Para além das estantes de livros, das paredes e dos balcões de atendimento das bibliotecas, existe também um universo riquíssimo de serviços e possibilidades do muito que profissionais e instituições podem fazer com estes espaços, muitas vezes mascarados por falsos clichês e estereótipos.

A criatividade e a imaginação, que têm o livro e a informação como suas principais inspirações, transcendem as barreiras, embora a sociedade ainda não reconheça de fato as potencialidades transformadoras do campo da biblioteconomia.

Felizmente, a cada dia tem surgido novas formas de se trabalhar a leitura e o livro, por meio do aumento exponencial do uso das redes sociais e o advento de novas tecnologias.

Seja na convergência com novas linguagens artísticas e multimodais, seja na reelaboração do espaço físico e/ou na atuação inter e multidisciplinar, o fato é que um novo modo de pensar a biblioteconomia bate às nossas portas, além do impacto da atuação efetiva de bibliotecários frente aos desafios, atentos às inúmeras possibilidades de inventividade profissional.

“Eu acredito na intuição e na inspiração. A imaginação é mais importante que o conhecimento. O conhecimento é limitado, enquanto a imaginação abraça o mundo inteiro, estimulando o progresso, dando luz à evolução. Ela é, rigorosamente falando, um fator real na pesquisa científica”.  Estaria o importante cientista físico do século XX, Albert Einstein, prevendo o nosso presente e futuro com esta sua célebre conceituação?

Portanto, o motivo desta série é incentivar e valorizar boas ideias, sobretudo sugerir caminhos inovadores e colaborar na sua visibilidade para outras áreas confluentes, como também àquelas que absorvem serviços e produtos gerados pelos saberes e o know-how da biblioteconomia.

Entre tantos outros, trago cinco projetos para esta publicação, os quais considero geniais e relevantes para a área, e que tangenciam de alguma forma as bibliotecas e os bibliotecários pelo país afora.  A listagem se baseou nos que tiveram ou têm impacto público por sua relevância e contribuição sociocultural ou por seu caráter inovador, transversal e multidisciplinar. Aqui, na maior parte, valeu a experiência pessoal enquanto testemunha ocular, cujas pesquisas apenas complementam um ponto de vista pessoal.

Diante da quantidade e qualidade de tantos outros relatos, e da impossibilidade espacial de registrá-los aqui, convido aos leitores para que também apontem o seu projeto favorito realizado por instituições ou bibliotecários. O objetivo é somarmos bons exemplos que a área poderá buscar das universidades, das experiências profissionais e trazer para sociedade.

Caçadores de Bibliotecas – Manaus (AM)

Soraia Magalhães: formada em biblioteconomia e mestrado pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Tese de doutorado em trâmite pela Universidade de Salamanca/Espanha. O blog e projeto Caçadores de Bibliotecas, criado em abril de 2011, foi desenvolvido e é mantido pela bibliotecária e escritora de livros infantis, Soraia Magalhães.

Caçadores de Bibliotecas. Fotos: arquivo pessoal

Para nosso orgulho e representatividade, ela figura entre as 50 personalidades bibliotecárias do Movers & Shakers 2013, do Library Journal. O prêmio foi concedido nos EUA, na categoria Advocacy, pela luta realizada em prol da reabertura da Biblioteca Pública do Amazonas.

Ai! Sou apenas um livrinho (2020, Tutya), “Leo e os seus amigos, os livrinhos” (2013, Ler) e “Lia sempre Lia” (2012, Valer). Nesses seus livros infantis publicados, Soraia aponta que seu objetivo foi criar histórias que possam contribuir com os colegas que atuam em bibliotecas escolares em ações que refletem sobre o tema leitura, tipologia de livros e cuidados com o suporte livro.

Livros de autoria de Soraia Magalhães. Foto: arquivo pessoal

E não só! Com 10 anos de atividades e um saldo de mais de um milhão de visualizações, o blog Caçadores de Bibliotecas já se constitui em importante acervo de fontes primárias sobre investigações, registros e divulgação das bibliotecas nacionais e internacionais. O olhar sempre atento da bibliotecária Soraia com o descaso e abandono de bibliotecas, principalmente as públicas, com a falta de estrutura, acervo, verbas e profissionais adequados (muitas dessas bibliotecas foram até fechadas), revelam a relevância salutar da missão do Caçadores de Bibliotecas.

Biblioteca desmontada em Santa Rita de Sapucaí/MG., março de 2020.

Na seção intitulada “bibliotecários fora de série”, a boa atuação de bibliotecários e bibliotecárias também é viabilizado e valorizado através de entrevistas. “Mais que caçadores de biblioteca, sejamos caçadores de cultura”, Soraia reforça o bordão do blog.

Atualmente, Soraia está em vias de finalização de sua tese doutoral, realizada na Universidade de Salamanca, na Espanha,  na qual analisa as condições das bibliotecas públicas em mais de 50% dos municípios do estado do Amazonas. Proposta que se insere no campo de estudos de cidades, que reflete sobre a função de um sistema de bibliotecas, mas que deixa a marca da paixão por descobrir bibliotecas nos mais diversos níveis de desenvolvimento.  

Hoje, não há como pensar numa biblioteconomia ativa e orgânica, e não se lembrar deste belíssimo projeto de impacto social e cultural para a biblioteconomia e as políticas públicas. Sem dúvida, um marco histórico.

CaroLê: Literaturas Africanas e Negra para as Infâncias – Olinda (PE)

Carol Silva: formada em biblioteconomia pela Universidade Federal de Pernambuco com pós-graduação em Literatura Infantil e Juvenil Brasileira pela FAFIRE – Faculdade Frassineti do Recife.

Carol Silva. Foto: arquivo pessoal

O CaroLê: Literaturas Africanas e Negra para as Infâncias já nasceu para conquistar um lugarzinho só seu! Imagine um projeto literário sobre literatura infantil brasileira que surgiu no quintal da casa de uma professora de infância e foi crescendo?

Em 2020, a bibliotecária Carol Silva percebeu que tudo era lindo, mas nem tudo eram flores. Faltava algo. Nas gostosas histórias, nos incríveis personagens, em livros, bate-papos e eventos, onde estavam as autoras e editoras relacionadas à palavra e à literatura negra infantil?

Carol diz: O IG Literário CaroLê_literaturanegrainfantil brotou da preocupação com o que eu estava lendo e oferecendo, pois percebi a importância da minha participação como mulher negra leitora na literatura infantil (…) Ainda vinham questionamentos sobre personagens que não nos representavam nas narrativas, principalmente quando se tratava da infância e da desvalorização por parte das grandes editoras. Em 2020, resolvi assumir o compromisso de dar visibilidade às obras e autorias, sobretudo às mulheres pretas escritoras da literatura negro-brasileira, dos povos africanos e de seus descendentes, e estudar, pensar e repensar estratégias de implantação de uma literatura afro centrada nos acervos das bibliotecas, em combate ao racismo e na construção positiva da identidade da criança negra”.

CaroLê: Literaturas Africanas e Negra para as Infâncias, no perfil Instagram.

Desde então, Carol Silva tem desenvolvido seu projeto de comunicação no perfil do instagram, o IG Literário CaroLê_literaturanegrainfantil, que já conta com vários seguidores e publicações sobre participação em eventos, lives, bate-papos e boas interações com leitores e escritores – além de parcerias com bibliotecários, professores, mediadores de leitura, editoras, livreiros e outros agentes culturais. Um dos propósitos é dar visibilidade às pequenas editoras negras e estimular a formação de leitura baseada na possibilidade de novas escolhas.

Diante de tantos infortúnios sociais que o país tem vivido nos últimos anos, o projeto CaroLê é emergencial e importante fonte de resistência e combate à intolerância, ao preconceito e ao racismo estrutural em nossa sociedade. 

Bate-papo sobre leitura na Bienal do Livro de Pernambuco, 2019. Foto: Projeto Tamolendo

Dica de Bibliotecária – Terezina (PI)

Elani Araújo: formada em biblioteconomia pela Universidade Federal do Piauí e MBA em Coaching e Gestão por Competências. O Dica de Bibliotecária, criado por ela, é um projeto idealizado pela bibliotecária Elani Araújo, que surgiu da ideia de expandir os canais de mediação entre leitores, bibliotecas e livros. Foi em uma biblioteca de escola infantil, em Terezina (PI), que Elani criou a sua primeira ponte de comunicação e divulgação com o público, o @dicadebibliotecária no Instagram, em março de 2019.

Perfil do Dica de Bibliotecária, no Instagram. Foto: Arquivo pessoal

Segundo Elani, a grande missão do projeto é formar famílias leitoras, ou seja, educar sobre a importância de ser uma família que lê junto e dá exemplo, bem como facilitar o acesso a obras que, pela correria do dia a dia, essas famílias não teriam como conhecer. 

As postagens, como o próprio nome diz, dão dicas sobre livros infantis e infanto-juvenis, além de estudos resumidos e traduzidos da linguagem técnica, visando facilitar a compreensão dos conteúdos.

Dica de Bibliotecária no Instagram. Imagem: divulgação

Em março de 2020, aniversário de um ano do projeto, o Dica de Bibliotecária foi para o canal do Youtube, expandindo o seu público-alvo. O foco dessa vez foi ampliar a conversa com o público de bibliotecários e bibliotecárias, trazendo ótimas dicas sobre as práticas de âmbito profissional, técnico, acadêmico, mercadológico, além do compartilhamento e bate-papos sobre as vivências, os anseios e assuntos variados relacionados à classe.

Canal Dica de Bibliotecária no Youtube. Imagem: Arquivo pessoal

O canal tem feito novos seguidores a cada dia e já é um sucesso entre leitores, editoras, escritores, contadores de histórias, educadores e bibliotecários. Para além dos números crescentes de visitantes, Elani destaca a importância da formação contínua de leitura para as crianças. 

Palco Biblioteca do SESC Palladium – Belo Horizonte (MG)

Josenberg Mendes: formado em biblioteconomia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Bibliotecário Josenberg Mendes, idealizador do projeto Palco Biblioteca (Sesc Palladium). Foto: Tarcísio de Paula publicada também no site do CRB6.

O Palco Biblioteca, criado em 2015 sob as boas mãos e a mente do bibliotecário Josenberg Mendes, foi um projeto cultural inovador e multidisciplinar. Na época, o bibliotecário foi contratado para coordenar o Acervo Artístico e Literário do SESC Palladium, situado na área central de Belo Horizonte e considerado por artistas, escritores e frequentadores como local especial, incluída esta que vos fala.

Lançamento do livro Vaga Carne, com a atriz de teatro e cinema Grace Passô. Foto: Tarcísio de Paula.

Como o próprio nome sugere, o Palco Biblioteca foi desenvolvido para proporcionar acesso democrático às linguagens artísticas a um público diverso, em local de alta efervescência cultural, com salas de teatro, galeria, cinema, café e outros espaços de convivência e intervenções.

Performance da atriz Luiza Parisi para o lançamento do livro Sobras Completas, do poeta Jovino Machado. Foto: Henrique Chendes

Um dos objetivos do projeto foi evidenciar o conteúdo do livro por meio de abordagens múltiplas de gêneros e linguagens nesse lugar de encontros, onde, por exemplo, Literatura e Teatro poderiam compartilhar o mesmo espaço; assim como Música e Cinema, Artes Visuais e Sustentabilidade, Dança e Consciência Social se expressavam e se interconectavam ali.

Fausto Fawcett em bate-papo com o público sobre o seu livro Favelost. Foto: Tarcísio de Paula.

A busca por potencializar e explorar formas não convencionais de se comunicar com o público transcendia o bate-papo sobre o livro. A performance e o envolvimento do artista na construção de uma apresentação que dialogava com o conteúdo encontrado nas páginas, trouxeram novos olhares às temáticas, fossem elas contemporâneas ou não.

O Palco Biblioteca trouxe ressignificação do espaço da biblioteca para o leitor-frequentador. Para além de um espaço de leitura e pesquisa, foi um verdadeiro palco da vida cotidiana, onde o cenário era seu acervo de livros.

Segundo Josenberg Mendes, todas as edições do Palco foram especiais. Porém, para ele, as mais emblemáticas foram as que tiveram as participações de Grace Passô, Jovino Machado, Fausto Fawcett, Rogério Skylab e Rubens Barbot.

Na primeira foto à esquerda, em cima: Rogério Skylab em “Debaixo das Rodas um Automóvel”. Foto: Tarcísio de Paula. Segunda à direita, “Campo das Vertentes”. Foto: Henrique Chendes. Na primeira à esquerda de baixo:” Imagens para Alguma Paisagem”. Foto: Tarcísio de Paula. Segunda à direita de baixo: “Mário de Andrade desce aos Infernos”.  Foto: Henrique Chendes.

Infelizmente, o Palco Biblioteca acabou em 2017. Em sua derradeira edição, houve apresentação e intervenção artística no lançamento nacional do livro Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro, de Jean-Claude Bernardet. Por sua criatividade e grande interatividade, o projeto deixou um vazio na cidade. E muita saudade no coração dos frequentadores desse espaço artístico-cultural.

Segue link com nota sobre o projeto pelo Conselho de Biblioteconomia de Minas Gerais/Espirito Santo – CRB6  http://blog.crb6.org.br/boletim/palco-biblioteca/

Sistema Nacional de Bibliotecas do SESC, SENAC, SESI e SENAI (BR)

Biblioteca Itinerante SESI SP. Foto: História Institucional – Portal da Indústria

Este é um exemplo que todo mundo sabe que existe, já usou de alguma forma, compreende a importância, mas nunca parou para pensar que, juntas, as instituições do Sistema S, talvez integrem, há mais de 70 anos, o maior conglomerado de rede de bibliotecas no Brasil. Já pensou nisto? Consequentemente, é certo que possuem um dos maiores acervos nacionais de livros, periódicos e documentos.

Desde o início de sua atuação, é fato que estas instituições também têm sido um dos grandes empregadores de bibliotecários e auxiliares. O que, de alguma forma, denota valorização profissional e traz uma muito bem-vinda onda de empregabilidade, levando-se em consideração que há escassez de bibliotecários concursados em muitas bibliotecas públicas escolares, por exemplo. Por isso, cada vez mais, se atribui relevância estratégica ao Plano Nacional de Livro e Leitura (PNLL), enquanto política pública.

Revista SESINHO, memória do Portal da Indústria  –  A Revista foi criada em 1947, após um ano da inauguração do SESI (Serviço Social da Indústria), com a missão de colaborar na formação de cidadãos éticos e conscientes da vida em sociedade, convivência em equipe e o respeito ao próximo, através de temas educativos sociais, culturais, ambientais – e de importância para a indústria nacional, tais como: segurança do trabalho, qualidade, robótica, inovação e outros – além de entretenimento, recreação e interação com o leitor. A publicação foi até 1960, retornando em 2001 até o número 142. Em 2002 virou desenho animado de comercial pelo @canal_futura e depois @tvcultura. Imagem: (Portal SESI Educação  e Wikipédia).

De âmbito privado, de interesse e gestão pública, o Sistema S surgiu com propósito social, educativo e recreativo para a indústria, comércio e empreendedores. Não há como pensar na história contemporânea do desenvolvimento socioeconômico e cultural brasileiro, e não reconhecer o papel vigoroso e relevante dessas instituições. No entanto, incompreensivelmente, de tempos em tempos elas sofrem ameaças de perda de contribuições.

Nesse caso, vale lembrar que no início do ano foi anunciado pelo ministro Paulo Guedes corte significativo das contribuições ao Sistema S. Tais medidas impactam empregos e serviços à sociedade.  Em junho deste ano, houve demissão em massa de bibliotecários e outros educadores no SESI SP, o que causou indignação da classe bibliotecária e do sindicato. O assunto, inclusive, foi denunciado e muito comentado no Grupo de Bibliotecários do Brasil, no Facebook, com o compartilhamento do vídeo do Deputado Estadual do PSOL, Carlos Giannazi, em defesa dos bibliotecários demitidos do SESI e UNIP.

Um paradoxo desolador: por um lado, testemunha-se a expressão da classe bibliotecária absorvida pelo Sistema; por outro, evidencia-se o lado perverso da política neoliberal.

Seja na formação de mão-de-obra especializada; seja na geração e transferência de conhecimento tecno-científico; seja no fomento à cultura e à educação, por meio da rede de escolas do ensino básico e dos projetos artísticos e socioculturais do SESI e do SESC, do ensino especializado do SENAI e SENAC, o Sistema S marcou a cena brasileira de forma positiva. O SENAI, por exemplo, foi apontado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2014, como uma das principais instituições educacionais do Hemisfério Sul (Wikipédia)

As Bibliotecas do SESI e SESC assumiram um lugar de importância na vida nacional. Muitos brasileiros tiveram seu primeiro contato com livros e leitura por meio dessas instituições. Por muito tempo, elas abriram as portas e ofereceram diversos serviços às comunidades onde unidades suas foram instaladas. Sobretudo, em lugares carentes de bibliotecas escolares, públicas ou comunitárias, essas bibliotecas conseguiram suprir várias lacunas e deficiências.

Ações promovem Dia do Livro e da Biblioteca no SESI e SENAI, em Minas Gerais. Fonte: CRB6

No SESC, as bibliotecas são classificadas na área de cultura. Além daquelas instaladas nas unidades de atendimento ao público, o BiblioSESC é um exemplo de biblioteca itinerante que visa levar livros, atividades culturais e literárias a regiões menos favorecidas. Mas há inúmeros outros projetos dessa natureza. 

Várias bibliotecas do SESI permaneceram abertas às comunidades do entorno, além do atendimento escolar. As Caixas-estante do SESI também viajaram para diversos lugares e atenderam trabalhadores das indústrias. A chamada CAIXA de CULTURA, hoje com mais de 70 anos de história, é uns dos mais antigos projetos literários itinerantes do SESI SP.

A valorização das instituições S pela sociedade e pelo poder público impacta diretamente nas ações culturais, na empregabilidade, nas demandas e fortalecimento dos interesses das empresas nacionais no cenário global. Lutemos todos pela permanência viva e atuante desses importantes instrumentos de educação e cultura no Brasil!

Caminhão-baú tem acervo com 3.800 livros e revistas. Foto: Divulgação

Biblioteca SENAC Pernambuco. Foto: SENAC PE

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