Por Katya Braghini, Paula Maria de Assis, Marianna Braghini Deus Deu, Andrezza Silva Cameski, do Outras Palavras.
Estudar xingamentos não é difícil. O xingamento é anúncio simples, drástico, um slogan que tenta demarcar rispidamente um ponto de vista, uma forma de ver o mundo, uma representação construída sobre pessoas, coisas, instituições. Um xingamento corta a paisagem e tenta ser a verdade. Recruta as nossas faculdades de atenção.
Chamar alunos que ocupam escolas de “parasitas sociais”, porque eles simplesmente não aceitam o novo plano de governo do estado de São Paulo chamado “reorganização escolar” não é só injusto, já que eles estão em conformidade com o direito que lhes pertence. Representa também, muito claramente, o repúdio de uma parcela da sociedade paulista diante dos princípios da dignidade humana estabelecidos em um estado democrático de direito; aquilo que delimita as regras de exercício de poder do estado diante de sua própria administração.
Atentos à ordem e à harmonia social como expressão máxima da sensibilidade política, ignoram a contradição e as lutas sociais como condição essencial do sistema político que os rege; espelham o seu desconhecimento que é distribuído como verdade absoluta; regem o absurdo como uma contra-educação.
A ofensa aos alunos é como a “escola do mundo do avesso”, mundo de pernas para o ar, que na poética de Eduardo Galeano nos ensina a “padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo”. Nessa escola, o que vale é o crime das aulas de impotência, amnésia e resignação. Ou, como diz o próprio autor, se Alice voltasse, veria pela janela o mundo de cabeça para baixo.
Porque na escola de Galeano, alunos têm cursos de intolerância, de injustiça, machismo, racismo. Têm aulas de impunidade e de opressão. Esse espaço cruel, de mundo virado, mostra-se como o mais democrático dos locais, porque está em todos os lugares. Trata-se da aceitação geral de que pessoas são mercadorias e, desta forma, são governadas.
Essa sociedade é um cenário pessimista. Ataca alunos que defendem escolas. No livro, a esperança surge pelo combate de grupos contrários a essa lógica que repete o xingamento, jogando o certo no errado e fazendo do errado o certo.
No dia 14/11/2015, a página do G1 descrevia o orgulho de alguns pais diante da reação dos filhos que tentam impedir o fechamento de suas escolas. O Sr. Rabsaque Moreira Cruz, pai de aluno da EE Fernão Dias Paes – uma das primeiras escolas ocupadas – dizia-se orgulhoso, julgando que a “semente da mudança” na educação do estado seria feita pelos próprios alunos do sistema público.
Entretanto, os comentários das notícias cortam essa alegria, dizendo que pais e alunos “são massa de manobra de uma esquerda invasora das escolas”; “alunos deveriam estudar em vez de ocupar o tempo vagabundando em invasões”; que a culpa é da “maldita inclusão digital” que permite o contato dos jovens para fazer “política ordinária”; chamam a polícia e pedem “borrachon nos caras”; pedem “São Paulo para os paulistas” em alusão ao número de migrantes nas instituições; ofendem alunos chamando-os de “parasitas sociais” etc..
Xingar nada esclarece sobre quem são esses jovens e suas famílias, e conta menos ainda sobre o porquê de se opor a uma ideia que é divulgada como certa e racional. Afinal, quem são eles? O que querem? O que os mobiliza?
Breve panorama da situação paulista – Informações e dados
“Reestruturar” a rede de ensino significa separar os estudantes por idade e, para isso, fechar algumas unidades escolares tidas como ociosas. Cada escola, segundo a proposta, deverá ter exclusivamente um dos ciclos de ensino: Fundamental I, Fundamental II, ou Ensino Médio.
De acordo com o Censo Escolar MEC/INEP (2013), São Paulo com a sua rede de ensino mantinha 5.585 escolas. Após a divulgação do plano de reestruturação, as escolas seriam redimensionadas da seguinte maneira: 1.443 escolas de ciclo único; 3.186 escolas com dois ciclos e 479 escolas com três ciclos.
A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) anunciou também que a reorganização do ensino escolar afetaria 94 escolas que passariam a outras funções: 25 na capital, 20 na região metropolitana, 45 no interior e 4 na Baixada Santista. Outras 28 escolas estão com destino incerto. Desse total, indicam que 66 prédios poderão abrigar unidades de ensino técnico ou seriam transformadas em creches e escolas municipais.
Ao todo, o plano pretende “liberar” 1,8% das 5.147 escolas do estado. No total, 1.464 unidades estão envolvidas na reconfiguração, mudando o número de ciclos de ensino que serão oferecidos. A SEE-SP divulga que 311 mil alunos serão remanejados, do total de 3,8 milhões de matriculados. A mudança atinge ainda 74 mil professores.
Quadro 1 – Reorganização das escolas públicas no estado de São Paulo | ||
Atualmente | Após o plano | |
Um ciclo | 1.443 | 2.197 |
Dois ciclos | 3.209 | 2.635 |
Três ciclos | 495 | 315 |
Fonte: Secretaria da Educação de São Paulo – São Paulo (SEE-SP) |
As escolas serão separadas, em sua maioria, em unidades de Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano); Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano); e Ensino Médio. O número de escolas com ciclo único subiria de 1.443 unidades para 2.197. As escolas do estado com apenas um ciclo contabilizariam 43% das escolas. O número de escolas com dois ciclos cairá para 18%, indo de 3.209 para 2.635. Já a quantidade de escolas com três ciclos cairá para 495 para 315 unidades – contabilizando uma queda de 36%. Segundo a SEE-SP, há 2.956 salas que estavam inativas e a promessa é a de que elas sejam utilizadas.
Os argumentos do governo do estado para a reestruturação
De acordo com a SEE-SP, a ideia de reestruturação acontece por conta de uma redução na demanda por escolas. Desde os anos 1990, o número de alunos caiu de 6 milhões para 3,8 milhões nos dias atuais. O fato parece motivado pela redução da natalidade e pela absorção de alunos pelas redes municipais e particulares.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE) mostra que o total de crianças nessa faixa etária foi reduzido em 10%, entre 2001 e 2014. No ano de 2001, havia 10,4 milhões; já em 2014, o número caiu para 9,4 milhões. Segundo a amostragem, esse fenômeno aconteceu por conta da redução na taxa de fecundidade no país, diminuindo o contingente populacional em tempo de “idade escolar”. A amostragem confirma a indicação, já que havia 8,4 milhões de matriculados nos ensinos Fundamental e Médio no estado de São Paulo, em 2007, ao passo que esse número passou a 7,5 milhões em 2014.
O governo do estado também aponta o Sistema de Avaliação das Escolas Estaduais (IDESP) que tem por objetivo estabelecer as metas de qualidade educacional em São Paulo, argumentando que as escolas de ensino Médio com três segmentos tiveram desempenho 7,8% inferior à média do estado em 2014. Por outro lado, segundo a avaliação, as escolas de segmento único ficaram 18,4% acima.
Essa estatística é favorecida nos discursos pela ideia de que os países que seguiram essa tendência de privilegiar as escolas com bons rendimentos separadas por ciclo tiveram os mesmos procedimentos que o estado de São Paulo à caça de bons resultados em indicadores internacionais.
Portanto, os argumentos para a alteração da realidade das escolas se concentram nos aspectos descritos a seguir. Primeiro, que os objetivos de cada escola são traçados levando em consideração o desempenho dos alunos no Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) e na Prova Brasil, também pensando no fluxo escolar de cada ciclo. Por esse motivo, a unidade escolar passa a ter uma meta diferente para cada ciclo que oferecer. Depois, a necessidade de modificação na estrutura escolar seria natural diante da alteração numérica da demanda de alunos.
Percebe-se que parte da imprensa paulista concorda com esse argumento. Eduardo Zylberstajn, em 19/11/2015, escreveu o artigo “Faz sentido fechar escolas em São Paulo?” no Estado de S.Paulo. O jovem economista julga que “nada mais lógico do que planejar a redução do número de vagas na rede pública, uma vez que a tendência demográfica observada para o Brasil não deve se alterar no curto prazo”. O artigo também coloca a insatisfação dos estudantes e de familiares com algo muito mais intrigante, do que legítimo. Pergunta: “por que toda essa confusão”?
Dimensões pouco esclarecidas do plano
A respeito das explicações da SEE-SP, a interpretação da Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (Unicamp), em documento de 21/10/2015, apresenta outra história. De acordo com a moção, o governo não está exatamente realizando uma “reorganização” visando à melhoria da educação oferecida pela rede estadual. Diz que a reforma administrativa visa, antes de tudo, “reduzir gastos da educação e abrir espaço para parcerias com o setor privado”.
O documento indica que os processos apresentados no plano estão explícitos no Projeto de Plano Estadual de Educação, encaminhado pelo executivo estadual para a Assembleia Legislativa de São Paulo. Diz que a meta 21 de tal documento busca promover “até o final da vigência do Plano Estadual de Educação (PEE), a municipalização dos anos iniciais do Ensino Fundamental”. A ideia seria completar o processo de municipalização do ensino Fundamental já estabelecido. O mesmo documento apela às pesquisas acadêmicas que já entendem a municipalização propagada como um “terreno fértil” para os processos de privatização da escola pública, representados pela aquisição dos denominados “sistemas de ensino”.
Trata-se da aquisição pelo estado dos pacotes oferecidos por grandes editoras ou trustes montados por corporações de comunicação, com seus braços editoriais didáticos. Elas oferecem o sistema de ensino e se prontificam a formar grandes levas de estudantes a partir das determinações de indicadores apresentados pelas tecnologias de avaliação educacional. Cartéis desse tipo, além de capitalizar sobre o ensino público, promulgando uma espécie de inovação tecnológica como o caminho inevitável da educação contemporânea, dinamizam a ação terceirizada da formação de professores, estabelecendo parâmetros curriculares que se sustentam pela contínua aquisição de materiais, objetos, tecnologias que fazem o aparato todo funcionar. São pacotes e serviços completos que incluem “consultorias especializadas”, treinamentos, modelos de avaliação e aulas pré-moldadas, gerando contratos de gerência privada para as escolas de ensino público.
O repúdio da Faculdade de Educação da Unicamp denuncia a associação direta do projeto de reestruturação das escolas a um pareamento de interesses entre o sistema de ensino público paulista com interesses privatistas da educação, por outras vias. Destaca-se a ideia de apropriação dos espaços e equipamentos públicos e privados, buscando a extensão do tempo de permanência do aluno na escola, no sentido de parceria direta. Outro apontamento diz respeito à permanência do léxico empresarial que permeia proposta. Imagens de flexibilização curricular associada às parcerias privadas para a reorganização do ensino e a relação direta entre o acesso ao conhecimento ao favorecimento da empregabilidade por meio de competências e habilidades se destacam no plano. Essa ideia que associa a aquisição de conhecimentos com empregabilidade não é novidade nos documentos paulistas, desde os anos 1990. Tal argumentação, concretizada como um fato, está naturalizada. Todavia sobre ela recaem as críticas diante da aparente boa vontade do governo do estado de São Paulo em melhorar a qualidade na educação a partir da concepção de escolas reordenadas por ciclos.
Isso somado ao fato que o governador Geraldo Alckimin, pelo segundo ano consecutivo, diminuiu a participação da Educação no orçamento total na proposta de orçamento para o ano de 2016. Os recursos para a Secretaria da Educação previstos somam R$ 28,4 bilhões. Isso representa 13,75% do total. A previsão aponta para 13,5% menos com custeio da educação e 3,5% com pagamento de profissionais. Lembrando que não houve reajuste no salário dos professores mesmo com a greve deste ano. O custeio inclui toda manutenção das atividades vinculadas à pasta e será R$ 1,5 bilhão a menos. Para o gasto com pessoal, a previsão é de menos R$ 645 milhões. Esses valores foram atualizados pela inflação (OESP, 28/11/2015).
Em outras palavras, a “reorganização da escola” cria impactos profundos na população que não admite a possibilidade de fechamento de escolas, repudia a transferência dos filhos para locais mais distantes da residência, desacredita no poder público quando este promete a absorção dos docentes e funcionários em escolas remanejadas. A migração de um grande contingente de estudantes incomoda localmente o cotidiano das famílias. Há pouca explicação sobre o que será feito com o patrimônio público. Menos informação ainda sobre os processos de privatização e terceirização do ensino. Gerar preocupação na população e alimentar a desinformação ao determinar um deslocamento em massa de alunos de forma súbita foram ações planejadas que não contabilizaram a contrariedade social expressada na luta política. E, neste momento, estão tratando com um novo e surpreendente movimento estudantil que deixa a sua marca na história do país.
Para finalizar, circula na rede a foto da Escola Móbile, escola particular, famosa por seus excelentes resultados no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), apresentando a ampliação de suas edificações. A placa de registro da construção destacada na foto mostra o financiamento do governo do estado de São Paulo através do “Desenvolve São Paulo”, plano de crédito que visa à ampliação de empresas e instituições voltadas ao serviço.
A interpretação sobre a condução privatista da educação não parece ilusão, se levarmos em conta que as escolas em São Paulo não têm inscrição estadual e, portanto, não recolhem tributos à administração pública estadual. Mesmo considerando todos os pormenores da circunstância, já que bancos emprestam dinheiro e cobram juros, só a observação da placa, nesse exato momento, gera mal estar.
Os estudantes que ocupam as escolas. Quem são eles? Como se mobilizam? O que pedem?
O caderno “Educação” da Folha de S.Paulo (26/11/2015) diz que o plano de entrada dos alunos nas duas primeiras escolas ocupadas em São Paulo foi organizado a partir de encontros de alunos em diferentes escolas que passaram a se conversar pelo Whatsapp. No dia 09/11/2015 20 alunos da Escola Estadual Diadema (Grande São Paulo) montaram acampamento da escola. Nove horas mais tarde, mais de 100 alunos entraram na Escola Fernão Dias Paes (bairro de Pinheiros, São Paulo). Os alunos organizam as atividades pelo dispositivo do SmartPhone. Os alunos, não identificados na reportagem, comentam: “A gente conversa com o pessoal de Diadema (pelo Whatsapp). Sabíamos que ia acontecer lá também” (Caderno Educação, FSP, 26/11/2015).
A EE Diadema, a primeira escola do estado ocupada, está situada em um dos municípios da Grande São Paulo, no grande ABC. Ali, alunos do ensino médio noturno começaram a receber telefonemas em casa pedindo para que fossem remanejados para outra escola. A explicação para o fechamento do turno foi a ociosidade de quatro classes. De imediato, os alunos montaram uma página no Facebook chamada “EE Diadema contra a DESorganização Escolar” que se tornou um diário das ações na escola, gesto repetido por quase todas as outras ocupações.
A escola já abrigou o Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM) o que a torna motivo orgulho na cidade, da comunidade escolar, dos ex-alunos. Por isso, se num primeiro momento a questão era impedir o fechamento do ciclo, depois, tornou-se uma luta pela melhoria de toda a escola.
Os alunos iniciaram o movimento com a entrada de grupos na hora das aulas e lá permaneceram. Ficam instalados em colchões e armam barracas para dormir. Não tratam o tempo com ociosidade. Já nessa primeira manifestação, ensaiavam passos de dança, organizavam projeções de vídeo e campeonatos de videogame. Passaram a contatar outras escolas que decidiram agir dessa mesma forma.
Os alunos ganharam autorização por escrito dos pais para lá permanecerem e se alimentam a partir da ajuda dos familiares e contribuições de outras entidades, tais como associações de bairro (Associação Oeste de Moradores) e o Sindicato dos Professores Oficiais do Estado de São Paulo (APEOESP). O apoio do sindicato era esperado, levando em conta que, neste mesmo ano, aconteceu a maior greve da história do estado, com 92 dias de paralisação e mais de 20 manifestações com atuação intensiva de alunos.
A página do Facebook da EE Diadema dá a dimensão do que essa primeira ação se tornou em quase dois meses de atuação, já que a interconectividade é o elemento chave para o entendimento dos fatos. A motivação inicial é contrariar à dita reorganização escolar e o fechamento de escolas. Mas as bandeiras não são de hoje. Luta-se por “menor quantidade de alunos por sala”; “nenhuma punição a estudantes, professores e apoiadores”; “melhoria na infraestrutura das escolas”.
As redes sociais nos contam histórias pessoais, sobre a tristeza de ver a própria escola ser fechada; manifestos juvenis de inconformidade para com as arbitrariedades do governo do estado; pedidos de ajuda para a manutenção do movimento e a ação solidária entre escolas, movimentos espontâneos de grupos, pessoas isoladas e instituições variadas etc.. Os debates e a organização da ação dos estudantes se apresentam como “horizontais”, já que repudiam a ideia de liderança estudantil verticalizada e se orgulham pela fraternidade criada por meio da esperança em conquistar os objetivos.
Em depoimento gravado pelo Whatsapp, alunos de escolas, respondem às seguintes perguntas: Qual é o motivo da união? E como é a experiência da ocupação? Uma aluna de nome Francisca, da EE Pedro Fonseca, no Jardim Monte Kemel, diz que o grupo se uniu sendo contrário ao fechamento das escolas. Relata que no início tiveram medo da polícia na vigília. No entanto, contaram com o apoio da diretora da escola, preocupada com o abastecimento dos jovens. Victor Hugo Pironi, 15 anos, da EE Comendador Miguel Maluhy, diz que não acredita na reorganização porque as salas estão sempre lotadas e aprende-se pouco. Conta que a experiência da ocupação é boa: “fiz novos amigos”, “há cursos interessantes na escola”. Juliana, 16 anos, da EE Wilson Gonzaga, em Embú das Artes relata que a união dos alunos aconteceu depois da tomada de consciência, na última semana, do mal que essa história faz para eles e para gerações posteriores. Diz que a ocupação da escola, ainda que rápida, foi difícil. Parte dos alunos não queria participar. Eles tiveram o apoio do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e, no caso desta escola, não houve a participação da direção. Os alunos e pais foram se informando e aderiram ao ato. Pessoalmente relata que se sente cansada, porque estuda pela manhã, trabalha à tarde e volta para a escola à noite. Ainda assim, afirma que, em uma semana, compreendeu que essa ação tem a ver com o que vem à frente: “porque para se ter o prazer do amanhã, há que se sacrificar certas coisas hoje”.
Nas discussões, há três grupos que são reiterados como porta-vozes confiáveis desse grande movimento: O blog “Mal-Educado”, ligado à entidade “Grêmio Livre”; o Comando de Ocupação das Escolas e atimeline no Facebook “Não fechem minha escola”, esta com apresentação das escolas dentro do movimento em tempo real.
Organizada por estudantes, os três grupos, interconectados com a rede de escolas ocupadas, suprem o grande grupo com informações, notícias, vídeos e comunicados de apoio. No grande rol de informações e comunicações, destacam-se, a nosso ver, três itens: 1) O manual de instrução de ocupações de escola intitulado “Como ocupar um colégio” cartilha operacional confeccionada por estudantes argentinos e chilenos, traduzida, disseminada e, pelo visto, levada a sério pelo movimento. Essa cartilha teria sido apresentada pela primeira vez nas discussões feitas entre alunos de várias escolas em grupos de debates feitos pelo Whatsapp; b) A retroalimentação da luta política a partir dos movimentos dados pelo próprio estado, como, por exemplo, fazer boicote à avaliação do SARESP que aconteceu no dia 24/11/2015; c) A comunicação feita com propriedade pelos manifestos em vídeo, gravações de áudio e comunicados escritos que esclarecem sobre os acontecimentos, as ações. Para além dos slogans, comuns nesses momentos, mostram coerência nos argumentos e ganham apoiadores pela alegria de se mostrarem jovens e aguerridos.
O manual, as táticas políticas, o “ser jovem” em ação nas escolas
Na página “Mal Educado”, encontra-se a cartilha “Como ocupar uma escola” versão on line e impressa. Os próprios estudantes apresentam o documento: “Trata-se de uma tradução que fizemos de dois textos da Frente de Estudantes Libertários da Argentina (FEL). Esperamos que ele seja útil para os milhares de estudantes que estão nas ruas contra o governo fascista de Geraldo Alckmin”. (Cf.https://gremiolivre.wordpress.com/).
A Frente de Estudantes Libertários (FEL) foi criada na Argentina, pela fusão de duas organizações: a “Tendência Anarquista na Educação” e a “Federação de Estudantes Libertários”. O interesse é a militância em torno da causa de estudantes e de outras ligadas à causa operária.
No caso do Chile, a FEL completou, em 21/05/2013, dez anos de funcionamento. Apresentam-se como uma frente que faz movimento estudantil de base em universidades e liceus chilenos. Uma das principais linhas de luta tem sido exatamente a proteção do ensino público do país, que também passa por reordenação econômica, a partir de interesses gerenciais corporativos, reforçando a dualidade de escolas diferenciadas para ricos e pobre.
A cartilha foi inspirada nas ações dos estudantes secundaristas chilenos que ocuparam mais de 700 escolas (2011) após a conhecida “Revolta dos Pinguins” em alusão aos uniformes escolares do país. Pelo mesmo motivo, buscavam a melhoria da escola pública, contrários ao sucateamento, e se mobilizar contrários aos processos de privatização da escola pública por meio de incentivos financeiros que abriam escolas particulares. Na época, também se posicionaram contra a municipalização do ensino pedindo a manutenção do ensino público pelo governo nacional.
Portanto, não é exatamente uma coincidência que a EE Presidente Salvador Allende, em São Paulo, tenha organizado uma roda de conversa com um ativista do levante estudantil do Chile, em 2011, marcado para o dia 23/11/2015.
O manual diz que a “ocupação não é um fim em si mesma”, mas uma ferramenta de luta utilizada em última instância quando há o fechamento de diálogo com o governo. O objetivo do texto é apresentar a ocupação como possibilidade de concretização do movimento, e não se trata de “fazer festa” em escola, mas usá-la como veículo para se fazer ouvir. Para tanto, apresenta uma lista de procedimentos que buscam a conquista deste objetivo, estimulando para que mais estudantes façam o mesmo.4
O documento compõe uma ação organizada que parte do princípio da gerência democrática feita por meio de assembleias “respeitando a democracia direta”. A assembleia é controlada, inclusive o tempo de fala dos participantes, para desestimular debates muito “longos e chatos”. Nela são organizadas as comissões de trabalho, responsáveis pelos seguintes encaminhamentos:
- Comida: Encarregada de garantir comida para quem dormirá no colégio. Nas ações, familiares, entidades apoiadoras e alunos apoiando outros alunos se organizam para o abastecimento de quem está acampado nas escolas;
- Segurança: Ações de controle da entrada e saída de pessoas na escola, para desestimular brigas, consumo de álcool e drogas. Há indicação para que as listas de controle sejam destruídas ao final da ocupação de modo a não deixar registros em caso de futuras represálias, seja pelos dirigentes da escola ou pelo Estado;
- Imprensa: É encarregada de divulgar a ocupação com comunicados gerais; confecciona notas explicativas da ocupação para a divulgação em todos os veículos possíveis; fazem cartazes que são fixados na porta da escola e a cada dia ampliam apoio a outras causas: pela prisão dos dirigentes da Samarco e responsabilização da Vale do Rio Doce pelo crime ambiental; contra a xenofobia e a repressão aos refugiados da Síria etc..
- Informação: É a encarregada de difundir a informação dentro da ocupação para que haja uma sintonia entre o que foi decidido em assembleias e os afazeres dentro da escola;
- Limpeza: É a encarregada de limpar o estabelecimento (varrer, lavar, etc.). Primeiro, para fortalecer a ideia de que o grupo não está ocioso, mas também para não deixar que a sujeira “prejudique a imagem do movimento”;
- Relações externas: Evita-se a apropriação da luta por meio de partidos ou entidades que passem acima das decisões das assembleias e, no caso brasileiro, inclusive das entidades estudantis como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e outras. As comunicações são feitas por meio de delegados escolhidos nas assembleias e maiores de 18 anos. Aconselha-se a gravação das reuniões com autoridades externas;
- Atividades: Outro caminho para que não haja a associação dos trabalhos internos com vandalismo e vadiagem e que o tempo de ocupação não seja apenas de trabalho. Instigam o lazer, recreação, cursos, expressões artísticas etc..
Essas ações são observadas todos os dias pelas redes sociais. Para quem acompanha os passos do movimento pelo Facebook já está claro, desde o início, que os primeiros grupos já estavam sintonizados com tais diretrizes. Marlene Bergamo, repórter da Folha de S. Paulo, em 15/11/2015, passou quatro dias junto com os alunos da EE Fernão Dias Paes e registrou a organização do movimento “aparentemente sem líderes”; as decisões feitas em assembleias; as atividades recreativas; e a fraternidade de pais e simpatizantes para com a alimentação, o acondicionamento dos jovens e a doação de materiais de limpeza.
Essas ocorrências têm se repetido por todo o estado, apresentando múltiplas configurações que tem a ver com a cultura de cada escola e com interesses que também são territorializados. Uma passada pelas páginas das escolas ocupadas é suficiente para perceber que os jovens estão articulados, a comunicação é direta e que tomam a causa como, historicamente, sua: estudantes se ocupam com a melhoria da educação.
Além disso, dois episódios demarcam bem esse estilo de fazer política interconectada, rápida, irônica e, muitas vezes, piadista.
Um deles é o episódio da reintegração de posse determinada pela Justiça na ocupação das EE Fernão Dias Paes e EE Diadema. Três dias após o início da ocupação, a decretação de “reintegração de posse” foi determinada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e criou um clima de medo durante as 24h, prazo dado pelo tribunal para a retirada dos estudantes sob ameaça da Polícia Militar. Esses jovens encararam a polícia, o poder público, o alarde da imprensa paulista.
No dia seguinte, o pedido foi suspenso pelo Juiz Felipe Ferrari Bedenti, da 5ª vara da fazenda Pública, alegando que não se tratava de uma questão de retomada de posse da escola, mas de uma “discussão em torno de políticas públicas”. A suspensão do pedido foi decidida partindo da reivindicação dos alunos, do Ministério Público, da Defensoria Pública e APEOESP. Este é o caso de por ordem na “escola do mundo pelo avesso”, por assim dizer, que a posse de uma escola pertence ao aluno. Aliás, é importante destacar que os estudantes têm conquistado respaldo jurídico para a continuidade dos atos.
O promotor João Paulo Faustinoni e Silva, que integra o Grupo Especial de Educação (Geduc) do MP-SP, quando pediu a revisão da reintegração de posse, deixou claro que o poder judiciário “não pode absorver conflitos negados pela postura antidemocrática dos demais poderes” e, ao defender os estudantes, indica que o poder executivo diminui a causa dos jovens, quando diz que eles são incitados por entidades sindicais. Agindo assim, supõe-se que “adolescentes e jovens não sejam sujeitos de direitos e protagonistas nas reivindicações que entendam justas”. (G1, 13/11/2015).
Também, ao negar a liminar pedida pela Fazenda Estadual, o relator do caso, desembargador Coimbra Schmidt disse que o movimento busca debater a questão que tem sido tratada como “polêmica”, quando noticiada pelos meios de comunicação e abuso de direito. Saudoso, escreve que participou de movimento semelhante quando foi aluno do 3º ano do Ginásio Estadual Vocacional Osvaldo Aranha (1968), afirmando que a experiência foi gratificante, “quando bem conduzida e respeitado princípio basilar da democracia que vem a ser o pluralismo subjacente à liberdade de opinião” (Processo nº1045195-07.2015.8.26.0053, 17/11/2015).
Ainda sobre o estilo de política, há ainda o episódio do boicote promovido contra o SARESP. Na página do evento, marcado para os dias 24 e 25/11/2015, está escrito:
O SARESP é um instrumento usado pelo governo do estado para “embasar” suas políticas de educação, mas qual é a principal política de educação do governo hoje? A “reorganização” absurda e o fechamento de escolas. Não podemos legitimar essa política, temos que boicotar o SARESP!
Esse manifesto tem sido acompanhado na web pela seguinte charge:
Como chamar essa ação que se utiliza dos mecanismos de Poder e estratégias da tecnologia de administração governamental para fazer política reivindicatória? Tática? Talvez a maneira de Michel De Certeau, esse grande agrupamento esteja usando todos os mecanismos à disposição no mundo cibernético para fazer circular uma piada que boicota a falta de diálogo do governo do estado, transformando a base dos discursos governamentais, a avaliação do SARESP, em fundamentação da contrapartida estudantil. O movimento sincroniza as suas ações em manifestos e abaixo-assinados globais criando impacto social e uma sensação de consenso que é muito particular à agenda de quem tem poder dominante.
O foco é “fazer o governo tremer e recuar”, segundo os estudantes.
Fechando o assunto na forma de manifesto
No calor do momento, não há como saber o desfecho desses acontecimentos. Há sim, quem se sinta descontente julgando que todas essas ações sejam “baderna” de aluno “mal educado”. No calor do momento, é possível que a sensibilidade aflore e que essa análise se apresente partidária. Mas, é necessário defendê-los de incriminações quando elas os chamam de “parasitas”, “teleguiados”, “gente burra”.
No áudio vazado da reunião em 29/11/2015, e publicado no site Jornalistas Livres, Fernando Padula Moraes, chefe de gabinete do Secretário da Educação, Herman Voolward, diz que são necessárias “ações de guerra” contra os estudantes em escolas ocupadas. Segundo o áudio o movimento é fruto de aliciamento político dos estudantes com forma de desmoralização das ações nas escolas. Reitera que a reestruturação das escolas acontecerá por Decreto do Governador na próxima terça-feira, dia 30/11, indo na contramão das movimentações.
Tratar os movimentos sociais como caso de polícia é tática antiga. E mais uma vez, vemos ações sociais legítimas sendo jogadas ao lado do crime, de modo a justificar a ação violentas no desmantelamento de pedidos justos. Trata-se daquele movimento de trazer a pacificação, culpabilizando o outro pelo retrocesso social. Tratar os estudantes como crianças revoltadas e guiadas por outros já foi motivo para a prisão e desparecimento de outros jovens em tempos não tão longínquos da nossa história.
Vale lembrar que no movimento de guerrilha apontado pelo chefe de gabinete tem apoio juvenil também. Trata-se do “Movimento Ação Popular”, composto por jovens do PSDB, que repete a máxima de que a ação dos estudantes nas escolas é ato político. Portanto, o potencial juvenil, não é progressista por si só. Esse potencial pode ser usado para retrocessos, principalmente quando se posiciona do lado dos “argumentos justos”.
Já as ações dos estudantes nas escolas procuram se fixar na cultura local, pedem pela educação em geral, mas defendem a sua escola, como seu lugar. Chamam a sociedade para que ela participe do movimento. Pedem pelas redes sociais para que professores doem aulas (#DoeAula) que são abertas, com temas e metodologias variadas. Na internet o hub livre com o formulário pedindo aulas foi postado no dia 18/11. No outro dia já contabilizavam 1300 voluntários contabilizados, apresentando mil ofertas de aulas dos mais variados tipos. Estima-se que 3,5 voluntários foram incluídos por minuto.
As notícias sobre as ocupações não necessariamente são de interesse da grande mídia. As redes sociais são o território de luta. Os números de escolas ocupadas são constantemente atualizados; alunos postam a listagem das adesões. Também é pelas redes sociais que se constrói o movimento de coalizão, mostrando que, além de contrariados com as ações da SEE-SP, parte da luta diz respeito à visualização compartilhada de jovens, pares etários, unidos por uma causa.
Tudo isso por causa de uma reestruturação do sistema de ensino? Em São Paulo, já passamos inúmeras vezes por isso, sempre com a bandeira da melhoria da qualidade da educação. Mas, o que se transformou? Porque o que se vê nos milhares de registros são escolas abandonadas, desaparelhadas e a mais forte sensação de que essa realidade nunca será transformada.
A questão da democratização da escola não é um problema restrito ao sistema educativo. O velho lema “Vamos colocar todos na escola” parece ter sido ouvido e os alunos acataram o sentimento de pertencimento ao espaço escolar. Eles dizem “a minha escola” com propriedade. Local onde estudo, faço amigos, me relaciono com outros, me apresento ao mundo como sujeito. Local inventado para aqueles que aguardam a vida adulta, lugar onde se cresce.
Esses estudantes não agiram como nas reestruturações anteriores. E a surpresa da novidade inventada, transnacionalmente circulada, apresenta uma escola além da vida escolar. Os jovens assumiram a função histórica da escola que foi criada e disseminada como espaço do aluno. Ocupá-lo, nesse caso, é fazer uso de algo que já lhes pertence e essas ocupações não são apenas discursos perdidos em panfletagens sindicais ou partidárias: ocupar significa o próprio pertencimento. E faz parte de suas diretrizes mostrá-lo em ações práticas convertidas na melhoria da qualidade do ensino: o mato que se acumula tem sido cortado; limpezas feitas em todas as dependências das escolas; manutenção em banheiros; apagamento de pichações em paredes e carteiras. Acontecem aulas, saraus literários, oficinas de música, debates …
Até o fechamento deste texto, em 28/11 a timeline “Não feche minha escola” contabilizava 191 escolas ocupadas em todo estado. Todos os dias, novas escolas têm planos de ocupação sendo organizados e divulgados.
Acampar nas escolas tem se tornado a assinatura definitiva de que o processo de democratização da educação se faz pelo exercício pleno do direito de lá estar. Coloquemos a história em seu lugar e que ela não seja virada do avesso. Chamá-los de “parasitas sociais” é o mundo de cabeça para baixo. No mundo real, quem parasita para prejudicar a vida de outros não são estudantes. Seria um sonho, se em nosso mundo só existisse o medo de estudantes que estão dentro de escolas…
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Katya Braghini é professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora do PEPG em Educação: História, Política, Sociedade (EHPS/ PUC-SP).
Paula Maria de Assis é doutora em Educação pela PUC-SP. Professora da Faculdade de Campo Limpo Paulista (Faccamp).
Marianna Braghini Deus Deu é sociológica formada pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP). Está participando do movimento de ocupação das escolas.
Andrezza Silva Cameski é mestre em Educação pela PUC-SP. Professora de literatura da rede privada de ensino.
Esse texto é dedicado aos milhares de jovens que na data de hoje, 24/11/2015, já ocupam 174 escolas públicas em todo estado de São Paulo, número que aumenta a cada dia. Marianna Braghini Deus Deu, autora, representa um desses jovens e repassa informações recolhidas pelo Whatsapp sobre os eventos nas seguintes escolas: EE Mary Moraes, EE Pedro Fonseca, EE Comendador Miguel Maluhy, EE Wilson Gonzaga.