RIO – Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda foi por muitos anos diretor da Escola de Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO – na qual ainda desenvolve sua carreira de docente e pesquisador. Nesta entrevista ele fala um pouco sobre a história da Biblioteconomia no Brasil com todos os percalços que marcam sua evolução enquanto ciência.

Hanna Gledyz: Como surgiu a biblioteconomia no Brasil e quem foram os principais responsáveis?

Marcos Miranda: A Biblioteconomia no Brasil surge, de certa maneira, vamos dizer assim, como ciência, como fazer, como instituição. Se nós formos pela instituição, por exemplo, vamos saber que a primeira biblioteca pública no país foi há 200 anos; a primeira biblioteca infantil no país tem 200 anos. Onde? Na Bahia, em Salvador. Agora se nós formos pensar na institucionalização da biblioteconomia enquanto uma área de formação profissional, nós podemos pensar na Biblioteca Nacional, que vem a partir (isso está na história) da vinda da Família Real [em 1808] para o nosso país, e aí funda essa Biblioteca Nacional, que teve endereço que não é hoje o da Rio Branco; já foi onde é a escola de música da UFRJ [no Centro do Rio], se não me engano já foi na [rua] Primeiro de Março, e aí depois foi aquele prédio, que onde foi onde surgiu o curso da Biblioteca Nacional. Agora como isso aconteceu? Nós temos que pensar também que em 1911, por exemplo, que é a data de criação do curso de Biblioteconomia no país, foi um período marcado por guerras, por determinadas conquistas. Muitos estudiosos, muitos intelectuais do nosso país, que já foram diretores da Biblioteca Nacional, eles percorriam o mundo em viagens. Por exemplo: Manuel Cícero Peregrino, ele foi fazer uma visita na França, por isso que o nosso modelo de ensino é um modelo francês. Então Manual Cícero Peregrino foi o grande… O primeiro coordenador do nosso curso de Biblioteconomia. Temos também o Rodolfo Garcia e outras pessoa que de certa maneira lutaram pela Biblioteconomia e a Documentação do nosso país, como por exemplo, o próprio Oswaldo Cruz [médico sanitarista, 1872 – 1917]. Quando começou a discussão no mundo acerca da bibliografia e da documentação, vários intelectuais e cientistas participaram da primeira conferência que o Paul Otlet organizou, sobre o controle bibliográfico universal; e com isso também surge a CDU. Esse répertoire bibliographique universel, que o Paul Otlet e o Henri La Fontaine organizaram em fichas, foi a semente da CDU; e com isso, esse esquema de classificação passou a ser difundido no mundo inteiro, e a própria bibliografia nacional da Biblioteca Nacional era organizada pela CDU. Então Oswaldo Cruz, Rodolfo Garcia, Manual Cícero Peregrino, dentre outros, outras personalidades intelectuais científicas do nosso país, participavam dessa reunião. Até me lembro muito bem que me encontrei o Haward (biólogo da FUNED) e ele me disse uma vez que as fichas do repertório bibliográfico universal tinham sido encomendadas pelo Brasil, e que ele tem uma documentação que comprova que saíram de lá; nós não conseguimos lançar no país; até que eu fui para uma banca de dissertação, da Angela Bettencourt, da Biblioteca Nacional; na qualificação dela eu disse isso: “olha, Haward me disse isso, que as fichas saíram de lá, mas que ele não sabe onde foi parar”. Isso me deu uma certa curiosidade. Foi aí que ela procurou na BN e achou. Claro, se os caras da Biblioteca Nacional iam participar dessas reuniões, então essas fichas só poderiam ser encomendadas pela Biblioteca Nacional do nosso país! E se tratando de um repertório bibliográfico universal, tem a questão do controle bibliográfico universal, já que toda Biblioteca Nacional tem a responsabilidade do controle bibliográfico nacional. Esse foi um momento também, onde nós tínhamos uma filosofia – eu falo “nós tínhamos”, mas eu não vivi essa época não [risos] – da teoria da biblioteca universal. Tudo que era produzido no mundo interessava a todo mundo. Era uma época também de efervescência cultural, política etc. Nós tivemos algumas revoluções, vários países se fortaleceram pela penúria e, vamos dizer assim, pelos danos que a guerra causou a determinados países é que fez com que esses países crescessem mais ainda em busca de conhecimento. Isso fez com que mais e mais existissem lugares para os bibliotecários trabalharem, porque sem a busca pelo conhecimento, que vem muito pelo meio da pesquisa, e da pesquisa científica, da pesquisa de ponta; aí tem uma relação, que é bem histórica, da biblioteconomia com a documentação. Na época acharam que os bibliotecários não dariam conta de tanta produção de conhecimento; e aí foi quando surgiu a documentação, mas o nosso país desvinculou a Biblioteconomia da Documentação. Hoje em dia, vários cursos tiraram a documentação do seu nome –cursos de graduação –, Biblioteconomia e Documentação.  O nosso inclusive tirou porque a arquivologia brigou, dizendo que ela também trabalhava com a documentação. Só que a documentação que nós estamos falando era outra documentação; era uma ciência documental e não a documentação que arquivista trabalha, que é um conjunto de documentos. Na UFF [Universidade Federal Fluminense], por exemplo, nós temos Biblioteconomia e Documentação, como é em vários outros países. E aí começou a ser travado uma guerra de conhecimento entre a Biblioteconomia e a Documentação e a Ciência da Informação por alguns estudiosos. Tanto que nós temos três linhas de pensamento na Biblioteconomia: uma que acha que existe a Biblioteconomia, a Documentação e a Ciência da Informação, cada uma com seus objetos próprios de estudo; outra linha que diz que é Biblioteconomia e Ciência da Informação, ou seja, já tiraram a documentação de cena, e essa linha é aquela que acha que a Ciência da Informação é uma evolução da Documentação, que a Ciência da Informação surge com a Documentação, o que eu não concordo; e outra que disse que não existe mais Biblioteconomia e Documentação, que é só Ciência da Informação. Compartilho, é claro, da linha que pensa que Biblioteconomia é uma ciência, Documentação é outra ciência e Ciência da Informação é outra.

H. G.: Comente um pouco sobre as mudanças no currículo.

M. M.: Essas mudanças foram muito providenciais. Nós tivemos algumas reformulações e algumas mudanças no currículo: a primeira foi em 1962, que foi uma forte mudança, onde a Biblioteconomia foi elevada a um curso superior; o curso que era da Biblioteca Nacional foi elevado à condição de curso superior. Então esse é um momento marcante. Depois outro momento foi na década de [19]80, mais precisamente uma resolução do Conselho Federal de Educação, onde foi estabelecido o currículo mínimo, ou seja, para se ter o mínimo de conhecimento a ser trabalhado em todos os cursos de Biblioteconomia do nosso país. Esse currículo mínimo, vamos dizer assim, foi uma diretriz do governo, especificamente do Ministério da Educação e da Cultura, utilizada em todos os cursos superiores do nosso país. É muito interessante porque o MEC estabeleceu um currículo mínimo e cada curso tinha seu currículo pleno. O que significa isso? Que este currículo pleno tinha esta espinha dorsal do currículo mínimo, como, por exemplo, três grandes matérias que se subdividiam em outras matérias, e no currículo pleno de cada universidade essas matérias se desdobravam em disciplinas. Essa seria a grade curricular e não como nós chamamos hoje de matriz curricular, que é mais flexível, vamos dizer assim. A grade prende, aprisiona, é muito ruim isso. Nós tínhamos três grandes matérias: a primeira é a matéria de formação geral, como Filosofia, História da Cultura, História da Filosofia, Historia da Arte, Aspectos Sociais, Políticos e Econômicos do Brasil Contemporâneo, ou seja, Sociologia, História, Antropologia. Depois nós tínhamos as matérias instrumentais, que são Metodologia da Pesquisa, Inglês Instrumental, Língua Portuguesa, Lógica. São todas disciplinas dessas, digamos assim, matérias instrumentais. Depois nós tínhamos seis matérias que eram de formação profissional: Biblioteconomia da Informação, Biblioteconomia Aplicada à Informação, Disseminação da Informação, Administração de Bibliotecas, Controle Bibliográfico dos Registros do Conhecimento, Fontes de Informação. Com essa mudança e flexibilização curricular, o MEC tinha uma comissão de especialista na área de Ciência da Informação, e essa comissão queria na verdade juntar todos os cursos: Arquivologia, Biblioteconomia e Ciência da Informação. Aí a UNIRIO gritou. Não deixou que isso acontecesse. Na época o professor Luiz Cleber Gak, que era diretor da Escola de Arquivologia [da UNIRIO], se não me engano, ele consegui as passagens para trazer especialista aqui na nossa Universidade; nós chamamos a Arquivologia da UFF e da UNIRIO, a Biblioteconomia da UFF, da UNIRIO e da [Universidade] Santa Úrsula – na UFRJ ainda não existia o curso. Chamamos a Ciência da Informação e a Museologia. Cada um dos diretores de escola e também o IBCT fez um documento dizendo que eram ciências independentes e que em ambas as universidades eram áreas independentes de formação. Nós conseguimos reverter esta situação. Então foi criado diretrizes curriculares para cada um dos cursos: para a Arquivologia, para a Biblioteconomia e para a Museologia. A Ciência da Informação, que não é curso de graduação, que é pós-graduação, o que também foi um equívoco em nosso país, foi quando o nosso discurso científico ficou um tanto enfraquecido, porque no início, mais ou menos na década de [19]90, todos os cursos de pós-graduação e os mestrados, que se denominavam em Biblioteconomia, ficaram na Ciência da Informação… Por exemplo: da Paraíba, mestrado em Biblioteconomia e Sociedade e da UNB era mestrado em Biblioteconomia e Documentação e ficaram em Ciência da Informação. E aí teve até um fato que a Ciência da Informação era o campo teórico da Biblioteconomia, da Arquivologia e da Museologia, como se a Biblioteconomia tivesse nascido ontem; a Ciência da Informação que nasceu ontem, no pós-guerra. Eu digo isso muito à vontade porque eu sou cientista da informação. A preocupação da Ciência da Informação é outra; ela tem como objeto de estudo a geração, a estrutura, o fluxo da informação e a sua disseminação. Eu acho que os bibliotecários nos seus fazeres cotidianos, tem adquirido um conhecimento que muitas das vezes é apresentado em congressos, que se mistura com outros conhecimentos de outras áreas e aquilo não retorna para o bibliotecário para ele poder discutir. Nós precisamos resgatar essa discussão: o que afinal é Biblioteconomia? O que é Bibliografia? Por exemplo: a Bibliografia é mais antiga que a Biblioteconomia, no entanto os cursos de graduação são de Biblioteconomia, não são de Bibliografia. É como se a Biblioteconomia tivesse engolido; aí, há controvérsias, essa é apenas a minha visão, mas na realizada a Biblioteconomia que uniu elas todas, porque o curso de graduação é em biblioteconomia. Muitas pessoas que adquirem seus mestrados e doutorados em Ciência da Informação não tem uma propriedade no tratamento desse fazer, como refletir sobre esse fazer, porque não tem prática. O cara é engenheiro, o cara é médico, trabalhou um pouquinho com a informação, vai fazer um mestrado em Ciência da Informação ai acha que pode dirigir uma unidade de informação; isso não existe. Nós temos a Lei nº 4.084 [de 1962, que dispõe sobre o exercício da profissão de bibliotecário] que diz que a profissão de bibliotecário é privativa dos bacharéis em Biblioteconomia. Alguns cursos de graduação mudaram de nome para Ciência da Informação; “ah, a UFRJ aqui ao lado!”, a Biblioteconomia grudada à Gestão da Informação. Desde quando a Biblioteconomia não gerencia unidades de informação? Se uma das primeiras definições de Biblioteconomia é que ela é a ciência da organização e administração de bibliotecas. Isso acaba criando um problema terminologia sério, junto ao próprio Ministério da Educação. O cara tem o título de bacharel? Tem. Então qual é a diferença? A diferença, retomando aquela conversa do currículo pleno, se em cada região você pudesse contextualizar todo aquele conhecimento biblioteconômico até aplicar naquela região, naquele Estado ou naquela cidade… Uma cidade como a nossa, que é a capital cultural do nosso país, precisa do que? De uma Biblioteconomia multifacetada. Se você for procurar por ai, são pouquíssimos aqueles cursos que trabalham efetivamente a catalogação, a classificação, a indexação, o conhecimento clássico, tradicional – num bom sentido – da Biblioteconomia. Hoje em dia, as pessoas estão muito preocupadas com a tecnologia, mas se não tiver o que fazer com essa tecnologia vai para onde? Para lugar nenhum. A Professora Nice Figuereido, que foi minha orientadora acadêmica no mestrado em Ciência da Informação, me dizia: “Marcos, se o bibliotecário souber o feijão com arroz da Biblioteconomia já está muito bom”. E hoje muita gente é formada sem saber do feijão com arroz.

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