O Natal nos remete a questões religiosas diversas, seja você religioso ou não, nascido no Ocidente ou não. E os bibliotecários, isentos de querer discutir ou se envolver com o assunto religião, inconscientemente, se esquecem das origens formadoras da profissão bibliotecária e a influência que o Cristianismo teve na biblioteconomia. Seria hoje a biblioteconomia laica?

Dos mosteiros e conventos com seus monges copistas (séculos V e VI), os bibliotecários herdaram o ar sagrado que por séculos influenciaram a profissão e o seu desenvolvimento. A atmosfera religiosa da biblioteca e até mesmo o uso da “beca” pelos “bibliotecários sacerdotes” fizeram sagrado este espaço de conhecimento. Com os livros sendo propriedades das ordens religiosas ricas, os que ficavam disponíveis ao público estavam sempre presos por correntes às estantes, e em latim, uma língua que poucos tinham entendimento fora da Igreja, pois o analfabetismo atingia a maioria absoluta da população daquela época.

A Bíblia copiada a mão, sacra, se tornou profana pela reprodução da imprensa de Gutenberg. Lutero, ao desafiar a Igreja com a tradução da Bíblia para outras línguas e a pregação da livre interpretação dela por cada um mediante sua leitura, fez com que o monopólio do saber saísse dos mosteiros, e por consequência criou-se um ar alfabetizador nas populações que queriam ler este livro sagrado. Agora muitos podiam lê-la em sua língua mãe. Porém, para a Igreja, estas leituras seriam atos pecaminosos capazes de levar ao julgamento do fogo do inferno.

A história mostra que a Igreja não perdeu as rédeas da educação e do conhecimento diante da revolução da imprensa. Sob sua tutela e das ordens religiosas, surgiram às universidades na Europa e suas bibliotecas onde o saber seria novamente “controlado”, agora de uma forma mais institucionalizada na sociedade, e com uma força ainda maior perante a família e o Estado. Ainda hoje a Igreja exerce em todo o mundo influências tanto gerenciais como educacionais nas universidades a que as diversas ordens religiosas estão ligadas, e também quanto às decisões que o Estado tem tomado a favor de questões religiosas direcionadas ao ensino secular e as bibliotecas públicas. Assim podemos visualizar uma futura pressão sobre as bibliotecas escolares, por consequência.

O silêncio oriundo do interior das Igrejas medievais e dos mosteiros, como respeito ao lugar sagrado, se transferiu para o ambiente das bibliotecas. Primeiramente como necessário para o trabalho dos monges copistas na leitura e na cópia dos livros considerados sagrados, pois a leitura se constituía no alimento espiritual dos monges e entrar em uma biblioteca equivaleria a adentrar em um ambiente sagrado, assim como hoje o silêncio nas bibliotecas é justificado para que ocorra o fluxo das atividades tanto dos leitores quanto dos bibliotecários.

Religião e bibliotecas no Brasil

O silêncio também acabou por fazer parte da constituição das bibliotecas brasileiras, com sentido de restrição e censura, onde não se permitia uma circulação de dizeres por parte dos sujeitos-leitores, com um sentido dominante relacionado às tensas relações de poderes religiosos e políticos, historicamente tecidos na constituição das bibliotecas européias e brasileiras.

A história das bibliotecas no Brasil tem início com a criação das bibliotecas monásticas, na Bahia e em outras capitais onde as primeiras instituições religiosas instalaram-se. Os bibliotecários-padres Jesuítas da Companhia de Jesus montaram bibliotecas nos colégios anexos aos conventos no século XVI, e outras ordens religiosas como: Beneditinos, Franciscanos e Carmelitas. Constituíram bibliotecas em escolas nos conventos, nos três primeiros séculos do período colonial. Com a falta de bibliotecas públicas, essas bibliotecas exerceram um grande papel na alfabetização do povo brasileiro até o final do XVIII. Estes espaços eram constituídos por preciosas coleções que abrangiam os mais diversos ramos do conhecimento como: livros de direito canônico e civil, teologia, de santos padres, história e geografia, livros de sermões, filosofia, literatura, além da Bíblia.

Hoje a discussão cresce sobre a disponibilização de livros ligados ao tema religião nas bibliotecas. Um exemplo é a Lei nº 5.998 de 01 de Julho de 2011, que obriga as bibliotecas públicas do estado do Rio de Janeiro a terem em seu acervo pelo menos um exemplar da Bíblia, sob pena de multa pelo seu descumprimento. A partir da aprovação desta Lei, deputados de outros estados se movimentam para estendê-la nacionalmente, o que nos faz refletir sobre a ética bibliotecária e a liberdade de escolha dos acervos pelos bibliotecários diante das necessidades de seu público. Além da questão maior, socialmente falando, sobre a ingerência da religião nas decisões do Estado e suas instâncias, ferindo assim o “suposto” Estado laico brasileiro democrático.

O outro lado da moeda

Se por um lado nos surpreendemos, negativamente ou positivamente, com a atitude do Estado de integrar a vida pública e privada no quesito fé através de leis, em outros somos surpreendidos com atos tais como os que ocorreram em fevereiro de 2012 quando quatro oficiais do Exército norte-americano e dois soldados alistados enviaram caixas com cópias do Alcorão de uma biblioteca e de uma penitenciária de guerra no Afeganistão para um centro de incineração na base da Bagram. Uma atitude antiética por parte do Estado americano, que se diz o mais democrático do mundo.

Nas bibliotecas públicas em nosso país, em geral, temos uma grande variedade de obras religiosas, sem a necessidade da obrigatoriedade do Estado, como: obras cristãs, a própria Bíblia e um sem número de obras espíritas. Certamente não temos muitos livros do Alcorão e nem da Torá, mas aquém de qualquer seleção de livros religiosos nestes espaços, o que nos deve mover são os sonhos de uma biblioteca cada vez mais plural, acessível e democrática, como por exemplo, as iniciativas da Biblioteca Digital Mundial e muitas outras, exceto a Biblioteca do Vaticano e seus “eternos” arquivos secretos que há centenas de anos nos são privados.

As classificações biblioteconômicas, Classificação Decimal Universal e Classificação Decimal de Dewey, carregam em suas concepções influências diretas do Cristianismo e do Ocidente nas suas facetas “religião”. Isso tem sido alvo de diversas críticas pelos privilégios não dados as outras religiões consideradas “menores” ou fora do “círculo civilizado ocidental”. Esses críticos, ao longo dos anos, fizeram ressalvas na medida do possível, mas diante da pluralidade do quesito fé, estes instrumentos ainda precisarão de ajustes para tratar deste assunto que promete estar presente cada vez mais nos diversos ambientes de bibliotecas, principalmente nas bibliotecas escolares com a pressão cada vez mais forte para o retorno do ensino religioso nas escolas do País.

Assim, a laicidade da biblioteconomia e das instituições onde o profissional bibliotecário atua, ou atuou antigamente, parece não existir. Sobretudo se levarmos em consideração os tempos remotos, por causa de sua concepção como espaço sagrado ligado à Igreja, e hoje diante das decisões que o “poder instituído” do Estado as impõem, atingindo diretamente a liberdade de atuação do profissional bibliotecário em seu Código de Ética do Conselho Federal de Biblioteconomia, que prega como direito deste “exercer a profissão independentemente de questões referentes à religião”. Portanto, o bibliotecário, acaba ferido no seu direito quando, por “força maior”, trabalha com ferramentas de classificação do conhecimento estritamente ideológicas, e em um segundo plano, vêem seus espaços de trabalho atingidos por leis autoritárias do Estado, que cada vez mais não se mostra laico.

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