letivo de 2020 e estão buscando saídas pelas tecnologias digitais. Mas estão encontrando barreiras porque, de fato, se alguma vez as TICs entraram em sala de aula, foi apenas como conteúdo conceitual.
Não se pode chamar de informatizada aquela escola que têm os supostos laboratórios de informática, que só são usados como suporte das disciplinas, não para a produção de conteúdos digitais pelos próprios alunos. Tampouco é informatizada a escola que têm um computador acoplado a uma lousa interativa ou a um projetor em cada sala e que só servem para “reprodução” de conteúdo. Não se pode chamar de informatizada a escola que oferece tablets ou notebooks ou permite o uso de celulares pelos alunos, mas que esses produtos são meros replicadores do que já foi feito. Uma escola é um espaço onde se apreende o FEITO, mas, sobretudo, onde se aprende a fazer FAZER novos conteúdos. E será que é isso que temos visto em matéria de Tecnologias na escola?
O dilema dos professores se resume, mas não se limita, a esta demanda: além de roteirizar as aulas para o tempo da internet, que não funciona para aulas de 45 minutos, precisam gravar seus próprios vídeos, editá-los, dar upload, orientar via WhatsApp, gravar podcasts para quem não tem acesso aos vídeos, etc etc etc. Trata-se de um aparato múltiplo e complexo que requer um investimento de tempo e formação. Além de conhecer minimamente os códigos de acesso e produção de conteúdos para o mundo virtual, os professores estão tendo que lidar com a difícil tarefa de dar uma aula olhando para um objeto inanimado, uma câmera de celular.
É difícil imaginar que do outro lado desse objeto há um corpo cheio de alma e ansioso por aprender. Além disso, devemos desconfiar dessa obrigação de manter os estudos virtualmente. A quem interessa? Qual o papel do professor nesse contexto? Se uma lousa e um projetor não substituem um professor, tampouco um celular, um notebook com acesso a internet onde se pode baixar aulas virtuais e outros materiais. Se pesquisas têm apontado a dificuldade de uso das TICs pelos professores, a falta de familiaridade, não é culpa deles, mas de um projeto nacional para implementar os saberes e práticas das TICs aplicadas à educação.[2]
Por outro lado, temos visto inúmeros vídeos e áudios de mães, pais e filhos reclamando, ora das tarefas inúmeras que têm recebido, ora das dificuldades com o acompanhamento, ora ainda da falta de computador e celular com internet adequada para a realização eficiente dos estudos. E esse problema inviabiliza todas as tentativas da escola de manter o calendário. Inviabiliza e torna o processo desgastante. O Brasil não popularizou o uso social da internet.
Os pacotes de dados móveis das operadoras são limitadíssimos, e, muitas vezes, é o que os alunos de baixa renda têm, quando têm. O acesso gratuito à internet deveria ser o primeiro passo a ser dado pelo MEC no início da pandemia, se quisesse de fato que os alunos brasileiros continuassem estudando em casa. Isso é ser isonômico. Mas penso que o senhor Weintraub não sabe o significa de isonomia. Mesmo que soubesse, ele não entende muito de justiça social, já que disse que “o Enem não foi feito para corrigir injustiças”[3].
Não sei o teor de verdade de algumas das reclamações veiculadas pelos grupos de WhatsApp ou pelo Facebook. Não se pode muito bem verificar o que é invenção (Fake News) e o que é real. O áudio[4] de uma criança (provavelmente sulista, pelo sotaque), tendo todo o cuidado do mundo para dizer à professora que “a mãe não tem as manias de prof., porque ela trabalha num restaurante, ela só tem as manias de cozinhar”.
Isso é bonito e mostra exatamente o que é educação informal e o que a educação formal. Como a família, a escola é uma das células da sociedade, e tem seus próprios instrumentos de atuação para a formação dos sujeitos. A “mania de prof.” que o menino reconhece ao tentar falar das dificuldades que está tendo para estudar em casa, é um jeito lindo de resumir o sentido da palavra “pedagogia”, que é o cuidado com o ato de ensinar-aprender.
A pedagogia é uma ciência que exige formação, ser professor demanda tempo para aprender e um certo estado de escuta. Por isso, quando dizemos que a professora não é a tia, não estamos querendo tirar da relação aluno-professor o aspecto de intimidade, mas estamos querendo dizer que ela deve ser tratada como a profissional que é. Pais não são professores. Professores não são pais. Ambos ensinam, mas os conteúdos são diferentes.
Por isso, um áudio de uma avó (provavelmente, de um dos estados do Nordeste), que diz que “não tá aguentando mais as tarefas nesses livros mais não… Gabriele não vai fazer mais não. Se for preciso tirar ela da escolinha, eu tiro…”. A avó da Gabriele desabafa ao dizer que até tem um diploma de pedagogia, mas que nunca exerceu a função de professor porque não gosta. Pelo relato dela, parece que as tarefas da neta se resumem a responder as atividades dos livros didáticos, sem acompanhamento da escola quanto aos conteúdos conceituais.
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Isso não é EaD
Toda a celeuma sobre a manutenção do ensino em tempos pandêmicos recai num vocabulário próprio do tipo “atividades remotas”, “aulas on line”, “ensino virtual”, “projetos virtuais”, etc. Poderíamos chamar isso de EaD (ensino à distância)? Há uma série de discussão sobre isso em grupos acadêmicos que têm se reunido virtualmente para discutir as desventuras por que têm passado professores e alunos nesse tempo. O ensino à distância é uma modalidade que requer desde a concepção e elaboração de uma plataforma satisfatória para o ensino, até a produção de material pedagógico específico. Isso demanda tempo e projeto.
Portanto, o que temos em tempos de pandemia é um paliativo. Por isso, devemos entender por que quem trabalha com EaD tem reclamado com veemência do uso do termo pela rede particular e pública de educação. Essa discussão leva em consideração, entre outras coisas, a ética sobre essa modalidade de ensino, o compromisso social com os alunos, que optam por essa modalidade geralmente por não dispor de tempo hábil que os cursos presenciais exigem. Daí que a modalidade de EaD é usada por jovens e adultos trabalhadores, em cidades grandes ou nos locais de difícil acesso a escolas, caso da zona rural.
Inúmeras reportagens têm mostrado a situação da maioria dos estudantes brasileiros ao tentar estudar em casa. Se as crianças do fundamental I e II necessitam da mediação dos pais ou responsáveis para acompanhar as atividades enviadas pelas escolas, os adolescentes do ensino médio, que tem certa autonomia, podem desenvolver com mais propriedade os seus estudos. Ocorre que o abismo social é gritante no Brasil. O próprio IBGE acabou de divulgar uma pesquisa sobre o uso de Tics nos domicílios brasileiros que aponta a dificuldade de acesso a internet paga[5].
E a pandemia desenhou isso quando as escolas se depararam com a fraca participação dos alunos nas aulas virtuais, ou o não retorno das atividades propostas. Não se pode colocar a culpa nos alunos. Quando nós professores fazemos nossas reuniões de planejamento, perdemos um quarto de hora apenas com uma internet oscilante e instável, sem contar com a mudança cotidiana de aplicativos de transmissão. Zoom, Google meet, Jitsi meet etc.
Não importa que aplicativo usar para reunir o grupo: há que se ter uma rede wifi robusta. A pandemia pôs em evidência a exclusão social, o apartheid entre pobres e ricos, entre centro e periferia, entre quem pode ter acesso ao conteúdo midiático virtual e quem usa o celular apenas para receber chamadas. Não à toa, as informações que a maioria dos brasileiros recebe, estão sendo veiculadas pelo submundo dos grupos de WhatsApp, e com elas, toda uma enxurrada de fake news. As informações, infelizmente, ainda são vendidas. É preciso pagar por elas. Vejam quantas vezes tentamos abrir o link de uma manchete de um jornal ou de uma revista e somos bloqueados “pague e leia”!
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E os conteúdos emocionais?
Por fim, é preciso discutir qual o lugar do processo de ensino e aprendizagem em tempos de pandemia. Precisamos refletir sobre as condições sociais, políticas, éticas e, sobretudo, emocionais que deveriam nortear quem escolhe manter o calendário letivo. Estamos realmente com a mente e o corpo totalmente em estado de aprendizagem? O que significa estudar conteúdos conceituais quando estamos tendo que lidar com notícias diárias de doentes e de mortos? Estamos quase experts em ler gráficos, de barra, de pizza ou de linhas que ilustram uma matemática dura, que é a estatística da morte.
Os boletins diários das secretarias de saúde dos estados e do ministério da saúde parecem nos dizer que a única preocupação possível agora é em nos mantermos vivos. O mais é apenas a morte rondando solta pelas ruas. A única biologia possível parece ser a que tenta compreender as artimanhas do coronavírus, seu jeito ardiloso de infectar. O único conteúdo de química que tem nos interessado nesse instante é saber quando um medicamento eficiente e uma vacina darão resultado positivo.
O Brasil está em estado de luto. Isso quer dizer que o país se tornou um imenso cemitério. O pior é que estamos impossibilitados de velar os defuntos, de acompanhar seus sepultamentos. Só podemos chorar os mortos e isolados. Quantos estudantes não perderam seus professores para a covid19? Quantos professores não perderam alunos para o vírus? Emoções também são conteúdos: tristeza, raiva, alegria, empatia… Esses conteúdos deveriam estar presentes nas atividades desenvolvidas pelas escolas e enviadas remotamente aos alunos.
Ninguém tem muita certeza como será o mundo pós-pandemia. Há quem diga que essa pandemia será o marco inicial do século XXI; que o mundo jamais será o mesmo, e que a normalidade que achávamos que tínhamos era apenas uma espécie de torpor causado pelas agruras do mundo capitalista. A escola também precisará se reinventar? E o que seria essa escola pós-pandemia? Que conteúdos ela precisaria colocar como fundamentos da formação humana? Não sabemos. Por hora o que interessa mesmo é pensar: a quem interessa a manutenção do ensino remoto em tempos de isolamento social? E como fica a saúde mental dos professores e alunos obrigados a fingir que a morte não espreita suas vidas e os ameaça? Vamos falar de educação e saúde metal em tempos de pandemia?
[1]http://download.inep.gov.br/download/enem/matriz_referencia.pdf
[2]Ver: https://exame.com/brasil/83-dos-professores-nao-se-sentem-preparados-para-ensinar-online/ e https://educacao.uol.com.br/noticias/agencia-estado/2020/05/17/oito-em-cada-dez-professores-nao-se-sentem-preparados-para-ensinar-online.htm
[3]https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/05/em-reuniao-com-senadores-weintraub-diz-que-enem-nao-foi-feito-para-corrigir-injusticas.shtml
[4]https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2020/05/em-quarentena-aluno-envia-audio-dizendo-sentir-falta-da-professora-e-emociona_105523.php
[5]https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27522-rendimento-impacta-meio-de-acesso-da-populacao-a-bens-tecnologicos-e-internet