Meditando nestes tempos em que a humanidade foi posta em xeque, me peguei pensando na questão da produtividade acadêmica, dentre outros tipos de desempenho em que somos condicionados a manter, de acordo com as exigências sociais que nos são impostas, por meio de uma mentalidade mercadológica que tudo transforma, visando a obtenção de lucro pelo lucro (parafraseando Marx e Engels).
Para quase totalidade da humanidade, esta pandemia é a primeira de suas vidas (e esperamos ser a última). De uma forma inesperada para quem estava acostumado com uma rotina em que saia cedo para trabalhar, e voltava tarde da noite, estar mais de 50 dias encastelado em casa não é uma forma das mais confortáveis de encarar a vida.
Aqui é necessário fazer uma observação: entende-se a importância do isolamento social para frear a proliferação do contágio e barrar o vírus. O que se quer trazer à tona neste texto é como que nós, seres acostumados à dinâmica do dia a dia, manteremos a rotina dentro de casa, sendo bombardeados amiúde com notícias de mortes aos milhares?!
Embora muitos dos que se dedica a fazer pesquisas, debruçando-se sobre temas que lhes são caros e agradáveis, há de se convir que por trás das pesquisas desenvolvidas com amor e zelo, existe uma série de cobranças vindas de orientadores/as, instituições de ensino e agências financiadoras, seguindo a mentalidade mercadológica que a pesquisa passou a ostentar.
É comum dizer na perspectiva sociológica que a escola é uma instituição criada pela burguesia, e como não poderia deixar de ser, reflete as intenções e valores de quem a criou. Ora, o que buscava a burguesia ascendente dos séculos XVIII e XIX senão o domínio das regras sociais, antes pautadas em ideais vindos da nobreza e do clero?!
Desde de tenra idade a pessoa passa a receber uma gama de informações no tocante ao relacionamento com os outros indivíduos que compõem a sociedade. O estímulo à competitividade é fomentado já na escola, que ao contrário de como é vista (instituição mantenedora da ordem e harmonia), estimula o conflito entre os indivíduos de uma forma não perceptiva. O sistema de avaliação numérico ilustra bem como este conflito é estabelecido sem que haja protesto; claro que não nos primeiros anos de ensino, mas nas séries mais avançadas e, sobretudo, na vida acadêmica.
Crescemos ouvindo, lendo, vendo exemplos que nos estimulam a ter uma postura voltada para a produtividade, tanto na família, quanto na sociedade de uma forma geral. Os marcos regulatórios das sociedades estabelecidas em pilares construídos pelo cristianismo, por exemplo, trazem uma referência ao trabalho e/ou a produtividade como algo divino. Não é de se espantar que a aversão ao trabalho e a produtividade recebeu o nome de preguiça e é elencada na lista de pecados capitais.
Como podemos perceber de uma forma preliminar, a produção é estimulada desde sempre, e faz parte do processo de socialização dos indivíduos. Parafraseando Émile Durkheim, o fato social é coercitivo, geral e exterior, não dando chances para que ninguém escape deles. Sendo assim, somos impelidos a nos manter sempre vigilantes no tocante a produtividade, caindo sobre muitos a culpabilização pela falta de produção; e é aqui que vou me deter com mais afinco.
Aos que querem enveredar na vida acadêmica, seja em que área for, as exigências para se manter, digamos, atuante diante dos seus pares de academia, são diversas. É preciso ter domínio de uma ou mais línguas, sem contar a língua pátria; a produção acadêmica precisa estar sempre em dia, exigindo que pesquisadores apresentem os resultados de suas pesquisas através de artigos publicados em revistas, bem como a participação em eventos nacionais e internacionais, dentre outras exigências.
No afã de produzir mais e mais, agências financiadoras exigem uma série de medidas que, por vezes, acabam sendo um contrassenso, principalmente quando se pede (exige) que o/a pesquisador/a tenha de três a cinco artigos publicados por ano em revista bem conceituadas. Infelizmente, devido essa exigência, aliado ao mau-caratismo de alguns, diversos casos de autoplágios vêm ocorrendo nas produções acadêmicas, fazendo que inúmeros processos disciplinares ocorram, além de empobrecer a pesquisa num todo.
A pessoa que desenvolve pesquisa e recebe verba por parte de alguma agência financiadora precisa mostrar produtividade através de publicações, relatórios, participações em eventos, palestras, aulas etc. Que fique bem claro que este texto não está “passando a mão na cabeça de pesquisador/a”, pelo contrário: quem decide caminhar em determinada direção, deve mensurar os ônus e bônus que se apresentarão pelo caminho.
Todavia, relatar a pressão que muitos pesquisadores sofrem é parte de um movimento que preza pelo humanismo da pesquisa, bem como a sanidade mental das pessoas envolvidas. Em tempos normais, sem pressão por conta de uma pandemia, temos relatos de pessoas que não deram conta da pressão por resultados que recebiam.
Conheço uma pessoa que fazia doutorado em um conceituado programa de pós-graduação, dentro de uma igualmente conceituada instituição de ensino. Pois bem, tal pessoa já estava lá pelo terceiro ano de pesquisa (dentro do doutorado), e precisou se afastar de algumas atividades em vistas a escrever sua tese. Tempos depois, de forma que pegou muita gente de surpresa, esta pessoa simplesmente disse que não estava dando mais conta, e devido a um bloqueio que somente ela pode saber como foi, não conseguiu cumprir com os prazos estabelecidos pelo programa. Resumo da história: a pessoa não conseguiu concluir a pesquisa e foi desligada do programa.
Esse foi um caso de uma pessoa que conheço pessoalmente, mas já ouvi diversos casos espalhados por aí, de quem não conheço. Infelizmente isso é parte de uma realidade nos programas de pós-graduação, principalmente, mas não quer dizer que isso ocorrer apenas neles; a pressão já começa na graduação.
Tive a sorte de ter uma orientadora presente, que tem um canal aberto comigo e vice versa. Minha orientadora do mestrado é a mesma da graduação e, talvez, isso tenha facilitado um pouco minha vida acadêmica. Não que tudo ocorra às mil maravilhas; já tivemos nossos momentos de embates, mas tudo com muito respeito e empatia.
Nestes tempos de quarentena eu fiz diversos planos. Estudar e adiantar leituras pendentes, foram as que encabeçaram minha lista, isso tudo sem ao menos “combinar com os russos”. O tempo foi passando, as notícias chegando, e bateu um desânimo incompreensível. Eu simplesmente travei! Nas primeiras semanas de isolamento social, até que produzi alguma coisa, mas, conforme o tempo foi passando, e o número de pessoas acometidas pelo Covid-19 foi aumentando, bem como o número de óbitos, eu não consegui mais me dedicar à pesquisa como antes. Não conseguia pegar nos livros, abrir o computador, fazer minhas anotações.
A cada dia que passava, eu me isolava da pesquisa. O agravante veio quando comecei a me cobrar sobre a pesquisa; foi terrível. Nada pior do que colocar a cabeça no travesseiro e ouvir uma voz interior dizendo que eu estava incorrendo em uma falta grande. Quantas pessoas já tentaram ingressar em um programa de pós-graduação de uma universidade federal e não conseguiram, e eu simplesmente não estava dando valor a este privilégio etc. Dias ruins foram em que eu estava em conflito com essa tal voz interior. Precisei parar, respirar e tomar as rédeas da situação!
Não posso me sentir culpado se não há clima para desenvolver uma pesquisa, dizia eu olhando no espelho. Não é possível pra mim continuar uma pesquisa que tem como pano de fundo a empatia e não me sentir tocado com cada morte registrada todos os dias por conta da doença que parou o mundo. Como manter a cabeça voltada para uma pesquisa, sabendo que as autoridades do país estão em conflitos políticos e com isso a população vem pagando um alto preço?!
Sempre tive receio de me tornar uma pessoa mecânica, que entende a pesquisa como mola para lucrar favores financeiros. Independente de quem pensa assim, eu não consigo conceber a ideia de pesquisar em vistas a obter lucros financeiros. Se a minha pesquisa me levar a angariar algum benefício financeiro futuramente, é parte de um jogo, agora agir de modo premeditado visando o lucro, nunca foi a minha intenção. Pesa imaginar-me agindo numa perspectiva fordista na pesquisa que tanto gosto de desenvolver, e que sou impulsionado por uma moção pessoal.
A CAPES se manifestou por meio de uma portaria, sugerindo que os prazos fossem recalculados por conta da Covid-19. Algumas universidades vieram a público anunciando que haviam suspendido as atividades de graduação e pós-graduação, mas não todas (embora na prática, as atividades estão paradas). Exceto pesquisas da área médica, entendo que as demais deveriam ser suspensas, por uma questão de empatia. Por mais que eu queira que assim fosse encarada este momento ímpar da humanidade, muitas cabeças que atuam no universo da pesquisa acreditam que a produção não pode parar, pois a perspectiva mercadológica já convenceu muitos pesquisadores.
De resto, torço para que este processo de pausa do mundo passe logo, e que nós possamos entender a vida de uma outra forma, ressignificando nossas relações sociais, praticando valores descobertos durante a pandemia, desacelerando a vida e observando mais o nosso redor. Que a vida seja colocada em primeiro lugar, diante de tudo que se apresente.
A economia, a ciência, as grandes corporações que utilizam dados científicos para estabelecer princípios econômicos, nada serão e nem conquistarão sem pessoas vivas. Não se reconstroem países, estados, cidades, economia com pessoas mortas. A vida é mais valiosa do que tudo!