Texto de Rafael Fortes publicado originalmente no Blog A Lenda.

Outro dia, fuçando a internet, descobri que meu livro mais recente, fruto da tese de doutorado, está disponível na biblioteca da Universidade de Stanford, nos EUA. Tem também na Biblioteca do Congresso dos EUA. Fiquei feliz, claro. Sobretudo no caso de Stanford, uma das principais universidades daquele país. Lá em Palo Alto, Califórnia, alguém tomou a iniciativa de importar um livro em idioma estrangeiro (português), publicado por uma pequena editora do Rio de Janeiro, Brasil.

Mas pensei também que a universidade em que trabalho (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO) nunca se interessou por ele. Nem pelos outros dois que já produzi. Exemplifico. Em 28/6/2010, doei (isso mesmo: doei) à Biblioteca Central exemplares de meus dois primeiros livros. Contudo, uma busca online no acervo não indica qualquer resultado com meu nome. Se não me engano, em algum momento de 2011 eu também doei a obra que está disponível em Stanford. Nada de aparecer no mecanismo de busca.

Sem querer ser pedante, creio que, se há um lugar em que os livros acadêmicos produzidos por um pesquisador deveriam estar disponíveis para o público, é a biblioteca da universidade onde o pesquisador trabalha. (Se não é possível encontrá-lo lá, onde será? Somente na Biblioteca Nacional?) Isso soa bastante óbvio para mim. Mas devo estar enganado.

Para que fique bem claro: imaginei – acertadamente, pelo que vejo até hoje – que a biblioteca não faria o básico de comprar os livros de seus professores (não exatamente por serem meus, mas porque aquisição de obras não parece ser o forte por lá) e doei exemplares. No caso de dois dos três títulos, adquiridos com dinheiro meu. Contudo, a precariedade é tão grande que sequer eles são catalogados e aparecem no sistema.

Compreender o incompreensível

Já estive lá mais de uma vez, na tentativa de entender o que acontece. Numa das visitas, tive uma conversa franca com uma pessoa que lá trabalhava. Conversa vai, conversa vem, ela me explicou que houvera uma compra grande de livros e que todos estavam trabalhando em sistema de mutirão para catalogá-los, o que inviabilizava o trabalho regular. Pasmo, contestei:

– Bom, isso acontece porque isso aqui não é uma biblioteca. Se fosse uma biblioteca, compras grandes de livros seria justamente o trabalho regular. Seria algo a ocorrer todo mês. E não um acontecimento extraordinário, que atrapalha e inviabiliza o trabalho dos bibliotecários. Se isso aqui fosse uma biblioteca digna do nome de Biblioteca Central de uma grande universidade, haveria 10 ou 15 vezes mais funcionários, um acervo muito maior e em constante atualização, e estaria repleta de usuários.

– A biblioteca está melhorando, está avançando. Não desista da gente, professor.

Foram as frases finais que ouvi, ditas por uma pessoa que me pareceu não só sincera como efetivamente engajada em realizar um trabalho sério, malgrado as condições ruins à sua volta. Solidarizei-me, pois com frequência me sinto da mesma forma em minha realidade de professor. Vale registrar que ela mostrou os livros que doei, já catalogados, mas ainda sem previsão de inclusão na base de dados do acervo, que pode ser consultada no site da Unirio.

O site das bibliotecas da Unirio informa que o acervo total tem “mais de 200.000″ obras. Não sei se a comparação é plausível qualitativa e quantitativamente, mas, na parede da extinta prisão de Alcatraz, nos EUA, um painel (à direita) informa que a biblioteca do presídio chegou a contar com 15.000 volumes.

A ausência de política pública configura política pública?

Enquanto isso, o uso de cópias prossegue como a principal política pública de acesso à bibliografia em vigor nas universidades brasileiras. A adoção do mecanismo “resolve” vários problemas. Ou, ao menos, permite às universidades lavar as mãos, livrando-se deles. (Estivesse vivo e militasse nos partidos da base aliada do Governo Dilma Rousseff, caberia a indicação de Pôncio Pilatos para ministro da Educação?). Refiro-me a:

a) Custo de instalação: a universidade cede uma sala que já faz parte de sua infraestrutura.

b) Custo de manutenção das instalações físicas e do acervo: a universidade paga apenas a conta de luz.

c) Mão-de-obra: a universidade não precisa alocar funcionários no setor, nem realizar concurso público para prover vagas.

d) Custo de aquisição do acervo: a universidade não gasta um tostão, pois todo o custo corre por conta de professores (aquisição dos livros) e alunos (pagamento das cópias). Para os alunos pobres, o gasto com cópias representa um custo a mais, contribuindo para dificultar a permanência na universidade.

e) Responsabilidade de prover acesso a conhecimento atualizado aos professores, funcionários e alunos: da mesma forma que o custo de aquisição, essa responsabilidade recai sobre os professores, que precisam acompanhar, individualmente, os lançamentos e adquirir, com recursos próprios, as obras. A universidade se livra da responsabilidade de prover a todos acesso ao conhecimento científico divulgado na forma de livros, o que tem impacto sobretudo na área de humanas (para outras áreas, mecanismos como o Portal Periódicos da Capes resolve boa parte do problema). Estou há 32 meses na Unirio e nunca fui consultado para indicar obras para aquisição por parte da biblioteca. Por incrível que pareça, em contraste, na Universidade Federal de Minas Gerais (que se aproxima mais de uma universidade digna do nome), onde atuo num programa de pós-graduação, já recebi dois ou três emails solicitando uma lista de títulos para compra pela biblioteca. A cada vez que isso acontece, faço uma busca no acervo online e, com satisfação, verifico que os livros que indiquei anteriormente já se encontram na biblioteca da EEFFTO (Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional), onde funciona o programa.

Ou seja, não temos bibliotecas com instalações confortáveis, com quantitativo adequado de funcionários, livros que permitam à comunidade acadêmica (e à sociedade em geral) travar contato com produções recentes e relevantes (e em quantidade suficiente, no caso das obras usadas em disciplinas de graduação). Ao não ter uma política pública e sistemática de investimento em acervos, infraestrutura e funcionários técnico-administrativos, o governo federal se livra da responsabilidade e privatiza o acesso ao conhecimento. Com isso, joga sobre as costas do professor e o bolso dos alunos uma responsabilidade moral e um dever pedagógico, ético e financeiro que são dele.

Problemas e saídas

Embora eu sempre faça questão de destacar esse ponto – a xerox como política pública privatista de acesso ao conhecimento – na primeira aula dos cursos que ministro na graduação, me parece que o assunto já está naturalizado entre os alunos. Não raro, eles mostram surpresa com a minha fala. Entretanto, como já mencionei em outros textos que escrevi deste o início desta greve, ela tem sido uma oportunidade muito interessante de trazer à tona e ao menos discutir – oxalá desnaturalizar – certas posturas e situações que se repetem nas universidades.

Evidentemente, as administrações presentes e passadas das universidades têm um tanto de responsabilidade neste processo. Tampouco o saldo negativo pode ser creditado exclusivamente à atual sequência de mandatos do Partido dos Trabalhadores (PT) no plano federal (embora, como as reivindicações da atual greve dos professores evidenciam, a situação tenha ficado muito aquém do que seria de se esperar).

A diferença de gestão – por exemplo, a decisão política de alocar (ou a decisão política de não alocar) regularmente verbas na rubrica de compra de livros – explica, em parte, as grandes diferenças que podem ser verificadas de uma universidades federal para outra. No entanto, o panorama geral é ruim – e a situação particular de certas universidades, como a Unirio, catastrófica.

Neste sentido, reitero as palavras do professor Otaviano Helene(USP), em debate no programa Entre Aspas, da Globonews. Dizia ele que, sem aumento significativo do investimento público em educação, não será possível oferecer um padrão melhor de ensino à população brasileira. Ou seja, a garantia de direitos necessita de investimento. Esse fato básico parece escapar a boa parte da discussão sobre a qualidade dos serviços públicos prestados à população brasileira, especialmente nas falas dos setores da direita (mas, com frequência maior do que seria de se esperar, também entre os que se identificam à esquerda, incluindo alguns partidos que compõem a base do governo federal).

O corporativismo que vigora no interior das universidades também responde por parte do problema. Neste ponto, desconheço a situação concreta da Unirio no que diz respeito às bibliotecas, por isso nada posso dizer. Mas conheço o caso de colegas (mais de um) da UFRJ que já me relataram terem comparecido à biblioteca de uma certa unidade informando que tinham interesse em doar livros de sua autoria, bem como outros adquiridos com verba de edital. Foram rechaçados pelos funcionários que os atenderam, sob a alegação de que “isso vai dar muito trabalho”.

Da mesma forma, é possível que a corrupção e o desvio de verbas respondam por parte do problema. Na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde tive o privilégio de fazer duas graduações, um mestrado e um doutorado, entre 1997 e 2009, ouvi histórias tão inacreditáveis quanto tristes de roubo de livros do acervo da Biblioteca Central do Gragoatá.

Portanto, digo o óbvio, para não correr o risco de parecer compactuar com o inaceitável: é preciso melhorar o uso dos recursos públicos na universidade (como, aliás, em todas as instituições do Estado brasileir0). Isso significa: a) combater a corrupção e o desvio de verbas; b) exigir que os funcionários públicos cumpram seu trabalho. Sei que isso acontece com menos frequencia do que deveria, mas, repito: pra mim, é o básico do básico. Tão básico que sequer deveria entrar em discussão.

Contudo, isso pouco adiantará sem uma mudança no padrão de investimentos para certos setores. Enquanto a cultura receber 0,09% do Orçamento da União, o acervo da Biblioteca Nacional será periodicamente afetado e destruído por chuvas, goteiras, infiltrações, manuseio e outros problemas. Enquanto forem aplicados em saneamento 0,14% e em saúde, 3,98% do Orçamento, as condições de saúde de boa parte da população continuarão horrorosas. Enquanto a educação receber 3,18% do mesmo Orçamento, prosseguiremos com índices indecentes de analfabetismo funcional, com problemas sérios de aprendizado, com professores desmotivados em meio a péssimas condições de trabalho. As universidades públicas, que parecem um oásis se comparadas com as creches, escolas fundamentais e secundárias, também continuarão muito aquém de serem dignas do nome universidade. Atuando em universidades desde 2003, já passaram por mim dezenas de estudantes com imensas dificuldades de compreender um texto escrito e de elaborar uma redação de uma página.

(Fonte dos percentuais: Auditoria Cidadã da Dívida. Vale lembrar que esses são os percentuais previstos para o Orçamento de 2012. O valor efetivamente gasto com investimentos certamente será menor, devido aos cortes anunciados no primeiro semestre e à política de superátiv primário, entre outros. Como se pode perceber, estou falando de relações estruturais, que se repetem a cada ano, mas que costumam escapar às notícias veiculadas pela mídia corporativa, que raramente articulam os problemas nos serviços públicos à falta de investimento consistente.)

Incentivar os mais produtivos e quem apresenta melhores resultados é válido e me parece uma medida – dentre diversas possíveis – razoável de motivação em ambientes de trabalho. Mas, no caso dos serviços públicos que implicam direitos da população, isso não pode, de forma alguma, substituir ou servir como panaceia para a ausência de recursos suficientes e de condições básicas de trabalho.

Encerro lembrando uma fala do bom e velho Darcy Ribeiro, em entrevista que li há uns anos. Perguntado sobre a crise na educação brasileira, ele respondeu que não era correto falar decrise. Pois crise pressupõe algo que funciona razoavelmente bem e, a partir de determinado momento (ou por determinado período de tempo), começa a apresentar problemas ou deteriorar-se. Ora, o Brasil nunca ofereceu a toda a população ensino de qualidade público, universal, laico e financiado pelo Estado. Nunca investiu o suficiente em instalações, manutenção, merenda, salário de professores e demais profissionais. Portanto, Darcy não via sentido em tratar como crise algo que é, na verdade, constante e estrutural.

O caso das bibliotecas universitárias, como tentei argumentar a partir de uma visão pessoal e (certamente) limitada, é uma das evidências do problema geral da falta de investimento adequado, sistemático e a longo prazo na educação superior estatal. Não por acaso, permanece a dificuldade histórica de garantir em lei (quanto mais efetivar!) 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação.

[Atualização em 10/9/2012. Em 5/9, recebi um email com “urgente” entre as palavras do “assunto”. Solicitava o envio de documentos (“o mais rápido possível”, com prazo máximo de uma semana) para preparação do dossiê de um dos cursos em que atuo na Unirio, tendo em vista visita de avaliadores do MEC. Entre os itens listados, bingo:

“- Livro Publicado (caso o docente tenha algum livro publicado e puder deixar conosco para o momento da visita (…) será ótimo, depois eu faço a devolução).”

Informei que doara para a biblioteca ao menos um exemplar de cada livro que publiquei. Expliquei também que, caso houvesse uma política institucional de acervos bibliográficos séria por parte da Unirio, um dos pontos básicos seria acompanhar rotineiramente e adquirir cada publicação realizada pelos professores e disponibilizá-la nas bibliotecas – as visitas de avaliadores são apenas um dos muitos motivos para tanto. Mas que, como infelizmente não há (e isso não é responsabilidade de quem enviou o email, é claro), é preciso recorrer a expedientes como pedir livro emprestado para professor.

[Atualização em 17/10/2012. No início da tarde de hoje, doei à Biblioteca do CFCH/UFRJ dois exemplares do mesmo livro mencionado no início do texto. Agora à noite, em casa, fiz uma busca e vi que ambos já foram catalogados, inseridos na base de dados para o sistema de busca e estão disponíveis para consulta do público. Dá gosto quando a universidade pública funciona.]

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