Há lugares que são devastados por catástrofes naturais ou por extermínio bélico. Mas existe um tipo de desolação que chega sem alarde e se instala. Algumas vezes, ela nasce junto com o lugar. Há os que correm desesperadamente para fugir. E há os que ficam. O filme Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador (1993 – original What’s Eating Gilbert Grape?), do diretor sueco Lasse Hallström, conta a história de um jovem que permaneceu no mesmo lugar, enterrado pela rotina de uma cidade onde o relógio parou.

Gilbert (Johnny Depp) vive em Endora, pequena cidade engolida pelo tempo. Depois do suicídio do pai, ele assume a responsabilidade pelo sustento da família. E não apenas isso: Gilbert vive integralmente para cuidar de seu irmão Arnie (Leonardo DiCaprio), um adolescente com problemas mentais, e de sua mãe (Darlene Cates), que sofre de obesidade mórbida. Há ainda duas irmãs, Amy (Laura Harrington) e Ellen (Mary Kate Schellhardt), criaturas atrapalhadas que tentam auxiliar Gilbert, mas acabam cobrando mais do que ajudando.

Trabalhando como faz-tudo em uma mercearia, Gilbert leva Arnie a todos os lugares. O grande evento do ano para os dois irmãos é a passagem de trailers pela estrada que cruza a cidade. Em uma dessas passagens, um dos veículos quebra e precisa permanecer na minúscula Endora por algum tempo. Esse simples fato fortuito é o ponto de transformação na cabeça de Gilbert, já que ele conhece Becky, garota viajada e cosmopolita, que acompanha a avó em excursões pelo país.

Vivida pela atriz Juliette Lewis, Becky é o contraponto de Gilbert: enquanto o jovem tem olhos tristes, pesados pelas obrigações que nunca cessam e precisa conviver com sonhos acorrentados, a jovem é viva, intensa e efusiva. No lugar dos arroubos escandalosos, Becky oferece outro tipo de carpe diem: ela apresenta para Gilbert a imensidão de um mundo que está ali, expresso no pôr do sol ou na possibilidade de observar a poesia no invisível. Esse é um dos pontos interessantes do filme.

O enredo sem pirotecnia começa a ganhar o coração do espectador com a atuação sensacional de Leonardo DiCaprio. Os gritos e brincadeiras de Arnie arrancam emoções do peito e despertam o olhar para a existência interior de pessoas que fogem dos padrões considerados normais. As limitações mentais de Arnie não o impedem de sorrir, ser feliz e procurar o carinho incondicional do irmão. Pelo contrário: o espectador observa um adolescente que consegue viver em Endora sem que a monotonia da cidade o empurre para dentro do poço. 

Nesse caso, a ignorância do mundo funciona como uma benção. Indicado ao Oscar em 1994 na categoria de melhor ator coadjuvante, DiCaprio mereceu cada menção honrosa pela atuação. Ele alcança os gestos, olhares e padrões de comportamento de uma pessoa com o tipo de deficiência apresentada pelo personagem, de caráter intelectual. Na época com dezenove anos, o ator deixou muito veterano de queixo caído.

Na pele de Gilbert, Depp (na época) mostrou ser o tipo ideal para viver o papel: os olhos melancólicos e pesados de responsabilidade; o jeito afável e dedicado com o qual tratava seu irmão e o desejo incessante de sair daquele lugar. Todas essas emoções ganharam contornos reais no rosto de Johnny Depp, que ainda não tinha sido possuído pelos trejeitos do famigerado capitão Jack Sparow, personagem que interpretaria uma década depois na série interminável Piratas do Caribe.

Em 1993, mais bonito do que nunca, Depp traz na expressão o desespero silencioso de Gilbert; sua inocência misturada ao comodismo e o medo de abandonar a sua benção e calvário: a própria família. Em Endora, a família Grape é a personificação da imobilidade da cidade: a mãe obesa que não sai de casa há sete anos; a própria residência da família, completamente imutável desde que foi construída pelo pai; a rejeição de Gilbert em conhecer o supermercado novo que abriu na cidade, ameaçando a sobrevivência do mercadinho em que trabalha, e a rotina de vida que leva: de casa para o trabalho e vice-versa.

Sua única distração é o assédio constante da mulher do corretor Carver, a dona de casa Betty. Em uma das silenciosas crises existenciais de Gilbert, Betty revela qual é o motivo de querer manter um caso com ele, aumentando consideravelmente o caos interno do jovem Grape.

O longa metragem surpreende pela emoção sincera, dicotomias e dilemas que podem estar perto de nós. Muitas vezes, seguimos mecanicamente os dias porque estamos presos na confortável bolha da vida ou em obrigações pétreas que transformam nossas existências em buracos vazios sem direito à esperança.

A felicidade de Arnie, seu modo alegre de viver, a “benção da ignorância” e a capacidade de recomeçar os dias sem remorso são um ponto alto na mudança de perspectiva. O baixo orçamento de Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador provou que existem emoções ocultas na epiderme humana que aguardam a oportunidade de vir à tona e independem de altos investimentos. O cinema abre espaço para essa pulsação se manifestar.

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