Não consta na literatura científica da biblioteconomia, que é a área de conhecimento no âmbito da documentação, associada às ciências da informação, reconhecida por lei e cuja competência de formação é atribuída a Instituições de Ensino Superior, qualquer referência aos critérios de seleção apontados pela Fundação Cultural Palmares (FCP) que justifique o desbaste realizado no acervo da sua biblioteca.

Essa é uma das conclusões de um parecer técnico assinado pela professora de História do Livro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Ana Virgínia Pinheiro. Segundo a docente, que acumula uma experiência de 38 anos como bibliotecária da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) o relatório, que foi emitido pelo Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra (CNIRC), uma das unidades da estruturas administrativas finalísticas da FPC, e divulgado na sexta-feira, carece de bases técnicas e científicas.

“Políticas e critérios para formação e desenvolvimento de coleções bibliográficas devem ser alicerçados em literatura específica, técnica e especializada, baseados em princípios bibliométricos e princípios regulados por diagnósticos do estado da arte da coleção, tipologia documental predominante, estudos de uso e da comunidade a ser servida, recursos que podem ser disponibilizados por instituições parceiras, estratégias de desbaste, além da formalização de critérios como a importância do autor, a contribuição da obra, a qualidade do exemplar, o contexto cultural da edição, o índice de citações da obra em fontes bibliográficas e outros que, evidentemente, não constam do Relatório [da FCP], onde sequer foi arrolada uma bibliografia consultada”, aponta o parecer de Ana Virgínia.

Ana Virgínia, que por 16 foi chefe e curadora do setor de obras raras da Biblioteca Nacional, explica que são múltiplos os conceitos firmados e as funções atribuídas aos livros, especialmente quando se trata de selecioná-los sem critérios relevantes no âmbito da bibliografia.

“Há um exemplo consagrado num clássico da literatura universal, que a vida real insiste em repetir, no sexto capítulo de ‘Dom Quixote de la Mancha’, de Miguel Cervantes (1547-1616), publicado  originalmente em 1605, quando um padre, um barbeiro e a sobrinha do engenhoso fidalgo, para salvá-lo dos livros, decidem expurgá-los e, no processo, a eles se referem como pessoas que serão lançadas às chamas ou que, por alguma exceção opinada e por enquanto, lhes será outorgada a vida. Destacando a desqualificação dos censores, Cervantes ironiza a censura que limita o poder da imaginação”, lembra a bibliotecária.

“Há, nos dois casos, no século XVII e, agora, no século XXI, um fato em comum: livros foram selecionados com o objetivo de descarte e não de construir ou desenvolver uma biblioteca – atividade que, efetivamente, requer habilitação, qualificação e isenção, à luz dos Princípios da Liberdade Intelectual, declarados pela International Federation of Library Associations and Institutions (1999)”, lembra se referindo à Federação Internacional de Associações de Bibliotecários e Instituições (IFLA, na sigla em inglês).

Entenda o caso

Um relatório, publicado pela Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao Ministério da Cidadania, afirma que 54% do acervo da sua biblioteca é composto de publicações “alheias à [sua] missão institucional”. Parte do material foi dividido em grupos como “iconografia delinquencial”, “iconografia sexual”, “intromissão partidária”, “sexualização de crianças”, “pornografia juvenil”, “técnicas de vitimização”, “livros esdrúxulos e destoantes”, “livros eróticos, pornográficos e ‘pedagógicos’”, “livros de/e sobre Karl Marx”, “livros de/e sobre Lênin e Stalin” e “material obsoleto”.

A FCP explicou que os critérios para o levantamento temático e quantitativo do acervo foram construídos pela equipe técnica do CNIRC, “dentro de suas atribuições legais e profissionais”. São eles: 1) “Ordem Regimental”, que estariam em desacordo com a finalidade da Fundação e 2) “Ordem Legal”, que contrariariam as leis brasileiras que “vetam e condenam a formação de guerrilheiros; a sexualização de menores; a subversão do estado democrático de direito; e a pregação da violência como meio político ou de alteração da ordem social”.

O relatório, intitulado “Três décadas de dominação marxista na Fundação Cultural Palmares”, assinado pelo seu presidente, Sérgio Camargo, também sugere a mudança do nome da sua biblioteca, que homenageia o escritor, intelectual e militante negro Oliveira Silveira em função da sua “mentalidade voltada para a manutenção de um gueto marxista”. Dentre as centenas de obras retiradas do acervo estão “A crise do Imperialismo, de Samir Amim (Graal, 1977); “Poemas: Rondó da Liberdade, de Carlos Marighella (Editora Brasiliense, 1994); “Homossexualidade: mitos e verdades”, de Luiz Motte (Editora Grupo Gay da Bahia, 2003) etc.

Comentários

Comentários