RIO – O dia do bibliotecário se aproxima e com ele a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre os problemas que aflige a categoria. Num país avesso à leitura, aos livros e às bibliotecas, não é estranho que seus profissionais também sejam desconhecidos e por vezes marginalizados. Marginalizados não só em seu cotidiano técnico-profissional, como em suas lutas políticas, as quais, em geral, estão relacionadas à questão da democratização da informação. Nesse cenário, figuras notáveis se destacam como verdadeiros guardiões dessa luta, como é o caso de Ana Virgínia Pinheiro, bibliotecária-chefe da Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional e professora de História do Livro na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Suas palavras sempre motivadoras são um ânimo para os desmotivados profissionalmente: “Gosto de dizer que a Biblioteconomia é um empoderamento porque o conhecimento dela fornece uma visão de cima; você está quase na posição de Deus pessoalmente”, ressalta. Nessa entrevista, Ana Virgínia fala de suas motivações profissionais, tanto como bibliotecária, como professora, do trabalho com Obras Raras e motiva os que estão em dúvida sobre que profissão assumir.

Chico de Paula: Professora Ana Virginia, como a senhora se apresenta?

Ana Virginia: Eu me apresento sempre como bibliotecária. Faço bastante questão, que as pessoas de modo em geral quando não me conhecem, quando dou uma entrevista ou apresento um trabalho, de ser referenciada como bibliotecária. É uma profissão importante e de grande contribuição para a sociedade e pouco conhecida. Então se tenho a oportunidade de acesso à mídia para divulgar o trabalho que faço, sempre encaro essa oportunidade como uma chance de divulgar a profissão.

C. P.: Como surgiu o interesse pelos livros?

A. V.: Desde criancinha gosto de livros. Eu era uma menina muito tímida, meu mundo era muito fechado em mim mesmo e frequentava biblioteca da escola pública onde estudei. Tinha uma biblioteca sensacional com os clássicos da literatura. Eu era de uma família com o poder aquisitivo muito baixo, então os livros não eram uma opção de compra no final do mês e a minha chance de ter acesso aos livros era através da biblioteca. Eu tinha um encantamento com o trabalho do bibliotecário porque eles viviam no meio dos livros. Desde pequena achava que esse era o trabalho que eu queria fazer na vida. A bibliotecária não só ficava zelando pelos livros, como também tinha um empenho de divulgar os livros para as crianças e os meninos da escola. Eu fui atraída por esse trabalho dela e isso teve uma importância muito definitiva na minha infância. Pensei em fazer isso e mudar a vida das pessoas. Fui pensando nessa possibilidade e conforme a vida foi passando, pensei em enveredar pelo caminho do jornalismo, mas a Biblioteconomia apareceu novamente na minha vida em outros momentos pesquisando em bibliotecas. A Biblioteconomia foi minha primeira opção quando prestei vestibular em 1976. A segunda opção foi uma profissão que considero bastante semelhante à Biblioteconomia. Foi a Arqueologia, de descobrir e fazer descobertas. Assim passei na primeira opção.

C. P.: Onde ficava essa biblioteca tão encantadora que fez a senhora se apaixonar pelos livros?

A. V.: Olha, eu nem sei se ainda existe porque não milito no universo da biblioteca escolar, mas era na Escola México que ficava na Rua da Matriz, em Botafogo [bairro da Zona Sul do Rio]. Era uma escola que atendia a comunidade do Morro Dona Marta [comunidade localizada entre os bairros de Laranjeiras e Botafogo]. Eu morava na Rua Mundo Novo, próximo a Rua Marquês de Olinda e caminhava até a Rua México em Botafogo. Na época era uma escola que atendia pessoas de todos os poderes aquisitivos porque a escola pública nos anos 60 era uma referência de ensino. Então lembro que ao lado da minha carteira em sala de aula tinham meninas e meninos de famílias abastadas estudando junto com crianças que moravam na comunidade do Morro Dona Marta, em Botafogo e adjacências. Era uma biblioteca que tinha obras de Monteiro Lobato, Machado de Assis, Literatura nacional e estrangeira. Lembro que era uma literatura atualizada, com livros em ótimas condições, encadernados e ilustrados. Eu me encantava. Levava os livros para casa rotineiramente. Houve um período em que eu já tinha lido todos os livros da biblioteca e a bibliotecária da época achou isso uma coisa surpreendente, então ela me avisava toda vez que a biblioteca adquiria um livro novo e eu ficava sempre atualizada.

Emília Sandrinelli: Professora, você poderia nos contar um pouco da sua trajetória na área da Biblioteconomia? Quando você começou a se interessar por Obras Raras?

A.V.: Entrei na faculdade em 1976 como estudante de Biblioteconomia. Em pouco tempo me tornei monitora de Catalogação da professora Déa Coutinho Amadeo e fui estagiária da Biblioteca do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), que na época era biblioteca da Escola de Biblioteconomia e a UNIRIO se localizava no Centro do Rio de Janeiro. Posteriormente colei grau e fui trabalhar como bibliotecária na Universidade Santa Úrsula, que tinha um curso de Biblioteconomia, mas surpreendentemente me contratou para trabalhar na biblioteca de Biologia. Era a única biblioteca setorial. Eu não tinha muito fascínio pela Biblioteconomia universitária porque era pauleira. O estudante universitário é um usuário difícil e complicado de treinar. Na época resolvi cursar Direito simultaneamente. Foi um curso que não tive a oportunidade de concluir, mas era uma época de aumentos e gatilhos salariais em que periodicamente funcionários eram demitidos. Em um desses gatilhos a Santa Úrsula demitiu uma série de bibliotecários ficando apenas com os mais antigos da casa. Eu e todos os bibliotecários que trabalhavam na biblioteca de Biologia saímos nesse processo e a biblioteca ficou acéfala durante um tempo. Mandei meu currículo para a Biblioteca Nacional que na época estava contratando bibliotecários para trabalhar com acervo antigo. Fui selecionada, porque como estudava no Direito a pessoa do processo de seleção achou que eu teria alguma facilidade com o Latim. Comecei a trabalhar na Biblioteca Nacional em 1982 com livros antigos e me encantei porque para mim foi o elo perdido.

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E. S.: Foi amor à primeira vista.

A. V.: Nossa, porque eu trabalhava com autores que eram vivos ou viveram na minha geração no acervo corrente de uma biblioteca universitária. Aqui na Biblioteca Nacional, nesse trabalho especificamente, coordenado por uma bibliotecária que considero modelar, uma pessoa com quem aprendi livros raros, Celi de Souza Soares Pereira, aposentada há muitos anos. Descobri a pesquisa, toda a Biblioteconomia. Tudo que aprendi na faculdade era perfeitamente adaptado ao universo do livro raro: a pesquisa bibliográfica, o serviço de referência, a padronização de autoridades. O domínio de catalogação e classificação que aprendi no curso de Biblioteconomia da UNIRIO foi um diferencial no trabalho que eu fazia. Foi fácil para eu aprender a catalogar livros raros porque tive uma boa formação na catalogação de acervos correntes. Então foi amor a primeira vista. Tive um contato imediato com o passado. Os livros falavam comigo. Estava manuseando livros de trezentos e quatrocentos anos de pessoas que viveram nesse período e essas pessoas estavam diante de mim passando suas ideias através dos livros. Isso trás uma sensação de imortalidade, de significado da Biblioteconomia. Estava manuseando aqueles livros em 1982, como estou fazendo agora, porque bibliotecários trabalharam antes de mim para que aquele livro chegasse às minhas mãos.

E. S.: E nesse momento tão apaixonada pelas Obras Raras. Quando foi que você decidiu ser professora de Biblioteconomia?

A. V.: Foi quase um acidente. Abriu concurso para professor da História do Livro e das Bibliotecas na UNIRIO. A chefe que eu me reportava, que era coordenadora geral da área em que eu trabalhava, Esther Caldas Bertoletti, aposentada e não é bibliotecária, mas foi coordenadora de um projeto importante intitulado Resgate, em que resgatou boa parte da memória nacional que está em Portugal e vice-versa, trocando informações através de microfilmes e digitalização. Ela me alertou sobre o concurso para professor e insistiu para eu fazer devido ao conhecimento que possuo sobre a área e o treinamento que dava para profissionais a respeito. Eu não fiquei motivada porque teria que voltar mais tarde para casa. O curso na época era na parte da manhã. Não existia curso noturno ainda e eu tinha que ficar na biblioteca até mais tarde para repor as horas que ficaria fora dando aulas pela manhã. A Esther dizia que eu deveria fazer porque a academia fornece muito mérito ao discurso científico de uma pessoa e eu iria ter a oportunidade de formar, qualificar e mostrar para as pessoas o quanto a Biblioteconomia é importante. Você vê muito pouco esse discurso no curso de Biblioteconomia, e, além disso, sou uma bibliotecária que exerce a profissão. Isso é importante. Eu fiquei meio sem chão em dizer para ela que não estava motivada. Acabei fazendo o concurso e fui aprovada. Comecei a dar aula e fui ficando encantada. Meu horário de dar aula era 7h30. Eu não existo na parte da manhã. Acho que eu dava aula dormindo, porque saia do curso e não lembrava se tinha dado aula. “Qual foi o tema que abordei?” E os alunos diziam que a aula foi ótima porque eu relatava muito a minha experiência. Quando foi oferecido o curso noturno fui a primeira a dizer que me motivava porque precisava de um número significativo de professores para dar aula à noite, porque os professores eram todos contratados para o horário da manhã. Eu e alguns professores nos candidatamos para dar aula no horário da noite. Acho até que o curso noturno existe por minha causa e de alguns professores que se dedicaram a dar aula à noite, alguns davam aulas de manhã e a noite. Eu lembrei que fui aluna do horário noturno. Então achei que poderia contribuir para que muitas pessoas que trabalhavam no horário da manhã poderem fazer o curso à noite. Muitas vezes é desesperador sair da Biblioteca Nacional no meio de uma atividade e ao pé de uma descoberta sensacional travando uma batalha cientifica com o pesquisador para descobrir uma coisa que ele quer e está no meu horário. Tenho que sair daqui correndo e não consigo largar. Acabo chegando atrasada na UNIRIO. Quando tenho que ficar na universidade, se deixar fico até mais tarde orientando aluno. Cansei de sair da UNIRIO depois das 23h, porque também é uma atividade encantadora dar aulas. Como bibliotecária, é um constante aprendizado.

C. P.: Em vista de tudo isso que foi dito, como a senhora avalia a Biblioteconomia atualmente?

A. V.: Quando eu era mais jovem ouvia bibliotecários dizendo que a Biblioteconomia era uma ciência auxiliar. Depois diziam que a Biblioteconomia era a profissão do futuro. Gosto de dizer que a Biblioteconomia é a profissão do passado e do presente, primeiro porque é uma das profissões mais antigas do mundo. O conhecimento cientifico não estaria no nível que está hoje se não fossem as bibliotecas e o trabalho dos bibliotecários. Nós temos acesso a textos de Filosofia, clássicos da Filosofia que foram manuscritos sobre papiros, pergaminhos. Foram produzidas cópias, depois manuscritas sobre pergaminhos pelas bibliotecas medievais. Depois essas cópias foram impressas para as bibliotecas universitárias e foram feitas edições sucessivas através de editoras particulares, comerciais e de instituições públicas. Todas essas reproduções foram passando ao longo do tempo. Muitas ficaram pelo caminho ou se perderam em bibliotecas incendiadas e censuradas. Essas que nos alcançaram, porque foram salvaguardadas em bibliotecas. Quando alguém me pergunta o que a Biblioteconomia faz: “se guarda livros? É esse o seu trabalho? Guardar livros?” Eu respondo: “é exatamente esse o meu trabalho”. Agora utilize o verbo guardar no contexto científico. Vamos traduzir para o salvaguardar, porque bibliotecários guardaram os livros ao longo dos séculos, hoje pesquisadores em todas as áreas do conhecimento tem a oportunidade de fazer a ciência avançar. Considero a Biblioteconomia sempre como a profissão e a ciência do presente. Vejo várias áreas do conhecimento aparecendo como modas em torno da Biblioteconomia. Passei por um longo período em que bibliotecários tinham vergonha em dizer que eram bibliotecários e se apresentavam como cientistas da informação, como gestores da informação. Prefiro dizer que o bibliotecário é um gestor da ciência. O pesquisador chega à biblioteca sem saber o que exatamente ele quer e é exatamente assim que ele precisa chegar, porque eu estudei para dizer a ele o que quer e ajudar a encontrar ou descobrir efetivamente o que ele quer. Nesse momento falta bibliotecário consciente deste poder, porque isso é um poder. O curso de Biblioteconomia te habilita ao exercício desse poder. Eu digo que habilita e não forma, porque em Biblioteconomia, como em outras áreas do conhecimento, a Medicina, o Direito, ela é uma qualidade da pessoa. O curso lapida o talento. Muitas vezes esse talento é descoberto no curso. Talvez por isso seja necessário no primeiro semestre da graduação um estimulador forte para manter o individuo no curso. Vejo alunos que me falam: “estou quase desistindo”. Eu falo: “me dá uma oportunidade, me dá uma chance de te convencer, não saia do curso, espera a disciplina História do Livro e das Bibliotecas (HLB)”. Porque acho que é uma disciplina encantadora e parece que a pessoa viaja um pouco no tempo. “Depois que você fizer HLB, vem conversar comigo e dizer se realmente quer deixar o curso. Eu ainda vou tentar outras maneiras de te convencer a ficar”. Porque se você não é encantado pela Biblioteconomia especificamente, até nas disciplinas mais técnicas como, catalogação, classificação e indexação, que no meu ambiente de trabalho são contextos que fazem parte do exercício da Biblioteconomia de livros raros, não são pontos principais – catalogar, classificar e indexar – não é a minha atividade fim; minha atividade fim é revelar o conhecimento que está no livro antigo para o pesquisador. Então a catalogação, classificação, referência são recursos que utilizo para encontrar isso com maior velocidade. Se o individuo não está motivado por esses procedimentos, então que se motive pelo poder, porque a Biblioteconomia é um exercício cotidiano de poder. O poder de conhecimento, de acesso, da descoberta. Esse poder é revelador. O empoderamento mesmo da pessoa. Tenho usuários que me apontam como a bibliotecária deles. Mantenho expectativas que em pouco tempo os pesquisadores e pessoas simples comecem a identificar os seus bibliotecários, porque as pessoas já identificam seus médicos, seus advogados, seus dentistas. Esse sentido de posse significa “eu não vivo sem essas pessoas”. Vai depender muito de nós bibliotecários, de promovermos essa visão social do bibliotecário como um indivíduo necessário no cotidiano das pessoas. Para descobrir um conhecimento cientifico, uma receita, um endereço, uma pessoa, o caminho é efetivamente a Biblioteconomia.

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E. S.: A Revista Biblioo tem usado com bastante frequência o termo Nova Biblioteconomia. Foi um termo introduzido nas nossas pautas pela biblioteca comunitária Solano Trindade, de Duque de Caxias/RJ, que nos convidou para uma palestra com esse tema. Desde então temos trabalhado em cima desse termo pensando em uma nova biblioteconomia mais contextualizada e preocupada com questões sociais. Gostaria de saber sua opinião sobre esse termo, se existe uma nova biblioteconomia e se existe, como ela é? Qual a nova cara dela?

A. V.: Eu já vi tantos termos para a Biblioteconomia associada às novas tecnologias, como Biblioteconomia 2.0. Como citei anteriormente, a Biblioteconomia do futuro. Trabalhando com livros raros veremos isso folheando catálogos de exposição de Biblioteconomia de livros raros que montei aqui por ocasião do centenário da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO. Você vai constatar que em momentos da história a Biblioteconomia esteve muito próximo do seu usuário final, que é o cidadão, a pessoa que entra em uma biblioteca por uma necessidade cultural, cientifica ou exclusivamente de lazer. Pessoalmente como bibliotecária e exercendo a profissão há mais de trinta anos, vejo essas terminologias como uma questão de moda. Ela será nova por quanto tempo? Ela será sempre a nova Biblioteconomia? A Biblioteconomia é uma ciência que evolui como qualquer outra profissão. Não quero tecer comentários sobre a terminologia, apenas questiono o uso dessas terminologias que nas ciências consagradas você não tem isso. Você vê nova Medicina? Novo Direito? A nova Engenharia? É sempre Direito, Medicina, Engenharia, sempre História. Você até vê a nova História, mas na verdade é um resgate de uma prática de uma visão da História do início do século XX e que apareceu no Brasil nos anos 80. Questiono o uso dessas terminologias porque a Biblioteconomia é essencialmente uma ciência voltada para a comunidade que ela serve. Uma característica da Biblioteconomia é que os efeitos do nosso trabalho estão à média e longa distância. Raramente como bibliotecário você consegue visualizar a consequência do seu trabalho. Quando você atende um advogado que vem pesquisar, por exemplo, um determinado registro, um tombamento de uma fazenda para alguém e ele precisa provar que aquela fazenda foi tombada no nome de alguém, porque tem alguém reivindicando a posse, ele encontra e você não sabe a consequência disso, o efeito social disso. Poucas vezes nós temos a oportunidade de ver a consequência dos nossos atos. Acredito que são sempre positivos porque muitas vezes o pesquisador não volta. Então digo não volta porque ele está satisfeito. Alguns anos um pesquisador pesquisava livros de horas. Eu trabalhava na divisão de manuscritos da Biblioteca Nacional. Os livros de horas são livros do século XV, manuscritos, iluminados, miniados. É um livro para pesquisador totalmente especializado porque é um livro escrito em Latim e gótico. O pesquisador era um historiador da arte e tinha dificuldades para entender a estrutura do livro de horas. Fui chamada para atendê-lo porque tinha acabado de publicar um trabalho sobre livros de horas. Expliquei para ele e conversamos mais de duas horas sobre a estrutura, sendo um livro de devoção privada precedido tradicionalmente por um calendário, com uma sequencia de orações contando a história de Maria (mãe de Jesus) e os mistérios gozosos e dolorosos da vida de Maria com várias orações. Mostrei um livro de horas produzido por uma mulher – é sempre um exemplar único quando manuscrito. Era um presente dos maridos para suas esposas. Normalmente um presente de casamento produzido no momento que o rapaz nascia. Sendo um filho varão, a família abastada mandava produzir um livro de horas no mosteiro, normalmente em um mosteiro beneditino. O pesquisador ficou encantado com isso. Passaram-se meses e um dia apareceu um pacote em cima da minha mesa; abri o pacote e tinha muitos recortes de jornais, fotografias, uma carta que me levou as lágrimas. Porque eu vivia em crise aqui pensando: “trabalho em uma instituição de elite, atende ao pesquisador que é um mestrando, doutorando e pós-doutorando, localizada no Centro da cidade em uma praça cercada de moradores e meninos de rua, de mendigos. Qual é a função social do trabalho que eu faço? Onde está o resultado desse trabalho que faço?” No momento que eu li aquela carta, compreendi o significado desse trabalho de um modo que me tocou profundamente e enriqueceu a visão que eu tinha da Biblioteconomia. Esse professor de história da arte fazia um trabalho com comunidades prisionais na região Sul do nosso país e ele dava aula de história da arte em presídios no Paraná. Ele me mostrou na carta em fotografias que livros de horas tinham sido produzidos pelos internos. Na carta ele dizia que no calendário precedido no livro de horas tinham duas datas marcadas: era o dia e o mês que aquele indivíduo tinha sido incorporado àquela comunidade e o dia e o mês que ele voltaria a sociedade. Cada um escolheu o tema do seu livro de horas. Dedicado a história de um filho ou de uma mãe e sua própria história, com orações que eles faziam durante o dia dentro de suas religiões ou não. Então parei e pensei: “a minha pesquisa de livros de horas, o meu conhecimento de livros de horas estão ajudando pessoas que se encontram em uma comunidade prisional a quilômetros daqui”. Olha o efeito do trabalho do bibliotecário. Isso mudou e enriquece a minha visão da Biblioteconomia porque me deu o sentido do que eu poderia chamar de nova Biblioteconomia. Agora isso tem quinze anos. Esse sentido de uma Biblioteconomia social, quando assumi a divisão de obras raras em 2004, trabalho livros raros com essa visão. Montamos exposições periódicas com um discurso bastante coloquial. Vocês podem ver isso em catálogos de Biblioteconomia porque nós atendemos estudantes de nível fundamental e médio como visitantes. É o nosso usuário potencial. Ele vai ser usuário da biblioteca nacional. Quando ele visita a biblioteca, seja ele de escola pública ou particular, tem um sentido de pertencimento. É isso que a Biblioteca Nacional tem. Escolhemos temas que despertam o interesse do pesquisador em nível de pós-graduação, mas a curiosidade da criança também ou da pessoa comum que anda pelas ruas do Rio de Janeiro. Temos exposições sobre bíblias, monstros, Biblioteconomia, esportes. Pegamos pontos bem opostos dentro de um tema para mostrar que é possível pesquisar isso em livros raros e no acervo de memória. Essa questão de terminologia eu respeito quem cria, mas acho que tem muito de moda. Vamos resgatar um pouco da história da Biblioteconomia e vamos ver essas práticas que parecem novidades na verdade fazem parte da história da Biblioteconomia. Em algum momento nós perdemos essa identidade e que precisamos resgatar.

C. P.: Estamos nos aproximando do dia do bibliotecário e a senhora gostaria de deixar alguma mensagem para os bibliotecários e os estudantes?

A. V.: Prefiro deixar uma mensagem para quem ainda não sabe o que vai ser; para quem tem dúvida. Não tenha dúvida! A profissão do presente é a Biblioteconomia. Ela tem a possibilidade de mudar a sua vida completamente porque ela te mostra a possibilidade de organizar o conhecimento. Ela possibilita uma visão de mundo diferenciada. Gosto de dizer que a Biblioteconomia é um empoderamento porque o conhecimento dela fornece uma visão de cima; você está quase na posição de Deus pessoalmente. Acredito que Deus era bibliotecário porque ele organizou o mundo em sete dias, um recorde. A Biblioteconomia muda a sua vida. Como é uma profissão do presente é difícil que hoje e nos próximos dez anos não ocorram concursos públicos para o exercício da profissão. A oportunidade de concurso é o sonho dourado de todas s pessoas hoje que tentam mudar a sua vida. Uma característica da Biblioteconomia é ser bastante hospitaleira. Não existe a possibilidade no universo da Biblioteconomia de uma pessoa ficar constrangida no ambiente da Biblioteconomia. Ela recebe por igual o individuo que vem de uma comunidade carente ou o individuo abastado; coloca essas pessoas na mesma sala de aula e oferece o mesmo nível de conhecimento. A capacidade de aprendizado depende exclusivamente de você, não de suas origens, de suas possibilidades em termos de poder aquisitivo, porque a Biblioteconomia muda a sua vida. Em quatro anos, no máximo cinco anos, você pode dar um salto em sua vida, mudar completamente não só no ponto de vista intelectual, mas no ponto de vista financeiro. Eu poderia dizer que a Biblioteconomia me salvou, mudou a minha vida em nível de recursos financeiros e intelectuais. Dificilmente ela transforma alguém em milionário, mas posso garantir que ela vai te dar uma vida muito boa. A Biblioteconomia é a ciência do presente e efetivamente a ciência do futuro.

Confira aqui o Catálogo de Livros raros da Biblioteconomia, cedido pela professora para divulgação na Revista Biblioo.

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