Memória é muito mais que espaços em bits e bytes que compramos da Apple ou da Google. É muito mais que espaço na nuvem. A memória foi relegada ao plano de números eletrônicos e fomos perdendo nossa ligação com o passado e a importância do registro para podermos ter um futuro.

A memória está ameaçada por este governo e pelo governo golpista que o antecedeu. Permitiram que acervos importantes da nossa história fossem destruídos como o Museu Nacional e a Cinemateca Brasileira. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, a Fundação Nacional de Artes – Funarte, a Fundação Palmares, instituições de guarda da memória, estão sendo corroídas por dentro. Colocaram pessoas sem a devida qualificação para exercer cargos para minar as instituições de memória. A negligência diante do abandono compulsório do nosso acervo cultural é latente. E a destruição da memória do nosso povo é um dos legados destrutivos da pandemia de covid-19.

Quem se lembrará da vida, das histórias, e da memória dos 608 mil mortos pela covid no Brasil? Onde estará registrado que eles existiram? Onde esses 608 mil deixarão de ser números e passarão a ter rosto?

O memorial Inumeráveis obra do artista Edson Pavoni em colaboração com voluntários busca registrar os mortos pela covid além dos números. O Senado por meio da Resolução do Senado Federal nº 26 de 07/10/2021 criou o Memorial em Homenagem às Vítimas da Covid-19 no Brasil. Este se baseia numa placa nas dependências externas representando as vítimas das 27 (vinte e sete) unidades da Federação.

Assistindo ao 28º episódio da quinta temporada do Greg News, com Gregorio Duvivier, sobre memória me inquietou que a biblioteconomia não estivesse envolvida na preservação da memória das vítimas da covid. Devemos reconhecer que mesmo com as defasagens e dificuldades, a biblioteca é o equipamento cultural mais pulverizado no país. Esse equipamento é encontrado em todo o território nacional nas mais diversas iniciativas, financiamentos, gerência, acervos e comunidades. São os equipamentos mais próximos de cada família. As bibliotecas por sua disposição no território nacional podem se tornar polos de memória das vítimas da covid. Para que sejam restaurados rostos, histórias, para que não se esqueça o genocídio em curso. Nossas bibliotecas podem se tornar organizadoras da memória coletiva, permitindo que as fotos da família não se percam nas plataformas digitais, para que as fotos impressas não se deteriorem, que as histórias sejam contadas. E como nos lembra Chimamanda Ngozi Adichie, muitas histórias importam! Como ficou latente na última reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da Covid em que as famílias e vítimas da covid puderam ser ouvidas. Quantas outras histórias não teremos para ouvir de pessoas que lutaram por oxigênio, UTI, atendimento, transporte pela vida de seus familiares. São muitas histórias de um povo que lutou muito e foi infelizmente derrotado por um genocídio.

Algumas ações para transformar as bibliotecas em centros de memória das vítimas da covid:

1) Criação de painel-memorial com os nomes e/ou as fichas de inscrição (onde houver) de usuários que faleceram vitimados pela doença. Esse painel também poderia listar nomes de pessoas que, embora não sendo usuários da biblioteca, moravam no entorno ou eram parentes de usuários. E também eventuais funcionários e parentes de funcionários da biblioteca que faleceram.

2) Criação de uma estante demonstrativa com livros, revistas e outros publicações sobre o tema, mesmo de materiais que têm caráter ficcional, mas que refletem o assunto.

3) Para bibliotecas que não tem nome, batizar os espaços com os nomes de pessoas destacadas na localidade que foram vítimas da pandemia

4) Desenvolvimento de projetos de memória sobre as vítimas, com salvaguarda de objetos pessoais, vídeos e fotografias dessas pessoas. Digitalização de acervos pessoais, mentoria para guarda de acervos digitais, formações sobre memória.

O legislativo local e nacional pode destinar recursos para que o memorial seja mais que placas simbólicas. Mas que seja uma ação de resgate da memória coletiva que foi se perdendo. As palmas para os profissionais de saúde, por exemplo, não se transformaram em piso para as enfermeiras. E isso se deve muito à pouca memória de como esses profissionais são importantes na saúde. Esses profissionais frequentaram nossas bibliotecas públicas, comunitárias, escolares, universitárias e especializadas.

Nossas bibliotecas podem contar as histórias de pessoas marginalizadas que foram alvo do encarceramento em massa, e sem julgamento foram condenadas à morte no sistema carcerário. Nós podemos devolver a dignidade da memória roubada. Assim como as Caravanas da Anistia restituíam a memória dos presos políticos, nós bibliotecários, nos nossos espaços de informação, nos nossos acervos podemos restituir a memória dos que se tornaram números.

Para que esse projeto não seja uma utopia é importante que ele se torne lei com previsão de destinação orçamentária para as bibliotecas. Para que os recursos sejam destinados para a aquisição de computadores, de digitalizadores, de provedores de internet, de aquisição de plataforma e toda a infraestrutura necessária para que as bibliotecas sejam provedoras da memória coletiva. O Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), que detém muito conhecimento da plataforma DSPACE, pode ser instado nessa legislação para criar a infraestrutura digital e o armazenamento dos dados.

Se pensarmos na disposição das bibliotecas na sociedade podemos vislumbrar que o nosso desejo como categoria é que o usuário transite por nossas bibliotecas. Nosso desejo é que as bibliotecas acompanhem o desenvolvimento das pessoas, da escolar na infância à pública na velhice. Os inúmeros órfãos da covid não terão seus pais ao lado para os acompanharem na hora do conto nas nossas bibliotecas. Muitos dos mortos e vítimas da covid tiveram suas trajetórias interrompidas, e nosso papel social é ao menos tentar amenizar as dores que vão além da perda, além do luto, mas que representam o silêncio, a ausência de punição, a dor da corrupção que causou as mortes, a dor do “não sou coveiro, tá?”.

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